João Cabral de Melo Neto: o ambiente cultural, as primeiras poesias e o poeta diplomata



Apesar de ser primo, pelo lado paterno, do poeta Manuel Bandeira e, pelo lado materno, do escritor sociólogo Gilberto Freire, até os quinze anos de idade João Cabral não havia demonstrado interesse pela literatura, mas sim pelo futebol. Em 1935 jogava pelo juvenil do América, seu time de devoção. Depois tornou-se campeão pernambucano ao participar do Campeonato Juvenil pelo Santa Cruz.

O interesse pelo poesia só viria em 1936 quando descore uma antologia de poetas modernos e entra em contato com os poemas de Manuel Bandeira, Jorge de Lima e Carlos Drummond de Andrade.

Os anos trinta foram de especial importância para a literatura brasileira e caracterizou-se pela literatura regionalista de Graciliano Ramos e Guimarães Rosa e pela poesia de Cecília Meirelles e do mineiro Carlos Drummond de Andrade. O movimento modernista de 1922, que insurgiu contra o parnasianismo, criou espaço para o aparecimento desta importante geração de escritores. Quem se iniciava na literatura na década de 30 tratava de assimilar a melhor contribuição que os poetas e escritores de 30 traziam e, a partir dali, buscar seus próprios caminhos.

"O Carlos Drummond de Andrade, quando eu li ainda no Recife, foi uma revelação. Eu tenho a impressão de que eu escrevo poesia porque eu li o primeiro livro dele Alguma poesia. Foi ele quem me mostrou que ser poeta não significava ser sonhador, que a ironia, a prosa cabiam dentro da poesia."
(João Cabral de Melo Neto)

E foi esse o percurso de João Cabral. Através da poesia abre-se para ele todo o universo da arte em que ele mergulha, transformando-se num grande intelectual.

Em 1938, em Recife havia um grupo de intelectuais interessados em literatura e foi com eles que Cabral primeiro dialogou. Uma roda literária que circulava no Café Lafaiete e se reunia em torno de Villes Levy e do pintor Vicente do Rego Monteiro. Ville Levy dava especial atenção aos surrealistas e incentivava os jovens escritores para que lesse novos autores principalmente os franceses.

Cabral, então, começa a se influenciar pela poesia de Baudelaire e Mallarmé, mas foram os ensaios críticos de arquitetura, de Paul Valéry, que mais influenciaram o pensador e intelectual João Cabral de Melo Neto. Nessa mesma época foi construída a primeira grande obra cívica da arquitetura moderna brasileira, que é o prédio do Ministério da Educação de Le Corbusier, Niemeyer, dos irmãos Roberto e Lúcio Costa com quem, finalmente, nós o Brasil, ingressava na arquitetura moderna e João Cabral esteve inserido nesse clima.

João Cabral era um autodidata e não se animou a fazer nenhum curso superior. Começou a trabalhar. Surgem os sintomas de uma forte dor de cabeça, celebrizada nos versos Num monumento à aspirina e que acompanharia ao longo da vida, fragilizando sua saúde. Num período de hospitalização Cabral intensificou seu interesse pela poesia. Datam dessa época seus primeiros poemas.

Ó jardins enfurecidos,
pensamentos palavras sortilégio
sob uma lua contemplada;
jardins de minha ausência
imensa e vegetal;
ó jardins de um céu
viciosamente freqüentado:
onde o mistério maior
do sol da luz da saúde?
(Pedra do Sono)

"João começou a escrever por volta de mil novecentos e poucos, mas trancava tudo nas gavetas. Ele só ia escrevendo e trancando. Ninguém via nada. Em 1940 nós fomos passar umas férias no Rio de Janeiro e ele mostrou as poesias dele a Murilo Mendes que escreveu, no Jornal do Brasil, um artigo sobre o poeta de 20 anos. Eu li essa notícia e como eu era meio bisbilhoteiro e além de bisbilhoteiro eu era o primogênito, criado dentro daquele regime do norte em que o primogênito tem uma certa ascendência sobre os demais, eu procurei descobrir onde é que João guardava esses escritos.Descobri, tirei e mostrei a papai. Papai gostou e procurou a Empresa Gráfica Brasileira que a era a melhor tipografia que tinha naquele tempo, aqui em Recife, e assim nasceu Pedra do sono"
(Vinílio Cabral de Melo, irmão)

Essa viagem para o Rio de Janeiro foi um marco na vida de João Cabral. Ele foi apresentado, por Murilo Mendes, a Carlos Drummond de Andrade e ao círculo de intelectuais que se reunia no consultório médico do escritor Jorge de Lima. Influenciado pelo humor amardo de Drummond em sua primeira fase e pela poesia imagética de Murilo Mendes, Cabral estreou na poesia com Pedra do Sono, um livro com influências surrealistas. Nesse mesmo ano de 1942 o poeta mudou-se para o Rio de Janeiro e começou a escrever O engenheiro onde radicalizava seus processos construtivistas negando definitivamente o surrealismo e o subjetivismo.

"Eu era muito amigo de Joaquim Cardozo que era o calculista de cimento armado de Oscar Niemeyer e tudo isso me encorajou muito a levar a poesia pra esse lado arquitetônico."
(João Cabral de Melo Neto)

A vida no Rio transcorreu intensa. Cabral freqüentava os intelectuais que se reuniam no Café Amarelinho e no Café Vermelhinho no canto da cidade. Publicou, nesta época, Os três mal amados inspirado no poema "Quadrilha" de Carlos Drummond de Andrade e ficou amigo do poeta Vinicius de Morais que sempre considerou como seu irmão. 

Em 1945, prestou concurso para a carreira diplomática para a qual foi nomeado em dezembro. Em 1946, Cabral se casou com Stela Maria Barbosa de Oliveira, com quem teve cinco filhos. Em 1947, em função da carreira diplomática passou a viver fora do Brasil.

Curiosamente o primeiro livro importante de João Cabral chama-se O engenheiro, mas poderia se chamar O Arquiteto, pois a influência que teve da arquitetura foi marcante. A descoberta da arquitetura e das teorias de Le Corbusier acontecem ainda no Recife por intermédio de um grupo de arquitetos com os quais conviveu.

Quando veio a público sua poesia chocava. A secura da linguagem, o rigor construtivo do poeta que não acreditava em inspiração punha em cheque toda uma tradição. Cabral passou então a ser combatido pela crítica e pelos escritores em 1945. Acusavam-no de ser um poeta sem alma, que fazia poemas frios, racionalistas, medidos a fita métrica e sem coração.

Apesar das críticas, a poesia de Cabral se manteve impassível em suas convicções estéticas. Em diversos depoimentos dados à imprensa durante toda a sua vida ele sempre deixou clara a sua posição.

A luz, o sol, o ar livre
envolvem o sonho do engenheiro.
O engenheiro sonha coisas claras:
superfícies, tênis, um copo de água.

O lápis, o esquadro, o papel;
o desenho, o projeto, o número:
o engenheiro pensa o mundo justo,
mundo que nenhum véu encobre.
(trecho do poema O engenheiro)

"A poesia é uma linguagem para a sensibilidade. E a prosa é uma linguagem pra razão. São duas maneiras muito categóricas de ver a coisa porque existe uma prosa como a do James Joyce - é um prosa que é poesia também - e existe uma poesia como a do Carlos Drummond - é uma poesia que também é prosa. Poesia e prosa são dois extremos mas exatamente o poeta e o prosador muitas vezes ganham de jogar em dois lados. O que acontece com muitos poetas é que eles escrevem os poemas e depois poetizam o poema. Eu tenho a impressão de que a poesia é uma forma de expressão diferente da prosa e não é preciso poetizar o poema. O poema bom, o poema verdadeiro já é poético, não precisa fazer poético. A poesia é - nós estivemos falando de corrida de touros - aquele meu poema sobre Manolete termina assim, sem perfumar sua flor, sem poetizar seu poema"
(João Cabral de Melo Neto)

Eu vi Manolo González
E Pepe Luís, de Sevilha:
precisão doce de flor,
graciosa, porém precisa.

Vi também Julio Aparício,
de Madrid, como Parrita:
ciência fácil de flor,
espontânea, porém estrita.

Vi Miguel Báez, Litri,
dos confins da Andaluzia,
que cultiva uma outra flor:
angustiosa de explosiva.

...

Mas eu vi Manuel Rodríguez,
Manolete, o mais deserto,
o toreiro mais agudo,
mais mineral e desperto,

o de nervos de madeira,
de punhos secos de fibra,
o de figura de lenha.
lenha seca de caatinga.

...

Sim, eu vi Manuel Rodríguez,
Manolete, o mais asceta,
não só cultivar sua flor
mas demonstrar aos poetas:

como domar a explosão
com mão serena e contida,
sem deixar que se derrame
a flor que traz escondida

e como, então, trabalhá-la
com mão certa, pouca e extrema:
sem perfumar sua flor,
sem poetizar seu poema.
(trecho de Alguns toureiros)



João Cabral de Melo Neto viveu quarenta anos no exterior, em diversas e constantes países: Espanha, Inglaterra França, Senegal, Mauritânia, Guiné, Equador, Honduras, Portugal... desenvolvendo, lá fora, boa parte de sua obra literária. Na Europa, Cabral ampliou suas impressões do Brasil e nunca se esqueceu de Pernambuco, além de manter contato com intelectuais e artistas brasileiros que o visitavam no exterior ou trocavam correspondências com o poeta.

Viver na Espanha e conhecer a cultura espanhola fez, curiosamente, o olhar de João Cabral voltar-se para a poesia e o romanceiro popular do Nordeste. Pode-se dizer que ele passou por uma espécie de conversão e não pode fugir da literatura regionalista de sua época, cujo último representante foi o escritor Guimarães Rosa.

Sevilha de noite: a Giralda,
iluminada, dá a lição
de sua elegância fabulosa
de incorrigível proporção.

...

(trechos de A Giralda)

De todos os países em que esteve, o mais decisivo para sua vida e obra foi a Espanha. Cabral morou diversas vezes e por longos anos nas cidades de Madri, Barcelona e Sevilha. Nesses períodos aprofundou-se na literatura espanhola desde a leitura de "El Cid" até os poetas contemporâneos. E se deixou fascinar pela região da Andaluzia, elegendo para si a cidade de Sevilha. Além de Recife, Sevilha foi a cidade em que ele mais gostou de viver. Considerava-se regionalista não só em relação a Pernambuco mas, também era regionalista na Espanha. Apesar de ter vivido em Barcelona e Madri, João Cabral considerava-se sevilhano.

"Há que sevilhizar a vida. Há que sevilhizar o mundo."
(João Cabral de Melo Neto)
Pernambuco. Aos poucos, sem abandonar a linhagem profundamente nordestina de seus poe 
O cigano desliza por encima da terra
não podendo acima dela, sobrepairado;
jamais a toca, sequer calçadamente,
senão supercalçado: de cavalo, carro.

O cigano foge da terra, de afagá-la,
dela carne nua ou viva, no esfolado;
lhe repugna, ele que pouco a cultiva,
o hálito sexual da terra sob o arado.

De onde, quem sabe, o cigano das covas
dormir na entranha da terra, enfiado;
dentro dela, e nela de corpo inteiro,
dentro mais de ventre que de abraço.
Contudo, dorme na terra uterinamente
dormir de feto, não o dormir de falo;
escavando a cova sempre, para dormir
mais longe da porta, do sexo inevitável.
(trecho de Nas covas de Baza)

O primeiro posto consular de João Cabral foi em Barcelona em 1947. Lá o poeta tornou-se amigo pessoal de importantes artistas catalãos como os pintores Juan Miró e Anton Tapis e o escritor visual Joan Brossa, um grupo de intelectuais que se reunia em sua casa, na Calles Montanier, para trocar idéias sobre arte e política.

A Espanha estava vivendo um dos períodos mais difíceis do regime ditatorial do General Francisco Franco e suas fronteiras estavam fechadas. Para os artistas, uma vez que a arte contemporânea era proscrita pelo regime franquista, a convivência com João Cabral significava a possibilidade de estarem em contato com novas idéias e de manterem-se informados sobre o que acontecia no mundo exterior.

João Cabral, por sua vez, era um crítico extraordinário e, com sua visão marxista, procurava influenciar este grupo de artistas na produção de uma arte mais humanista e menos apegada às correntes de vanguarda da época como o surrealismo e o dadaísmo.

Em Barcelona, Cabral aumentou suas considerações sobre o livro como suporte instrumental e artístico do poema. Ao lado das artes plásticas, o amor pelas artes gráficas se tornou tão manifesto que o poeta adquiriu uma pequena tipografia artesanal com a qual imprimia livros de poetas brasileiros e espanhóis, além de seus próprios poemas.

João Cabral era muito cuidados e maneja a prensa com grande precisão. Ele chamava estas publicações de livro inconsútil. Desta tipografia saíram Psicologia da composição, de sua autoria e a primeira edição de Sonetos de Caruixa do espanhol Joan Brossa que, até então, nunca tivera um trabalho seu impresso em livro. O aspecto gráfico da obra de João Cabral, embora não tenha sido bem destacado, é quase tão importante como a própria poesia porque um complementa a outra.

Em 1950, Cabral publicou por sua própria editora O cão sem plumas e em 1954, O Rio. Nessa época, acusado de comunista e de fazer poemas engajados, foi obrigado a retornar ao Brasil e colocado em disponibilidade não remunerada pelo Itamaraty enquanto respondia a inquérito.

Segundo o próprio João Cabral foi este um acontecimento sem grandes conseqüencias e após três anos ele retomou, normalmente, sua carreira diplomática.

"Não pensei em fazer literatura engajada ou não engajada. Eu fazia o poema pensando em fazer bem o poema. O que se pode chamar de literatura engajada, na minha poesia, são os temas da seca, da miséria do Nordeste. São os temas dos romancistas do Nordeste, temas que estão presentes em toda a literatura nordestina."
(João Cabral de Melo Neto)

No Brasil, João Cabral voltou a morar em Pernambuco entrando em contato com novos intelectuais como o ceramista Francisco Brenan e o escritor Ariando Suassuna, de quem logo se tornou amigo, entre outros.

Dando continuidade às suas concepções sobre o livro como suporte da poesia, João Cabral participou de um importante grupo chamado O Gráfico Amador, fundado por Aloísio Magalhães. Era um movimento de artistas pernambucanos, ligados às artes gráficas, que publicavam algumas edições em imprensa manual e apuravam o conceito do livro como um objeto artístico.

Nesta época Cabral lançou Aniki Bobo especialmente para O Gráfico.

João Cabral permaneceu no Brasil de 1953 até 1956. Neste período, além de publicou Poemas reunidos publicou Duas águas com os inéditos Morte e vida severina, Paisagem sem figura e Uma faca só lâmina, obras bastante influenciadas por sua vivência no exterior.

Morte e vida severina é uma homenagem às diversas literaturas ibéricas. A peça foi encenada em 1965 no TUCA, Teatro da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, com direção de Silnei Siqueira, adaptação de Roberto Freire, música de Chico Buarque de Holanda e o ator Paulo Autran no elenco. Tornou-se um marco na história do teatro brasileiro. Narra a trajetória do retirante Severino que foge da seca do sertão, em busca de sobrevivência no litoral. No caminho, ao invés da vida que tanto anseia só encontra a morte.

O sucesso da montagem e da música, que foi tema da peça, tornaram João Cabral conhecido do grande público, mas nem por isso assimilado. Sua poesia, altamente intelectualizada, é difícil para o leitor comum, por isso, até hoje, em função da adaptação teatral, Morte e Vida Severina é um dos seus trabalhos mais lidos, estudados e encenados.

Em Uma faca só Lâmina Cabral concretiza a trajetória da melhor poesia moderna que é a de permitir várias leituras e interpretações da obra e não aceitar o leitor passivo.

Paisagem com figuras é considerado seu momento espanhol. Entre outros poemas sobre a Espanha encontra-se o importante "Alguns Toureiros" onde mais uma vez Cabral define suas idéias sobre poesia e metapoesia. O poema "Pregão Turístico de Recife" teve uma edição de 20 exemplares ilustrados pelo O Gráfico Amador.

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* O texto desta post é uma adaptação livre do texto no site Alô Escola, da TV Cultura.

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