Vida e obra de Giosuè Carducci


Por Paul Renucci



Se há poetas cuja obra pode ser apreciada sem nenhuma referência a fatos biográficos ou a acontecimentos históricos de sua época, Giosuà Carducci não é um deles. Sempre solicitado pelos acontecimentos do dia ou pelo incidente pessoal, mais inclinado à polêmica do que ao recolhimento sereno, não se esquivando, quando é o caso, de compensar a rapidez da meditação pelo trovão da linguagem, Carducci responde bem à imagem de “eco sonoro”, de um eco posto no centro de um século singularmente rico em acontecimentos.

Não se deveria esquecer ainda que este poeta foi um professor e não o foi apenas de maneira acidental ou acessória como num Mallarmé; ensinou sem interrupção durante quase meio século, antes em estabelecimentos secundários (San Miniato al Tedesco, Pistóia) depois, desde a idade de vinte e cinco anos, na Faculdade de Letras de Bolonha, que ele não deveria mais abandonar. Sabe-se que foi mestre ativo, ouvido, que sua produção crítica teve repercussão pouco menor que a sua produção poética. Poucos criadores tiveram que se interessar tão constantemente pela história de seus antecessores e poucos poetas tanto tiveram que lidar com a poesia dos outros. E esta exigência se revela na erudição, às vezes alusiva, de bom número de seus poemas como ainda nas suas experiências de prosódia erudita, para não dizer do léxico às vezes utilizado, arcaizador ou latinizante.

Desdenhoso, iconoclasta, tumultuário

Giosuè Carducci nasceu a 27 de julho de 1835 em Val di Castello, secção da comuna de Pietrasanta (hoje Pietra-santa-Carducci) em Versília, na Toscana de nordeste, onde viveu seus três primeiros anos.

Seu pai, médico sem fortuna, teve que mudar muitas vezes de sede de clínica. Depois de Pietrasanta foi a vez de Bolgheri, depois Castagnetto Marittimo, depois enfim Laiático. A mais longa permanência foi em Bolgheri, onde os Carducci passaram nove anos. “Triste primavera” dirá mais tarde o poeta falando de sua infância, repartida entre um lar sombreado pelo humor de um pai tão irascível quanto melancólico, e os bosques ou as ribas semi-desertas, insalubres, entregues às emanações da maremma.

A vida era difícil para o Dr. Carducci, sustentado por uma clientela camponesa miserável. Além disto, suas opiniões políticas não favoreciam em nada a conquista de uma clínica mais afortunada; opiniões difíceis de definir com precisão. Nelas entrava, ao que parece, um pouco de espírito filosófico à maneira do século XVIII, uma certa dose de anti-clericalismo — não de agnosticismo, todavia — equilibrada, no testemunho de seu filho, por uma viva admiração pelo muito católico Alessandro Manzoni, finalmente muito patriotismo, desse patriotismo sentimental e tenebroso dos homens do Risorgimento. Em suma um “mal pensant”, antes que um revolucionário. Era contudo mais do que o necessário para suscitar a antipatia da boa sociedade das aldeias da Toscana onde exercia a profissão e para alienar-lhe a simpatia de um povo facilmente irritável por atitudes não conformistas.

Os acontecimentos de 1848-1849 agravaram o clima de hostilidade em que viviam os Carducci. Em menos de dois anos, tiveram que mudar três vezes de residência. Em Castagnetto Marittimo, um tiro de fuzil atingira o doutor. Em Laiático sobreveio um incidente que merece ser referido, porque descreve bastante bem o caráter de um homem de quem o jovem Giosuè herdou as impulsões agressivas e o gosto dos rompantes.

Estávamos em 1849: a revolução havia malogrado, na Toscana como alhures, e a população do Laiático festejava o retorno do Grão-Duque. Levava-se em procissão uma estátua de gesso do soberano diante da qual todos se descobriam. O Doutor Carducci recusou-se a tirar o chapéu e, depois, mais vigorosamente ainda, a beijar o “ídolo” como se lhe intimava. Aos protestos pontilhados de ameaças que se elevavam, em torno dele, ele respondeu despedaçando a estátua a bengaladas. Seguiu-se um conflito de que emergiu em estado lastimável.

Será motivo de espanto que depois disso seu filho se haja revelado desdenhoso, iconoclasta, tumultuário?

Obrigado, depois disso, a abandonar Laiático, a família mudou-se para Florença. O jovem Giosuè, que atingia então os seus catorze anos e não tinha tido até então outro mestre além de seus pais, foi posto no colégio dos Scolopi (a palavra é uma deformação de Scuole Pie, “escolas pias”). As lições paternas, completadas por leituras abundantes, embora um pouco desordenadas, parecem ter sido eficazes, porque três meses após a admissão aos Scolopi, Giosuè foi aprovado com sucesso em seu primeiro exame. Recordando-se talvez das batalhas travadas entre os moleques aldeões, em que seu filho se distinguia por seu ardor, tanto em Bolgheri como em Castagnetto Marittimo, o doutor pensou de início em orientar o filho para a carreira das armas, enviando-o ao Liceo Militare, mas desistiu da ideia. Giosuè prosseguiu nos seus estudos “civis”, fez dois anos de retórica (1849- 1851), depois frequentou um curso de ciências (1851-1852). Brilhante aluno, recebeu nos seus últimos exames a nota mais alta, com felicitações múltiplas, a pieni voti e pluralità di plauso. Lia então com paixão, quase que com furor, tudo o que chegava ao seu alcance: depois de Os Noivos de Manzoni, caro a seu pai, enfrentou as grandes obras épicas: A Ilíada, a Eneida, a Jerusalém Libertada, depois passava aos poemas cavaleirescos, o Orlando Amoroso de Boiardo, o Orlando Furioso de Ariosto, finalmente estendia suas leituras a numerosos gregos, como o “fatal Homero” e os italianos do último meio-século. Durante esta primeira fase de sua informação literária, parece haver sido atraído principalmente pela poesia épica e a poesia satírica.

Os primeiros sonetos aos catorze anos 

Não contente de ler abundantemente, começou a escrever versos em que se refletem preferências saídas dessas explorações literárias. Ele se ensaia no gênero épico num poema em oitavas sobre a tomada de Bolgheri pelo rei Ladislau de Nápoles e uma série de tercetos sobre a morte de César (sem falar de uma tradução, em tercetos igualmente, do canto IX da Ilíada) antes de exercer-se no epigrama e de censurar em verso alguns dos seus mestres ou condiscípulos. Compôs igualmente com a idade de catorze anos dois sonetos de inspiração menos guerreira ou polêmica: “A Minha Mãe” e “A Vida”.

Em abril de 1851, o pai que morava em Florença, mais dificilmente do que nunca obteve o emprego de médico comunal (medico condotto) em Celle, secção da comuna de San Casciano dei Bagni: foi nomeado, provisoriamente, por seis meses, com os vencimentos mensais muito modestos de cem liras, verdade que com a promessa de um aumento de vinte liras cada mês. Seus começos foram penosos: vinha precedido de uma reputação de revolucionário perigoso; não tinha de resto obtido seu posto senão pelo fato de haver sido o único a pleiteá-lo. Mas é preciso crer que o iconoclasta de Bolgheri, de Castagnetto Marittimo e de Laiático se havia moderado um pouco, porque desarmou rapidamente todas as prevenções. Fez valer em seu favor testemunhos convincentes, conduziu-se com cautela, provou sua competência profissional, sub-repticiamente posta em dúvida por causa de suas idéias políticas e finalmente a 30 de junho de 1851 fez-se efetivar nas funções, que lhe haviam sido confiadas a título precário. Não se tornou rico com isso, mas esteve em condições de fazer vir a sua família de Celle: Giosuè aí vinha encontrar nas férias a sua mãe e seus dois irmãos Dante e Valfredo.

Férias sem encanto, a acreditar-se nas alusões que iria fazer mais tarde. Sua mãe era uma mulher apagada, resignada, que se consolava na igreja dos acessos de mau humor de um marido desde então mais interessado no vinho que na política (sabe-se também que Giosuè foi um honrado apreciador do Chianti). Seus irmãos parece não lhe haverem profundamente interessado. Com pesar de seus amigos florentinos e das bibliotecas em que era muito assíduo, não chegou a aclimatar-se. O local de predileção de sua infância continuou sendo sempre Bolgheri, enquanto ele trata Celle de asilo de serpentes e as jovens que aí encontrou de satânicas harpias: limita-se a princípio a ler, a ler sempre, isolado de todos ou a meditar sempre sozinho sobre as encostas vizinhas. No auge do tédio, ele reunia em sua casa as crianças da aldeia para ensiná-las a ler e a cantar em coro hinos patrióticos.

Moço, descobre a poesia do século XVIII

Recomeça a escrever versos em que prevalece desta vez a influência de Foscolo e, em menor grau, de Monti (cf. por exemplo “Aos Italianos” na coletânea Juvenília). Seguindo as pegadas de seu pai, cuja acomodação política se acompanha de um acréscimo de religiosidade, compõe poemas religiosos à santa glória de Santa Isabel e de São João Batista. Chega a escrever uma peça que renegará mais tarde e que foi na ocasião orgulhosamente recitada pelo Doutor Carducci: celebra a outorga do título de “cidadão honorário de Acquapendente” ao cardeal Caterini.

Em 1853, após ter enviado ao seu professor dos Scolopi, o Padre Barsottini, versos que acabava de compor sobre a primeira cruzada (não é demais acrescentar que fez esses versos sob a inspiração da Jerusalém Libertada de Tasso) foi convidado a apresentar-se ao concurso de recrutamento da Escola Normal Superior de Pisa: aprovado, entrou na escola a 17 de outubro.

Desta época, datam certas amizades que não foram sem efeito sobre a sua formação espiritual e moral: com seu condiscípulo florentino Nencioni, com Ercole Scaramucci, grande amador de literatura italiana. Foi no decorrer de suas conversações com Nencioni e mais ainda com Scaramucci que se aprofundou mais na poesia do século XVIII. Compôs então sonetos a Parini, a Metastásio, a Goldoni, a Alfieri a Monti que se seguem no livro III da Juvenília. Entrementes, estuda Petrarca de maneira mais escolar.

Um homem sem ponderação

Quando Scaramucci morreu prematuramente, seu jovem amigo lhe pronunciou, chorando, o elogio fúnebre, do alto do púlpito da igreja de Celle. O elogio vinha de um adolescente que frequentava muito pouco esta igreja, embora o Padre Barsottini o tivesse recomendado quando do concurso de ingresso em Pisa, como um jovem “cristãmente e civilmente bem educado”. (O padre de Celle, mais reservado, certificou apenas que Giosuè Carducci tinha vivido até então “retirado” e que se entregava aos estudos com ardor.) Scaramucci era ali celebrado como um homem todo dedicado à Igreja, inimigo mortal da anarquia, cordial com os pobres, mas “que não imergia nem por isto no lodo da populaça”, patriota com certeza mas sem “o sinistro furor dos demagogos nem os miseráveis devaneios dos utopistas” (expressão que visava claramente os partidários da unidade italiana). Estranha linguagem a deste jovem estudante que reunia os meninos da aldeia para ensinar-lhes cantos patrióticos! Será o caso de aí ver o sinal de uma extrema indecisão de pensamento ou índice de um gosto de retórica que não tem para marcá-lo ainda nenhuma preocupação de sinceridade? Se o elogio não tivesse que ser pronunciado do alto de um púlpito, talvez Carducci tivesse desenvolvido temas menos conservadores... O que surpreende um pouco, é que tendo ele querido conformar-se com uma linguagem convencional, o tenha feito tão claramente, sem a preocupação de descobrir um meio-termo entre a apologia cantada da unidade italiana e a reprovação declamada do mesmo ideal. Retenhamos esta primeira manifestação pública de seu temperamento excessivo: outras passagens bruscas de determinada atitude para a atitude inversa esmaltarão a sua vida, quer se trate de política, quer de religião, quer de poesia. A ponderação não constituiu jamais seu forte. Tinham-no ouvido pouco antes na Academia dos Filomusi, onde ele encontrava certo número de seus condiscípulos florentinos, pronunciar um discurso inaugural que passava em revista a história da Itália (a inspiração deste discurso se encontrará nas estrofes da Canção de Legnano); dessa vez exaltava o valor guerreiro de seus compatriotas e glorificava os revolucionários que se tinham batido como leões e convidava imperiosamente os jovens italianos para fugirem das seduções de um século “vil entre todos” para se conduzirem como patriotas decididos.

O seu sucesso no concurso de ingresso na Escola Normal Superior de Pisa constituiu uma das grandes alegrias de sua vida, como o atestam as cartas a seu amigo Gargani e a sua noiva Elvira Menicuccio, com quem ele se casará seis anos mais tarde. la fruir três anos de segurança material e de independência. Mas ia baixar de tom: não que a sua segurança ou independência fossem menores do que tivesse esperado, mas sentiu que seus professores eram medíocres, pedantes, muito pouco a par da literatura italiana, julgada politicamente perigosa. Não se saía quase que dos estudos dos antigos: quanto ao resto, ele tinha que limitar-se às palestras com os amigos, junto ao cais do Arno ou em certos cafés, e às leituras pessoais.

Dificuldades financeiras

Chegado o verão de 1854, Carducci que tinha obtido alguns meses antes a isenção do serviço militar por suas condições de estudante, foi passar as férias com a família. Viu que a população de Celle estava bastante excitada contra seu pai, que, por motivos de ordem profissional, havia esbofeteado o prefeito e tinha sido condenado pelo tribunal de Montepulciano, o que o obrigara a demitir-se de seu emprego e a deixar a aldeia. O Doutor Carducci tinha abrandado as suas opiniões, mas não o seu humor. Para conseguir uma situação, teve que solicitar o posto pouco rendoso (que ele novamente conseguiu na ausência de qualquer concorrente) de médico-cirurgião da vizinha comuna de Piancastagnaio. As condições econômicas da família foram duramente atingidas e em junho de 1855, Giosuè viu-se desprovido de dinheiro a ponto de não poder pagar as trinta e quatro liras de taxas de exame, exigidas para o diploma de doutorado. Felizmente entabulou relações com Pietro Thouar que dirigia em Florença um periódico, o Appendice e que, para tirá-lo de suas dificuldades, lhe ofereceu a soma necessária, em pagamento de artigos publicados na sua revista.

As inclinações românticas da aurora de sua vida

Foi aparentemente por motivos financeiros que Giosuè Carducci, com a idade apenas de vinte anos, se pôs a compor uma antologia de poesia italiana, destinada às escolas: À Harpa do Povo, seleção de poesias religiosas, patrióticas e morais. Essa coletânea divide-se em três partes: Deus e Religião, o Homem, a Pátria, e vai desde a Vita Nuova de Dante até à poesia popular mais recente, a estas coplas ou stornelli que Carducci e seu amigo Scaramucci tinham ouvido nas paragens de Celle. A grande parte concedida às composições populares antigas e modernas atesta uma concepção romântica da literatura: falava-se muito da importância que reveste na história da civilização a produção “espontânea” de obras épicas e líricas da parte do povo. Note-se ainda que o pensamento de Herder, a sua concepção do Volksgeist teve uma fortuna mais notável junto à segunda geração romântica italiana que junto à primeira — e é precisamente ao nível da segunda vaga — que se elabora a antologia do jovem Carducci. Outro sinal de seus pendores românticos nesta época de sua vida: o acento que no prefácio da antologia punha na utilidade moral da arte, de acordo com a recomendação de Manzoni que almejava que a literatura tivesse “o útil por fim”. Éle apenas procurava reproduzir poemas capazes de despertar no povo “sentimentos bons e úteis”, disposto a excluir sem pena, aqueles “que entretêm a superstição e provocam o egoísmo e a indolência”. Se mais tarde ele, considerável e violentamente se afastou do Romantismo, conservará assim mesmo no seu volume Primavera e Flor da Literatura Italiana (1903) numerosos textos incluídos na sua antologia de juventude. Ao mesmo tempo que a Harpa do Povo, prepara uma antologia latina em que se compraz em revelar em notas, seja locuções que sobrevivem no italiano moderno, seja imitações bem logradas de alguns autores latinos por escritores italianos.

O ano de 1855 foi o do doutorado. Aprovado, Carducci dirigiu-se à casa paterna em Piancastagnaio depois de uma parada em Florença onde reviu seus amigos Nencioni, Gargani, Pietro Thouar. A população de Piancastagnaio não lhe pareceu nem mais evoluída nem mais simpática do que a de Celle, mas a situação da aldeia o consolou um pouco de seus habitantes. A amplidão do horizonte que se descobria para o sul, no vale do Paglia, afluente do Tibre, a frescura do lugar (quase 800 metros de altitude), a pureza dos riachos, a linha harmoniosa das montanhas circundantes entre as quais se eleva o monte Amiata, seduziram-no rápido. Depois de um ano de labor intenso, encontrava-se no seio de uma natureza que lhe devolvia a força e a calma. Mas suas férias foram mais movimentadas do que previra; uma epidemia de cólera devastou a região, submetendo o seu pai a rude prova. Dos meados de agosto aos meados de setembro, Giosuè dedicou-se corajosamente, noite e dia, a ajudar ao médico sobrecarregado a fiscalizar nas casas a aplicação dos regulamentos de higiene (chegou mesmo a redigir prescrições sanitárias por encomenda da municipalidade). A dedicação do pai e do filho granjearam-lhes as simpatias da população até então reticente e lhes valeram felicitações oficiais, sem contar algumas recompensas materiais que por modestas que tivessem sido, não deixaram de ser bem-vindas.

No grupo do Appendice, defensor do classicismo

Em novembro, Giosuê volta a Pisa. Êste último ano, passado na Escola Normal Superior, não será menos ativo que o anterior. Carducci continua a trabalhar em sua antologia latina, prepara seu exame de ingresso no magistério, troca numerosas cartas com Pietro Thouar, Gargani e outros amigos como Chiarini e Targioni. Vai-se constituindo um cenáculo em torno da revista de Thouar, o Appendice. Das cartas escritas por Carducci em 1855-1856 deduz-se que a intenção primordial do cenáculo era defender o classicismo contra os excessos ou os “langores” do romantismo que parece caminhar em direção de um realismo “decadente” pouco apropriado às tarefas morais e políticas do presente e do futuro próximo. A batalha é desencadeada em nome da italianidade, representada em literatura, conforme quer o grupo do Appendice, por Dante, Petrarca, Alfieri, Parini, Monti, Foscolo, Leopardi. Um membro do grupo, particularmente ligado a Carducci, Chiarini, sustentará mesmo na revista que é urgente banir dos currículos o francês, para dar lugar às obras-primas italianíssimas próprias a reconduzirem a mocidade ao são classicismo e a reaquecerem o sentimento nacional. Do cenáculo nasceu um volume, Poesias Líricas Italianas, em que os “bons autores” são comentados, destinado às moças: este interesse pela educação feminina é muito notável para a época.

O grupo do Appendice entendia sustentar o classicismo pelo exemplo e não apenas pela polêmica. Carducci, de seu lado, compôs diversos poemas, concebidos para ilustrar seu ideal clássico do momento, entre outros a canção “A Enrico Pazzi” (Juvenília) dedicada a um escultor que trabalhava em bustos de grandes poetas italianos. Escreveu pelo mesmo tempo: “Para a mulher de meus pensamentos”, a “Ode a Targioni”, “Febo, Apolo”, “A Giulio Partenio”, os sonetos “A. F. T.” e “A.N.F. P.” e o “Brinde” do livro II de Juvenília. Basta lembrar as duas estrofes deste último poema para dar uma ideia do vigor das convicções anti-românticas de Carducci nesta época:

Gema sobre o astro pálido 
Lassa a enferma pupila,
A celerada, abstêmia, 
Romântica família.
A nós, progênie itálica, 
Riam deuses do Lácio
E mais a mãe dos Ênios 
E a harmonia de Horácio.

Suas convicções patrióticas não são menos ardentes, embora não se exprimam sempre numa linguagem que possa ser imediatamente “útil ao povo”. Que se faça o julgamento à luz dessas duas estrofes do mesmo “Brinde” em que Carducci faz alusão à dominação austro-húngara na Lombardia e Vêneto, à soberania do Papa sobre Roma e ao apoio que a França empresta a essa soberania:

Quando o ginete húngaro 
Calca o vale ocneano
E freme o lítuo rético 
Onde Marão nasceu. 
Quando a túnica levítica 
Torna Roma sombria
E o guerreiro de Breno 
Perlustra a sacra via...

Veio o exame de qualificação magisterial: Carducci então se distinguiu por uma abundante lição sobre a poesia cortês e cavaleiresca. Logo em seguida ao seu êxito, dirigiu-se a Florença e daí em busca de sua família que havia mais uma vez mudado de residência. Descontente por não ter sido atendido numa reivindicação de aumento de salários, o Dr. Carducci havia deixado Piancastagnaio por Santa Maria del Monte, perto de San Miniato al Tedesco, onde Giosuè iria fazer precisamente a sua estréia de professor de liceu com os magros vencimentos de sessenta e cinco liras por mês.

Estas férias de 1856 foram mais aprazíveis que as precedentes. O jovem professor continuava a escrever versos e juntamente com os amigos florentinos a travar polêmicas contra o romantismo. Gargani vinha de publicar no Appendice, sob o título de “Tagarelice” um artigo em que protestava contra a invasão das livrarias italianas pelos autores estrangeiros. A imprensa florentina replicara de maneira viva. O cenáculo decidiu reagir, elaborando um pequeno volume de contra-réplica: “O acessório do principal”. Foi Carducci que redigiu a maior parte do panfleto; nele se mostrava mais anti-romântico do que nunca, redobrando de severidade para com Giovanni Prati, sua bête noire (recordemos de passagem que o soneto de tercetos duplos “A um poeta montanhês” de Juvenília era dirigido contra um professor acusado de admirar Prati), e não poupando Manzoni de quem êle outrora lia e relia Os Noivos.

Consequências de suas atitudes provocadoras

Embora o seu emprego no Liceu de San Miniato al Tedesco não lhe agradasse muito, preferiu-o ao cargo de preceptor de uma família rica que Pietro Thouar lhe havia oferecido. Descreveria com verve espantosa seu primeiro ano de ensino no texto célebre de “Recursos de San Miniato”. Mas onde teríamos a tentação de crer que tivesse forçado a nota ou a cor, parece, afinal de contas, que não disse tudo... Comportou-se de maneira agressiva e tão extravagante que provocou denúncias. Uma querela num café valeu-lhe uma advertência do subprefeito. Acrescente-se às suas maneiras provocadoras seu anticlericalismo ostensivo, que se manifestava por atitudes irreverentes para com a Igreja e refeições de salsichas nos dias de jejum, e compreende-se que pouco faltasse para que fosse demitido. Seu caso foi levado ao ministro que começou por ameaçá-lo; o rigor da autoridade atenuando-se na hora da execução, Giosuè safou-se, graças à tolerância de um prefeito indulgente, com uma simples advertência. Havia progredido um pouco, como se vê, desde o dia em que pronunciava em Celle aquele edificante elogio fúnebre de Scaramucci. O incidente custou-lhe a cadeira do Liceu de Arezzo que almejava, e a que de resto tinha direito por concurso, mas que lhe foi recusada, parece que pela intervenção do filólogo Piero Fanfani, indignado por sua conduta.

Perigo a que o expunha o seu “parti pris” de nacionalismo literário

Foi em parte para pagar as dívidas de moço que Carducci, cedendo a instâncias de amigos, publicou em 1857 suas Rimas. Dedicou esta coletânea, composta de vinte e cinco sonetos, de duas baladas e de uma laude, à memória de Leopardi e de Pietro Giordani. Falava pouco de amor. O único que aí se percebe é o amor da pátria ou a admiração pelos grandes modelos de que ele se inspira, às vezes muito estreitamente. A fatura clássica dos versos contrasta nestes poemas muitas vezes com estados de alma românticos, em que a influência das Últimas Cartas de Jacopo Ortiz de Foscolo é muito sensível. Os críticos que recriminaram ao poeta, nesse momento, sua falta de personalidade, tinham por certo alguma razão. Essas “rimas” só podiam parecer relativamente audaciosas pela insistência do poeta em exaltar a Itália, ainda dividida e em parte escravizada, ou pela veemência de seu anti-romantismo. Mas um patriota feroz como Guerrazzi, um liberal como Terenzio Mamiani julgaram o livro favoravelmente, sem se mostrarem todavia completamente satisfeitos. As reservas de Guerrazzi acham-se expressas numa carta dirigida, em 1857, a Silvio Giannini, um amigo de Carducci; o romancista do Cerco de Florença imagina que o jovem autor das Rimas estivesse diante dele e lhe dirige os conselhos seguintes:

“Não te cumpre ser nem latino nem grego, mas italiano, e homem de teu tempo: porque cada literatura deve oferecer à posteridade o testemunho da época que a produziu. Não te preocupes em sentir como Horácio ou pensar como Píndaro: sente e pensa por ti mesmo. Qual é esta inocência que te leva a desprezar tudo o que ignoras? A Inglaterra, a Alemanha e (coisa admirável de dizer) a Escandinávia, a Pérsia possuem tesouros de poesia, de uma poesia tão esplêndida de imagens e de uma sensibilidade tão requintada que em confronto com ela empalidece tudo o quanto conheces de grego e de latim e ai de nós, até mesmo de italiano.”

Mesmo um patriota tão determinado e irredutível como Guerrazzi descobria em Carducci um particularismo, um parti pris de nacionalismo literário que ameaçava tornar-se esterilizante.

Numerosos poemas das Rimas foram reproduzidos em Juvenília, que apareceu sob forma definitiva em 1880, retocados e melhorados pelo poeta que tinha tomado consciência de alguns dos seus defeitos ou excessos.

No outono de 1857, Carducci não voltou a San Miniato al Tedesco. Fixou-se em Florença onde morou até o começo de 1860, sem emprego oficial. Anos muito duros, sombreados pelo suicídio do irmão Dante (1857) e a morte do pai (1858). Giosuè viveu e fez viverem os seus, dos trabalhos de publicação que lhe foram confiados pelo editor Barbera por intercessão de Pietro Thouar. Em 1859 casou-se. No ano seguinte, foi nomeado para o Liceu de Pistóia. Não demorou muito no posto, porque os acontecimentos de 1859-1860 tinham feito de Terenzio Mamiani um personagem ministerial e Mamiani se lembrou do jovem poeta do qual havia apreciado as Rimas. Tendo sido oferecida ao romântico Giovanni Prati uma cadeira de eloquência italiana e este tendo-a recusado, Mamiani foi propô-la ao pior detrator de Prati, Carducci... e este aceitou a promoção inesperada. Foi assim que se tornou aos vinte e cinco anos de idade professor da Faculdade de Letras de Bolonha, posto em que continuará até a aposentadoria, em 1904, recusando-se a aceitar em 1887 a cadeira de Estudos Dantescos que lhe seria oferecida pela Universidade de Roma.

Sua paixão, a política, reservou-lhe mais contrariedades que alegrias

Suas inquietudes familiares que, de acordo com o seu testemunho tinham sido em 1859 bastante graves para impedi-lo de engajar-se em formações patrióticas que apoiaram e prolongaram a campanha dos franco-piemonteses contra a Áustria, viram-se diminuídas por sua nomeação para um emprego seguro e respeitável. A partir de então a sua vida ia tornar-se menos movimentada. Ela dividiu-se quanto ao essencial, entre sua família (teve quatro filhos: três filhas dotadas de nomes literários — Beatrice, Laura — ou políticos — Liberdade — e um filho de nome Dante, que morreu aos três anos de idade em 1870 quase que ao mesmo tempo que a mãe do poeta), sua atividade de professor que foi intensa e fecunda, a poesia e a política. Na verdade, a política por que tinha paixão lhe reservou mais contrariedades que alegrias. Em 1868 sua atitude hostil ao governo valeu-lhe uma transferência para a Universidade de Nápoles: se chegou a evitá-la, teve de aguentar uma suspensão de funções e vencimentos por ter participado de um banquete republicano e assinado depois uma mensagem a Mazzini. Pouco tempo depois, a sanção era relevada. Em 1876, foi eleito deputado republicano; mas como a lei prescrevia um limite ao número de parlamentares professores (pois estes foram muito favorecidos pelo corpo eleitoral), um sorteio eliminatório excluiu-o da nova Câmara. Dois anos mais tarde, a Rainha da Itália veio em visita oficial a Bolonha; para espanto de todos, Carducci considerado até então como republicano indomável, celebrou a soberana numa ode não privada de certa ênfase — alguns disseram de servilismo. (“A Rainha da Itália”, incluída nas Odes Bárbaras). De fato era a Rainha e não a monarquia que o poeta glorificava, sem se esquecer de recordar em sua homenagem que era um homem das tempestades:

E a ti voando uma estrofe alcaica 
Nascida em árduos tumultos, livre, 
Gira três vezes por tua fronte 
Com esta asa que sabe a procela.

Esta estrofe não deixa de marcar o começo de uma pacificação política, amplamente confirmada depois. Em 1886, Carducci foi de novo candidato às eleições legislativas, mas com a legenda da “oposição ministerial” e não mais sob o rótulo de “republicano”. Derrotado, teve que contentar-se com um lugar no conselho municipal de Bolonha, até o dia em que foi nomeado Senador da República do Reino em vista não só de sua evolução para uma atitude mais moderada como ainda de sua notoriedade literária (1890). Evoluiu de tal maneira que aceita em 1981 ser o paraninfo da bandeira de um círculo monárquico. Indignados, os estudantes republicanos organizam contra ele uma manifestação no curso da qual é ligeiramente ferido. Quanto à sua notoriedade literária, não temos necessidade de recordar aqui que lhe valeu, depois de numerosas distinções menores, a alta recompensa do Prêmio Nobel de 1906, um ano antes de sua morte.

Seus cursos entre os mais apreciados da Universidade

Ele chegara a Bolonha, pleno de entusiasmo e a memória ressoante de leituras, mas pouco preparado para as funções de professor de universidade. Durante cinco ou seis anos, consagrou-se quase que inteiramente à sua própria formação. Explorou da maneira mais ampla, mais profunda e menos parcial, como nunca o tinha feito até então, o vasto domínio da literatura italiana. Seus cursos contaram-se logo entre os mais apreciados da universidade. Filólogo escrupuloso e orador brilhante, exerceu uma influência que não se limitou apenas aos que ouviam as suas aulas. Teve fiéis discípulos entre os quais o mais conhecido é Severino Ferrari a quem fez nomear professor adjunto em 1893. Seu sentido da eloquência, que não o abandonava, nem em prosa nem em verso, fez que amiúde o designassem como orador oficial das cerimônias comemorativas (centenários da Universidade de Bolonha, da morte de Petrarca e de Boccaccio, etc...). Por uma ironia da sorte, o homem que havia escrito em “Diante de São Guido”:

Nem também sou ainda um manzoniano 
A receber um quádruplo salário

recebeu em 1904, chegada a hora da aposentadoria, uma pensão anual de doze mil liras, recompensa nacional que até então só tinha sido concedida a um único escritor: Alessandro Manzoni...

Um sedentário

Este poeta, conhecido pela Europa inteira, não foi um grande viajante: mal saiu da Toscana, da Emília, ou das províncias vizinhas. Não atravessou nunca nem o mar nem os Alpes. À única cidade estrangeira que conheceu foi, em 1878, Trieste, então austríaca. Seu conhecimento do estrangeiro e mesmo da Itália insular ou meridional (exceção Eita da região de Nápoles) foi puramente livresco.

Não é necessário determo-nos sobre a parte de sua vida posterior a 1860 tanto quanto a sua adolescência e sua juventude. Foi no curso dos seus vinte e cinco primeiros anos que Carducci fez as experiências humanas e literárias mais decisivas. Recebeu então marcas que não o abandonaram nunca mais. Aprendeu a viver num mundo de aspirações confusas, de sonhos retóricos, de entusiasmos impetuosos e imprecisos que tinha bem ou mal que fazer coincidir com o mundo de suas inquietudes cotidianas, profissionais ou familiares, de pequenas dificuldades, de minúsculos problemas. Quando se produziram os acontecimentos em direção dos quais se sentia atraído de todo o seu coração, sentiu-os bem menores do que havia sonhado. Certamente dedicou mais de um poema à vitória do Piemonte sobre a Áustria em 1859, às rebeliões e às expedições do ano seguinte que concluíram na constituição do Reino da Itália, à guerra de 1866, que acarretou a anexação de Veneza, a ocupação de Roma em 1870. Dir-se-ia, porém, que sua satisfação não iria além da metade do que se esperava que fosse; seríamos tentados a admitir que a sua reserva relativa deve-se às suas preferências republicanas, que os sucessos da monarquia de certo modo o indispõem. Mas, examinando-se melhor, não podemos evitar a impressão de que ele não consegue fazer coincidir seu universo retórico ou poético com a versão que a história está na iminência de impor às suas esperanças. E a decepção o leva a recolher-se não sem acrimônia, para os pequenos lados deste mundo apartado da sua expectativa: personagens de segundo plano (cf. “Io triumphe” em “Iambos e Epodos XX”), ou incidentes menores que excitam a sua verve ácida de desencantado. Seu instinto polêmico diminuirá com a idade, sem que ele renuncie jamais inteiramente ao gosto da referência mordaz ou da maldição solene. Seu temperamento lhe havia ditado um papel e este papel acabou por se lhe impor.

Ausência do “eu” em seus poemas

A produção poética de Carducci abrange bem um meio século. Foi em maio de 1848, antes de ter atingido os treze anos, que traçou os primeiros versos conservados (o primeiro é um soneto a Deus...) e o seu último poema (uma quadra, “O Castelo de São Martinho”) traz a data de 10 de novembro de 1902. Levando-se em conta essa duração, a massa de sua produção poética pode parecer muito mo- desta; ela cabe inteira nos quatro primeiros volumes da edição nacional de suas obras que constam de trinta.

Um dos traços dominantes deste conjunto é a raridade de temas estritamente pessoais. À presença de Carducci nos poemas só se dá muito raramente através de sua autobiografia, de confidências, de efusões íntimas. Mal se entrevê aqui ou acolá um homem apaixonado ou tentado pelo amor (cf. além de versos de mocidade que não podiam passar de exercícios, “Aqui reina o amor”, “Visão”, “Idílio na Marema” em Rimas Novas, “Ruit Hora” que faz parte de Odes Bárbaras), e sem as indiscrições da crônica contemporânea não se conseguiria saber a que mulher, a que ligação se referem as estrofes alcaicas de “Na estação, uma manhã de outono”. É certo que se pode encontrar alhures um pai aflito pela morte do filho jovem (“Pranto antigo”), mas Carducci não pode ser incluído entre os poetas que Leconte de Lisle chamava de “exibidores”. Sua aversão pelo romantismo, pletórico dos abusos do eu, teria sido bastante para detê-lo do sestro de exibir aos olhos de todos o que pertencia apenas a ele.

Diz-se que jamais se desembaraçou de sua predileção de adolescente pela literatura italiana do século XVIII, predileção que tinha sido muito forte, num momento de sua vida, a ponto de fazê-lo ver em Metastásio uma “alma romana digna de viver em outros tempos” (“Pedro Metastásio” em Juvenília). Acrescentou-se mesmo que ele continuou, de muitos pontos de vista, um árcade. À opinião não é sem fundamento, se se consideram aspectos de seu método poético. Autor de inumeráveis versos dedicados ou dirigidos, tanto deveras como de maneira fictícia, às personagens mais diversas, ele guarda o instinto da poesia de circunstância tão cara à Arcádia. Mesmo nas Odes Bárbaras que formam a este respeito a coletânea menos característica, encontramos peças desse tipo: “Aniversário da fundação de Roma”, “À vitória entre as ruínas do templo de Vespasiano, em Brescia”, “Alexandria”: “A Giuseppe Regaldi” quando publicou O Egito, “A Giuseppe Garibaldi”, “A uma garrafa de Valtellina de 1848”, etc.

É sinal com certeza de que Carducci tem frequentemente necessidade de uma ocasião, de um aniversário, de uma publicação, de um espetáculo ou de outra coisa para ser convocado para a poesia; que é o mundo exterior que o convida a entrar em si mesmo para depois sair, empunhando a flama. Mas apressemo-nos em dizer, é raro que a ocasião permaneça no nível de puro pretexto: ela dita ao poema o seu tom, às vezes sua estrutura para não dizer nada de sua conclusão; ao ponto que a invocação inicial faz frequentemente nascer um diálogo implícito de ponta a ponta do poema. Daremos apenas uma prova tomada ao acaso entre inúmeras: Em “Nas Fontes do Clitumno” das Odes Bárbaras, Carducci não é apenas um poeta que se recorda, um homem da terceira Itália, que recompõe nele a nobreza antiga a partir de um lugar que foi venerado. Ele dialoga sem cessar, invocando o ribeiro, saudando a Úmbria, invectivando o salgueiro chorão, apelando ao carvalho e aos ciprestes, voltando ao rio para interrogá-lo, apontando o deus indígete que mobilizava com a voz as energias contra Aníbal invasor, dirigindo-se enfim à Itália, à Itália Mãe.

Essa perpétua procura do diálogo ou, se preferirem, de uma parede ideal onde se faça ecoar a inspiração, não se opõe, em princípio, à diversidade dos temas; mas na realidade, todas as ocasiões não são boas para Carducci e é por aí que os seus temas se sentem finalmente limitados.

A política, inspiradora da maioria de seus poemas

As ocasiões mais sugestivas foram aquelas que lhe ofereciam a atualidade política ou literária. Política principalmente; é dela que provêm as grandes esperanças e as grandes decepções do poeta, mesmo que suas grandes cóleras tenham, por vezes, outros móveis. Todo o sexto livro da [Juvenilia e quase toda a segunda parte dos Levia Gravia, os Iambos e Epodos (com a única exceção do poema “A um Heiniano da Itália”) extraem sua matéria mais ou menos diretamente das circunstâncias políticas dos anos 1859-1870. Não apenas o conteúdo, mas sobretudo o tom dos poemas são estreita- mente tributários das reações que essas circunstâncias determinavam no campo dos patriotas republicanos e laicos: entusiasmo sem medida quando das vitórias piemontesas de 1859, desapontamento depois do armistício de Villafranca e a cessão de Nice e da Savóia à França, indignação quando Garibaldi foi impedido de assaltar Roma, acolhida áspera à solução no entanto inesperada de 1855 que dava à Itália o Vêneto, apesar dos reveses sofridos em Custozza e Lissa, novamente a irritação depois de Mentana em 1867, cólera e desprezo depois do dia 20 de setembro de 1870 quando se tornou claro que a tomada de Roma, efetivação da unidade, consolidava definitivamente o prestígio da monarquia. Atirou os piores sarcasmos contra a cidade de Roma quando ela se tornou a capital da monarquia, enquanto que descrevera a Roma pontifical dos anos precedentes por uma perspectiva mais trágica, porém menos vil.

É pelos caminhos da política, de uma política vivida dia a dia com a alma impetuosa de um guerrilheiro, que Carducci se aproximou dos grandes caminhos da história. Nas glórias do passado, procurou frequentemente o contraste com o presente, assim como os exemplos para o futuro, e nas vergonhas de outrora, motivos suplementares de ressentimento contra uma atualidade que se reproduzia ou perpetuava. Nada de mais significativo que as evocações da antiga Roma em sua obra poética; elas são ordinariamente concebidas para frisar a confusão do presente. Tenhamos diante dos olhos por exemplo os poemas “Io Triumphe”, “Canto da Itália que sobe ao Capitólio”, “Diante das Termas de Caracala”, “Nas fontes do Clitumno”, “Roma”. Assinale-se todavia uma exceção notável, “Aniversário da fundação de Roma”, em que Carducci se esforça por romper com o seu processo habitual.

O mesmo sucede em relação à França que só aparece aqui sob dois aspectos: a nação revolucionária de 1789-1794 e a potência protetora da Santa Sé nos tempos de Napoleão III. E aquela só serve para abater esta:

Pois que os netos de Voltaire 
São os suíços de São Pedro.

Estes dois versos do poema satírico “Ao bem-aventurado João da Paz” (Juvenília) poderiam servir de epígrafe a uma exposição de sentimentos de Carducci para com a França, pelo menos até o Ça ira. Em 1883, data deste último poema, já se haviam passado dezesseis anos depois de Mentana, treze depois da queda de Napoleão III e Carducci está em vias de acalmar-se; contentar-se-á em opor — rapidamente, é verdade — o Terror à Noite de São Bartolomeu, e dará livre curso à admiração que a leitura de Michelet lhe havia inspirado pela energia dos franceses de 1792.

Outro tema de que se costuma falar na crítica carducciana é o da “Nêmesis histórica”. Entende-se por esta expressão a ideia de uma vingança exercida a longo prazo pela história sobre os descendentes dos que cometeram crimes contra a liberdade dos povos. Mas se lhe exagerou por vezes a importância. O tema aparece tardiamente na poesia de Carducci e só se aplica finalmente a três dinastias: os Habsburgos (cf. “Miramar”, nas Odes Bárbaras, depois do “Acalanto de Carlos Quinto” das Rimas Novas, em que o motivo da hereditariedade não se desenvolveu ainda em Nêmesis), os Capetos (cf. “Versalhes”, e “A Coroação de Henrique Quinto”, em Iambos e Epodos), os Bonaparte (“Por ocasião da morte de Napoleão Eugênio” nas Odes Bárbaras). Não significa necessariamente, como às vezes se assegurou, que para Carducci a história vai no sentido do povo por um movimento espontâneo; corresponde menos a uma convicção democrática que a um ressentimento de ordem nacional. Refere-se, em todo o caso, apenas a dinastias estrangeiras, e às que constituem obstáculos à unificação e à independência da Itália (não nos esqueçamos de que Mentana havia apagado no coração de numerosos patriotas italianos a gratidão que poderiam ter sentido por Napoleão III, sete ou oito anos antes). Por republicano que tivesse sido até 1878, Carducci não se lembrou nunca de brandir a Nêmesis da história contra a casa de Savóia.

Um anticlericalismo que se converte muitas vezes em anticristianismo

Outra consideração pode ter induzido o poeta a desviar os olhos da Itália medieval. Ele pertence a uma época em que a maior parte dos pensadores de espírito laico associam à Idade Média o primado da Igreja e do obscurantismo. Um poema das Rimas Novas, dedicado a um dos seus colegas particularmente versado em literatura medieval (“A Alessandro d'Ancona”), resume com brilho sua apreciação do latim clássico e paganizante. Nada lhe falta, nem “o homem que apenas sai do claustro para dirigir-se ao túmulo”, nem “a horrível flama das piras funerárias” nem “a última saudação da vida ao deserto” lançada pelas flechas das catedrais góticas. E a última estrofe dá em resumo a oposição cara a Carducci, das trevas da “idade negra” e da luz antiga:

Pobres terrores medievos, prole
Sinistra da barbárie e do mistério,
Sombras pálidas, rua! Ergue-se o Sol 
E canta Homero.

O desprezo pela Idade Média é aqui à base de anticlericalismo; um anticlericalismo de natureza complexa e em que entra um pouco de Voltaire e muito de irritação contra o romantismo católico italiano de que alguns representantes haviam “colonizado” a Universidade da Península. Mas não seria o caso de reduzi-lo a um motivo polêmico saído de querelas corporativas ou a uma simples tomada de posição em relação às tendências da historiografia de então. Nascido de um ressentimento expandido em relação à política “separatista” da Santa Sé, apoiado no culto da antiguidade greco-romana, intimamente sustentado pelas inclinações de um temperamento “solar” e corroborado numa certa época da vida de Carducci por um cientificismo de essência positivista, esse anticlericalismo converteu-se facilmente em anticristianismo, como bastariam para atestá-lo o famoso hino “A Satã”, em que a estrada de ferro, símbolo do progresso da inteligência humana, anuncia a justa vingança do anjo tombado sobre o Deus das trevas. Se as veementes apóstrofes de Carducci só se tivessem dirigido ao Papa e aos Cardeais, não seria o caso de determo-nos em excesso neste poema, a tal ponto a irritação patriótica contra a Santa Sé é coisa frequente na Itália depois de 1849 e mais ainda depois de 1870. Mas o poeta das Odes Bárbaras não se dirige apenas ao Papa ou à Igreja contemporânea: ele vai até Jesus Cristo para acusá-lo por sua raça, para censurá-lo, cremos, por haver desnaturado a alma autêntica da Itália:

Roma sucumbe após que um galileu, 
Rubra melena, foi ao Capitólio, 
Jogou-lhe aos braços uma cruz e disse: 
Leva-a e serve.

lemos em “Nas Fontes do Clitumno”, e o poema “Numa Igreja Gótica” fará aparecer de novo Cristo como uma “divindade semita”.

Inseparabilidade do catolicismo e da Idade Média

Carducci levou mais tempo para reconciliar-se com a religião do que com a monarquia piemontesa: foi só com “A Igreja de Polenta” composto em julho de 1897 que ele parece ter aderido à fé comum de seu país ou pelo menos se preparou para fazê-lo. Mas até neste poema, ele não abandona a sua concepção de uma Idade Média sinistra, bárbara, pela qual o cristianismo, contribuição exótica, é a seus olhos, como o vimos, em grande parte responsável. Ele aqui evoca longamente os frades de sotainas pardas, de longas cabeleiras cobertas de cinzas, prosternados diante do atroz crucificado bizantino” à sombra dos capitéis povoados pelos “sonhos cruéis e espasmos do inumano setentrião”, mesclados a “alucinadas degenerescências do Oriente...” De resto, dois anos antes de compor esses versos, ele lançou ainda violentos anátemas contra a Igreja de Roma em “À Cidade de Ferrara”:

E maldita sejas tu e maldita sempre, por onde 
Gentileza floresce e nobreza abre o voo,
Sim, sejas maldita, ó velha vaticana loba cruenta.

Mesmo quando a sua cólera política se atenua com o fato de sua evolução em direção do regime estabelecido — um pouco também por força da passagem dos anos — ele dificilmente chegará a separar o catolicismo da Idade Média, época negra em que o romantismo execrável tinha ido abeberar-se. Porque foi também por classicismo que Carducci rejeitou todo o conjunto da Igreja romana e da Idade Média. Igreja romana, digamo-lo bem, porque ele testemunha pelos protestantes uma simpatia de rebelde a rebelde, como se a Reforma tivesse repudiado o “Galileu ruivo” e o “deus semita” (cf. “A Satã”, em que são celebrados Lutero, Wycleff e Huss, e “Martinho Lutero”). Sua aversão pelos temas do romantismo resistiu mesmo à admiração que ele acabou por testemunhar por alguns escritores alemães ou franceses. Muito típico deste ponto de vista é o poema “Ao longo de Chiarone de Civitavecchia” que traz em subtítulo “Lendo Marlowe” e foi escrito em maio de 1879. Aqui ainda os reflexos nacionalistas funcionaram: o romantismo é considerado como uma teoria exótica que Carducci deplora ver importada do setentrião para a terra sagrada do classicismo, a Itália. Neste ponto, pelo menos, ele continuou fiel às convicções de sua adolescência e juventude.

Um vigor excessivo de linguagem

A luta contra os românticos italianos e a apologia do classicismo inspiraram, de maneira muitas vezes imediata, uma grande parte de sua produção poética. Donde a abundância de temas ordenados em torno de um autor, de um gênero, ou mesmo de uma técnica literária. Mais de trinta composições são elaboradas à glória dos escritores preferidos: Homero, Virgílio, Dante, Petrarca, Ariosto, Metastásio, Goldoni, Alfieri, Parini, Monti, Pietro Giordano, Nicolini, Mamiani, Hugo. Alhures o louvor se insere num poema de fundo mais ou menos histórico (por exemplo, a evocação de Tasso em “A Cidade de Ferrara”). Quanto a simples alusões aos escritores do passado, elas são inúmeras e revestem, por vezes, uma solenidade que lhes realça a intenção.

Mas Carducci não teria sido Carducci se se tivesse contentado de cantar a glória daqueles que amava e venerava. Éle simultaneamente irrompeu contra os seus contemporâneos românticos e realistas numa linguagem que leva por vezes o vigor até a indecência. Basta atentar ao quinto livro da Juvenília: aqui se verá em particular o crescendo de injúrias que se desenvolve do primeiro soneto “Aos Poetas” a um outro “Ainda aos Poetas” (soneto estirado em dezesseis tercetos, como se Carducci não fosse capaz de deter-se) e a um terceiro “A Musa Moderníssima” (em que o número de tercetos passa a trinta). Tais furiate retornam periodicamente na sua carreira poética; basta citar “A Certos Censores”, “A um Heiniano da Itália”, “Intermezzo”, “Classicismo e Romantismo”.

O lavor do poeta

Finalmente, bem diferente de tantos poetas desdenhosos do labor técnico, ou preocupado em dissimular este labor debaixo de uma fingida negligência, o autor de Odes Bárbaras não hesitava em fazer da arte dos versos matéria de poesia. Quando imita determinado gênero, proclama-o alto; assim no grupo de Rimas Novas em que ao “ Anacreonte romântico” sucedem a “Serenata”, “Alva”... e na trilogia “Primaveras românticas”, que se decompõe em “Eólia”, “Dórica” e “Alexandrina”. Melhor ainda, acontece-lhe tomar por assunto um fator técnico de arte poética: assim os primeiros poemas das Rimas Novas se intitulam “A Rima”, “Ao Soneto”; notamos ainda nas Odes Bárbaras o poema “Razões métricas”. Isto não seria muito de surpreender da parte de um homem que se recusa a admitir, por fidelidade ao espírito clássico, que a poesia seja pura questão de inspiração súbita, de dom divino, de “furor sagrado”. O poeta, como diz Carducci, em “Despedida” (Rimas Novas) não é um pobre parasita nem um ocioso, nem um “jardineiro” mas um grande artífice que se faz à custa de músculos de aço; nem cortesão, nem sonhador, nem palhaço, mas um operário vigoroso, cujo dever é fundir amor e pensamento, passado e futuro, antes de moldar em grandes golpes o amálgama para haurir dele o que pode tornar a humanidade poderosa e harmoniosa. Sob esses golpes desdobrados nascem as clavas da liberdade, as armaduras da forca, as coroas da vitória, os diademas da beleza. Tarefa plenamente desinteressada, porque o poeta trabalha para o resto do mundo, não para ele; apenas se concede ao seu trabalho o prazer de um artesanato pessoal, se nos atrevemos a dizer assim: uma flecha de ouro que ele lança de encontro ao sol e cuja ascensão em plena luz é a única alegria que espera e que o paga por completo.

Desta vez Carducci falha à tradição clássica para estabelecer-se numa posição próxima do segundo romantismo. Dificilmente se irá acreditar que não tivesse consciência do fato. O grande leitor de Victor Hugo, que ele foi, poderia ignorar os temas da “missão do poeta” e as muito recentes cartas de nobreza desse tema? À ideia de uma palingenesia pela poesia não é de nenhuma maneira uma concepção nem uma implicação clássica. Fôrça é constatar que o clima literário dentro do qual Carducci viveu entre 1860 e 1890 foi, nesta circunstância, mais forte que sua vontade de não ceder uma polegada de terreno ao romantismo.

O mesmo se pode dizer, mas de maneira menos chocante, quanto à sua representação da natureza. Para ele a natureza é clássica, banhada de sol: a outra, a romântica, é banhada apenas de bruma e lua, a ponto que toda paisagem triste lhe parece romântica e toda paisagem risonha, clássica. Ou melhor: num poema “Classicismo e Romantismo”, a Lua e o Sol representam unidos as duas escolas. No entanto, ele não soube sempre conjurar o encanto das penumbras, da melancolia dos lugares, das emoções nostálgicas. Deste ponto de vista, “Vingança da Lua” não está livre da cor romântica, e “Na estação, uma manhã de outono” (Odes Bárbaras) é um poema de um romantismo acabado... É o que não deve dissimular tal outro poema das Odes Bárbaras “Ao longo de Chiarone de Civitavecchia”, violento processo de um “clima” que Carducci denuncia tanto por princípio como por aversão.

Os temas que acabamos de recensear brevemente não são em número considerável: ainda, unem-se uns aos outros por fios mais ou menos aparentes. Se se diversificam de um poema a outro, é menos sob o efeito da meditação que pela variedade das ocasiões de que seus desenvolvimentos procedem. Sob as múltiplas cores que lhes são emprestadas pela indignação, o desprezo ou o entusiasmo, a sua substância em nada se modifica. E ela absorve ao fio dos anos tudo o que a história, a pequena como a grande, traz à consciência de um poeta mais inclinado a julgar que a julgar-se. A isto se deve que a expressão destes temas tenha ficado tão tributária do que vem do exterior, do que era dado, quase imposto a Carducci, sem que ele tivesse que meditar muito no âmago de si mesmo...

O poeta das Odes Bárbaras não era mais levado a fugir do mundo que a frear o seu temperamento. Nele poucos eram os longos pensamentos e poucos os mitos realmente pessoais. Se ele acreditou na missão dos verdadeiros poetas, não foi à maneira de Vigny e de seu Moisés solitário. Preferir-se-ia como tribuno do que como confidente do Sinai. Mas se ele não obteve de maneira duradoura a qualidade de tribuno que esperava, ninguém seria capaz de desconhecer que foi um extraordinário artista do verso, um dos mais eruditos, dos mais fogosos e dos mais robustos que a poesia européia conheceu de dois séculos a esta parte.

* Este texto integra CARDUCCI, Giousuè. Giousuè Carducci. Poesias escolhidas. Tradução de Jamil Almansur Haddad. Rio de Janeiro: Editora Delta, 1962.

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