A angústia das inadaptações

Por Carlos Adriano

Cena de A hora e vez de Augusto Matraga. O filme de Roberto Santos foi vencedor do Festival de Brasília em 1966.

Se viver já o é, filmar Guimarães Rosa também é muito perigoso. No meio do redemoinho de imagens e sons, reside o diabo das adaptações literárias que buscam verter em cinema as complexas veredas do sertão de palavras de Rosa(s).

Pensando o ofício do artista, escreveu o autor mineiro: "o incontentamento é o seu clima". Parece ser a mesma condição e sina do árido exercício da transposição, acidentada topologia de deslocamento que atravessa livro e filme, cartografia-enigma.

Nonada: ponto de indagação e inflexão para quem decidir ousar pela aventura, âncora de angústia das inadaptações. Ambiciosa ou modesta, seja a tarefa, sempre resta o desafio, incômodo, e inquieto. "O poeta não cita: canta", reza Guimarães Rosa.

O mais costumeiro entrave na travessia é a irredutibilidade da linguagem ("Quando escrevo, repito o que já vivi, antes. E, para estas duas vidas, um léxico só não é suficiente"). Da pontuação à ortografia, da oralidade regionalista à erudição universal, o aparato construído através da sutil carpintaria do escritor traz problemas no transplante de meios.

Mas tal entrave é estímulo para descobrir o percurso (ou por ele perder-se) de criação como processo inventivo de risco (afinal, "o homem nasceu para aprender", diz Guimarães Rosa, e também para errar). Se a prosa do escritor faz da essência seu lavor como instância irredutível, a grafia do cineasta elabora sua idéia de imanência como valor de irredutibilidade essencial.

Recursos cinematográficos já foram explorados à exaustão como método comparativo na crítica literária. E não seria diferente no caso do autor de Ave, palavra. Os flash-backs, os travellings, às idas e vindas no tempo e espaço do relato, ao ato de percorrer a memória e a paisagem num fraseado contínuo, à decupagem e à composição de palavras em novas relações de sentido.

Sem querer preconizar a cisão de corpo e alma, até porque indecidível, o modo mais imediato de se esquadrinhar a situação é entender o que e como se hesita entre a apresentação episódica e a revelação do espírito. Os filmes brasileiros que "releram" a obra do escritor oscilam entre esses pólos. 

O exemplo clássico é um dos clássicos do cinema nacional: A hora e a vez de Augusto Matraga (1965), de Roberto Santos. Uma de suas estórias mais importantes e extraída de seu primeiro livro (Sagarana) rendeu um filme cujo impacto está nas elipses, no modo de filmar o vento e a chuva vegetal, o caminhar humano e o agreste ascético, ressoando o obstinado artesanato literário. Planejado como produção de grande orçamento, o filme acabou enfrentando outras condições: roldanas e carros de boi simularam a mecânica de uma grua e barcos e liteiras moveram a câmera em travelling, substituindo os equipamentos adequados.

Os duelos entre o bem e o mal / a violência e a religião contaminam a espessura técnica do filme, da contrastada fotografia em preto e branco (Hélio Silva), à clivada interpretação dos atores (Leonardo Villar, Jofre Soares, Maria Ribeiro) e à crispada música (Geraldo Vandré). A própria escolha do texto (sem maiores irrupções gramaticais ou vocabulares) contribuiu para um resultado equilibrado (em que pese o teor dilacerado do tema), permitindo que o diretor filmasse uma "análise da realidade interna de um homem através de seu meio".

Disse Roberto Santos: "Quando li o conto pela primeira vez, fiquei principalmente impressionado com sua força popular e logo quis adaptá-lo ao cinema. Não foi fácil. O primeiro roteiro não me satisfez. Fui então falar com Guimarães Rosa". O escritor respondeu com uma chave: "Matraga é um místico jagunço e Bem-Bem é um jagunço místico".

Cena de Sagarana, o duelo

Outra bela incursão no universo do autor é o curta A João Guimarães Rosa (1968), que o mesmo Roberto Santos realizou com Marcello Tassara. Trata-se de um exercício de montagem e animação com fotografias de sertão e sertanejos e magnéticas palavras.

Outro documentário em curta-metragem, formatados para televisão, em torno das esferas literárias e geográficas de Rosa são dignos de menção e revisão: Do sertão ao beco da Lapa (1973), de Maurice Capovilla, e Veredas de Minas (1975), de David Neves e Fernando Sabino.

Já no Grande sertão (1965), dos irmãos Geraldo e Renato Santos Pereira, cometeu-se a ousadia (e o desastre) de se adaptar o complexíssimo romance. A intrincada fatura de letras e frases virou maçante aventuras de tiros e galopes. A metafísica arcaica foi reduzida a um canhestro faroeste. 

Filmes distintos, num lapso de 25 anos, mantiveram a ênfase diegética sem ignorar o discurso e o espírito do escrito, mas também sem incorrer em arroubos de linguagem. Alcançaram momentos inspirados, mesmo que num conjunto irregular. 

Sagarana, o duelo (1973), de Paulo Thiago, com música de Tom Jobim e Dorival Caymmi, usa o conto homônimo para dialogar com certa tradição-sertão do cinema nacional (Vidas secas / 1963, Deus e o diabo na terra do sol / 1964, A hora e a vez de Augusto Matraga / 1965).

Outras estórias (1999), de Pedro Bial, foca os contos sobre a loucura e a dilacerada angústia da ambigüidade, contidos no livro Primeiras estórias ("Famigerado", "Sorôco, sua mãe, sua filha", "Os irmãos Dagobé", "Nada e a nossa condição", "Substância").

Curiosamente, ambos diretores fizeram uma escala, espécie de ensaio preparatório, antes de enfrentar a adaptação de obras para o formato de longa-metragem: Thiago rodou o curta A criação literária de João Guimarães Rosa (1970); Bial dirigiu a série em vídeo Os nomes do Rosa (1998).

Também transpondo contos de Primeiras estórias ("A menina de lá", "Os irmãos Dagobé", "Fatalidade", "Seqüência", além do conto que dá título ao filme), A terceira margem do rio (1994), de Nelson Pereira dos Santos, busca um tom singular e vigoroso no tênue fio de equilíbrio, ao cortejar as beiras de certa corrente de realismo fantástico.

Cena de Noites do sertão.

A melhor adaptação fílmica de Guimarães Rosa é Noites do sertão (1984), de Carlos Alberto Prates Correia, baseada no poema "Buriti" (como consta no frontispício do livro Noites do sertão, terceiro volume do ex-Corpo de baile). O roteiro é assinado pelo diretor e pela montadora, Idê Lacreta. Com graça, vigor e maestria sublimes, o filme exibe a exuberância erótica da natureza e da linguagem, fazendo aflorar com malícia e sutileza o corpo do desejo que dança o baile da paisagem agreste mineira. Ora, é poesia na prosa. 

Faladas como se cantadas, as palavras projetam-se precisas, coisas claras e ambíguas em pleno renovo, arado valor pela estrutura de concisão e silêncio. Por meio da fotografia (José Tadeu Ribeiro) de tom tropical, onde medram o esplendor das pedras e da vegetação de Minas, do elenco (Débora Bloch, Cristina Aché, Tony Ramos) bem escalado e da montagem (Idê Lacreta e Amauri Alves) de teor lunar, onde o ritmo do tempo se desdobra em doce e aspecto esplendor, o filme também compõe um recôndito teorema familiar de citações sobre os Gerais, da música de Tavinho Moura à participação de Milton Nascimento entre os atores.

Não tanto por ter nascido em Montes Claros (MG), mas este cineasta, um dos mais sofisticados, interessantes e criativos autores do cinema brasileiro (e, "inexplicavelmente", há mais de dez anos sem filmar - uma prova de um certo absurdo  e indigência da cultura nacional), é o que logrou realizar com mais inventividade e beleza a tradução do verbo do escritor para o movimento do cinema. A letra e o espírito de Guimarães Rosa encontram nas imagens e sons de Prates Correia um leito perfeito de preciosidades, lav(ou)ra rara de minerais anímicos.

Em Cabaret mineiro (1980), seu filme mais famoso, o diretor sacou o título de um poema de Carlos Drummond de Andrade (que é cantado numa cena), mas na sequência final faz uma bela transposição de "Sorôco, sua mãe, sua filha", de Guimarães Rosa. Uma viagem de trem por recantos de Minas, atravessando a narrativa e percorrendo paisagens, recorta a história fragmentária de jogo, paixão e loucura numa realidade onírica. Violentas maravilhas vão compondo uma estrutura imemorial e complexa, e a mão sensível de Prates Correia orquestra, de modo magistral, o coro das lindas intervenções da montagem (Idê Lacreta), da fotografia (Murilo Salles), do elenco (Nelson Dantas, Tamara Taxman, Tânia Alves, Louise Cardoso) e da música (Tavinho Moura).

Cena de Cabaret Mineiro.

A última fita do cineasta, Minas texas (1989), de argumento original (sobre o velho oeste de seus sonhos), sugere remeter, indiretamente, por sua forma fabular e fabulosa, ao imaginário e ao temperamento do escritor.

O cinema falado (1986), filme de Caetano Veloso, traz uma seqüência em que o diretor e ator Hamilton Vaz Pereira dramatiza a récita de longo trecho de Grande sertão: veredas, após comentar cenas da adaptação do romance para um programa da TV Globo, dirigido por Walter Avancini e roteirizado por Walter George Durst (1985). Livro enraizado no repertório pessoal do autor-cantor, proporciona intervenção das mais interessantes no terreno que trabalha a palavra em outros suportes. 

A longa seqüência quase não tem cortes, e o relato verbal (economicamente emendado) subjuga os parcos acentos e deslocamentos visuais, reconfigurando a dimensão temporal da experiência no espaço da imaginação. Na moldura artística afinada ao diapasão ousado do projeto (um cinema falado) realizado por Caetano, a fala adquire proeminências de enunciação paramétrica (a fala como autonomia estrutural e narrativa em relação à diegese).

Outra categoria a ser brevemente mencionada é a das adaptações indiretas. São filmes não baseados em livros propriamente ditos, mas que estão impregnados do ideário do escritor. A referência mais imediata é Deus e o diabo na terra do sol (1964), de Glauber Rocha, por ter criado um sertão como espaço mítico, mundo de forças antagônicas, com imagens belas e brutas, tão densas quanto imediatas (como o texto de Rosa). O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969) é um "serial remake" mais político, colorido e alegórico do clássico Deus e o diabo, e coloca a questão noutra clave.

O cineasta baiano, um dos mentores do cinema novo e um dos mais importantes do Brasil, levou a cabos extremos seu gosto barroco, aproximando-os dos volteios e torneios gramaticais de linguagem do escritor (embora com temperamento e propósitos diversos) - veja-se, por exemplo, seu filme Di (1977), funeral celebratório do triunfo da arte contra a morte. Ao associar signos de repertórios discrepantes, enfeiados em complexa tessitura do imaginário mítico e alegórico, o estro contundente e vigoroso do cinema de Glauber incorpora tropos e topoi de Guimarães.

Os anos 90 apresentaram exemplos que buscavam reinscrever essa árida paisagem mítica num outro cenário, em diferentes horizontes, com filmes como Crede-mi (Bia Lessa e Dany Roland, 1997), que encena Thomas Mann no nordeste, e O sertão das memórias (José Araújo, 1966), que recupera a semeadura de sua família.

O feitio e o feitiço da retórica do autor João Guimarães Rosa são sua escritura encravada no solo regional,mas com raízes brotando planetárias (metafísica materialista?). As possibilidades de adaptação da sua obra fascinam porque não morrem, mas porque ficam encantadas.

Como Magma, seu único livro de poemas, que só foi lançado após sua morte, a transposição cinematográfica de sua literatura talvez ganhe outras dimensões justamente por este sentido de im/permanência (da vida e da escritura). O mistério da experiência de radicalidade é a proeza da prosa poética de Rosa. Seu leme e mote: travessia.


* Texto copiado da revista Cult, fevereiro de 2001.

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