O “show” de Truman


Por Maruja Torres

Truman Capote na varanda da casa de tijolos amarelos na Rua Willow, Brooklyn Heights, 1958.

Truman Capote foi um dos melhores escritores de sua geração; alguém dotado de ouvido infalível para captar a musicalidade da língua inglesa e para reproduzir a fala do seu povo. Soma-se a isso a magistral habilidade com que mistura o obscuro e o poético, a angústia que serpenteia sob as águas mansas e ainda a grandiosidade descritiva da sua prosa. Era um gênio, como ele mesmo próprio se classificou (a modéstia não foi seu forte), depois de alardear que também era alcoólatra e drogado. Mas estas duas características nem sempre estiveram nele, embora sim a pulsão com que acabaria por se entregar a tais vícios a fim de suprir o medo de ser abandonado, que começou em sua terrível infância e não o deixou até o fim da vida.

Na verdade, Capote, que nasceu em Nova Orleans em 1924 e morreu em agosto de 1984 de lenta e repentina overdose de licores e fármacos, veio a este mundo com o sobrenome Pearsons. Com um dom e muitas missões. Passou a maior parte de sua infância em Monroeville, com suas tias, enquanto sua mãe, que havia fugido de um marido violento em direção ao Norte para pescar um homem que a fizesse rica, se limitou a mandar dinheiro para sua manutenção e alguma roupa pelo correio; seu pai, quando vagabundeava e tentava colocar em pé sonhos impossíveis, estava na prisão.

O pequeno Truman cresceu na espessa sensualidade do sul que propiciou tantos outros grandes escritores – o maior deles, William Faulkner –, rodeado de magia e de burburinhos, de histórias no alpendre e personagens alucinantes. Desenvolveu uma capacidade de sedução sem limites, presa num pequeno corpo de duende loiro e frágil. Quando, por fim, sua mãe encontrou um novo marido, Joe García Capote – seu avô foi um espanhol que havia lutado em Cuba contra os estadunidenses – e ele lhe deu seu sobrenome, Truman já tinhas umas quantas coisas muito claras e uma característica especial.

As primeiras se referiam à sua necessidade imperativa de se tornar um escritor e abrir os caminhos para tanto; a segunda era sua homossexualidade, que nunca ocultou; desde criança preferiu vestir-se com excentricidade e de se exibir, sem complexos, com sua voz aguda, aflautada e feminina. Muitos anos mais tarde publicaria o conto “O fulgor”, muito sulista, em que narra a relação de uma suposta fada com um menino que, em segredo, deseja ser como a mulher.

Na introdução do livro que trazia o conto, Música para camaleões, Capote – era 1980 e faltavam só três anos para sua morte – escreveu: “Deus, quando nos dá um talento, também nos entrega um chicote, a ser usado especialmente na autoflagelação.” Truman sabia disso muito bem. Então, e desde a década de 1940, sabia tudo da glória literária, os prazeres da vida mundana, o brilho e as sombras da high-society, de que havia sido um menino mimado e a tortura de escrever. O chicote predominava em sua existência.

Mas houve um tempo em que dizer Truman Capote era nomear o mais alto e brilhante da literatura, o mais ousado e vibrante de um espetáculo social que não terminava nunca, e em cujo interior girava como um torvelinho. Uma espiral na qual se viu preso – e na qual se viu esculpido – quando publicaram na revista Esquire os primeiros capítulos de seu último e inacabado livro, Súplicas atendidas.
Vamos por partes. Já adolescente, Truman Capote havia construído seu intenso desejo de fazer carreira como escritor num poema que escreve na escola: “Como o poderoso condor ... aguardei e persegui minha presa. Minha vítima é a imortalidade. Ser alguém e ser lembrado”. Não era uma piada o que escreveu. Em 1942, aos 18 anos, entrou como revisor no seu adorado e elitista The New Yorker, onde sofreu a decepção de ver que não lhe davam a menor oportunidade de publicar seus contos, embora seu aspecto espalhafatoso chamasse a atenção: carregava um cachecol quase pelo chão, que ondeava ao vento, e isso porque ainda não havia alcançado o metro e cinquenta de altura, seria o mais alto a que chegaria sua bonita e loira cabeça. Por sorte, em Harper’s Bazaar e sua revista irmã, Mademoiselle, conseguiu sua oportunidade. Depois de ter sido chamado no escritório de recrutamento, onde foi recusado à primeira vista por seu nervoso amaneirado, Truman se apresentou no edifício das mencionadas publicações femininas, que se vangloriavam de contar com os melhores escritores do país.

Entre anúncios e reportagens de modas publicavam narrativas de gente como Virginia Woolf, Christopher Isherwood, Colette, W. H. Auden e Carson McCullers. Ali encontrou seus primeiros protetores e suas primeiras protetoras, ali fez-se querido. Porque Truman não se parecia com ninguém, era audacioso e conquistava todos que necessitava num sentido ou em noutro; não por ser um manipulador, ou não apenas por isso, mas porque sempre esteve carente de afeto. Los Capote, com quem havia crescido, em especial sua mãe, Nina, que o destratava por sua homossexualidade e exibia já uma marcada tendência para o alcoolismo.

Desde quando publicou seus primeiros contos (eram tempos em que um bom conto rendia comentários), e principalmente desde quando saiu sua primeira narrativa longa, Outras vozes, outros lugares, o sucesso o inundou como o sol de sua terra no sul. Desenvolveu, ao mesmo tempo, uma atividade social frenética, pois sua personalidade solta não deixou indiferente nem os homossexuais que integravam grande parte do mundo editorial e da literatura, nem a gente da alta sociedade que tinha como esporte caçar gênios para seu entretenimento. Sua publicidade – e a personagem, já então, começara a devorar o escritor – contribuiu para o fato de que o próprio Truman elegesse para a contracapa de seu primeiro romance uma fotografia em que aparecia inclinado num canapé, com franja solta sobre o olhar fixo na câmera; como um lolito. Não se podia ser mais audacioso para a época.

Como consequência a revista Life publicou um artigo. “Desde então, tem sido um veredito inevitável. Se és celebridade, és celebridade. E ponto. Isso não se pode mudar”, confessou anos mais tarde em suas entrevistas com o jornalista Lawrence Grobel. E não parecia infeliz.

Truman Capote Foto: Slim Aarons


Festas, viagens, iates. Mulheres célebres. As irmãs Lee Radziwill e Jacaquline Kennedy, milionários como Babe Paley e Gloria Vanderbilt. E, certamente, toda a classe de reinantes da literatura como Gore Vidal (do ódio à morte: incluindo uma briga judicial), Tennessee Williams, com quem manteve intermitências de amizade e brigas; assim como Noel Coward, que ele adorava, e o fotógrafo Cecil Beaton.

Encontrou-se no cume – e melhor: seguia nele. Depois da publicação de Bonequinha de luxo que foi adaptada para o cinema com Audrey Hepburn no papel principal (Truman a queria, mas não considerou adequada e no final da sua vida dizia que Jodie Foster teria sido ideal), continuava sendo o mascote da jet-set. Sua inquietação interior o levava a viajar com seu amor Jack Dumphy e seus cães e gatos: Portofino, Ravello, Paris, Roma, Taormina, o Caribe. Em alguns lugares parava e escrevia.

Grande parte de A sangue frio foi escrita em Palamós, na Costa Brava. O que chamou de romance de não-ficção (havia feito alguns experimentos antes, mais esse foi o título que fundou o gênero; e se diferencia do chamado novo jornalismo, que inspirou, no caso de que em seu livro nunca aparece o narrador), constituiu o ponto-chave de sua carreira. Depois veio a derrocada.

Um dia de novembro de 1959 caiu nas mãos um jornal que informava sobre o assassinato brutal de uma família típica estadunidense, numa fazenda também tipicamente estadunidense, no condado do Kansas. Se perguntou como seria para aquela gente comum a súbita interrupção da morte. Por aqueles dias, o crime violento e sem sentido todavia não formava parte da rotina diária. 

Foi então que partiu com seu namorado e com sua amiga de infância Harper Lee (quem, depois, publicará O sol é para todos) para renuir o material que só serviria, acreditava, para uma longa reportagem, como a que antes havia escrito sobre a turnê soviética da companhia que representava o musical Porggy and Bess. Quatro anos depois, desacreditado, Truman Capote ainda esperava, impaciente, o desfecho final graças ao qual poderia escrever o último capítulo de seu livro: a execução dos dois assassinos, várias vezes adiada.

O que ocorreu entre Truman e os assassinos (que planejaram por conta própria o assassinato da família Clutter, daí o título do livro de Capote: A sangue frio) se conta na biografia do escritor escrita por Gerald Clarke, que serviu para o filme Capote, com Philip Seymor Hoffman – ganhador de vários prêmios por sua atuação – mas o que aconteceu, no fundo, nunca se saberá. Truman desenvolveu uma espécie de amizade, de afeto, com as duas vítimas, mas sobretudo com Perry, o mais articulado dos dois culpados; e talvez tenha existido certa tensão sexual, sobretudo por parte do criminoso. Em qualquer caso, esteve ali durante o enforcamento, ao seu lado. “Não há dia em que aquilo não projete sua sombra sobre mim”, diria mais tarde.

Depois do sucesso avassalador de A sangue frio, Truman Capote cometeu dois imensos erros: dar-se umas longas férias (as merecia: quatro anos metido na sordidez carcerária não pedia menos), mas muito longas, descuidando-se da disciplina da escrita. E ao dar o que chamou de festa da década, um baile de máscaras em preto e branco que planejou como um conto e que convidou as personagens mais importantes da jet-set internacional. A convidada de honra era Katharine Graham, proprietária do The Washington Post. Houve tentativas de suicídio por parte de alguns que não foram convidados.

A partir daí, nada foi como era antes e foi então quando o álcool, os tranquilizantes e a cocaína entraram definitivamente na sua vida, assim com os tratamentos para desintoxicação. Música para camaleões e o inacabado Súplicas atendidas, assim como seus famosos contos de famosos, foi o que escreveu nos seus últimos anos. Morreu sentado na cama, com sua amiga Joanne Carson. Sentiu-se mal e a mulher quis levá-lo ao hospital. “Não, deixa-o, não suportaria passar outra vez por isso”. Continuaram conversando até que dormiu para sempre, segundo se conta no livro de Gerald Clarke.

É uma pena que nesta edição atual de sua biografia, por razões publicitárias, figure Philip Seymour Hoffman no papel de Capote e no do próprio autor. Uma vez mais, a personagem traga o gênio. Mas busquem suas obras e leiam. É eterno.

* Este texto é uma tradução de “El ‘show’ de Truman”, publicado no jornal El País.



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