Machado de Assis: alguma coisa anda no ar - um papagaio ou uma república?


Por Carlos Faraco*




Em meados do século XIX, o mapa socioeconômico do Brasil parecia um quebra-cabeças... desmontado. Diferenças regionais profundas, em todos os setores, num país gigante, com uma população estimada grosseiramente de 7 milhões de habitantes. Pouca gente para muito país. Dessa pouca gente, pouquíssimos decidiam.

Quem mandava nas terras eram os cafeicultores do Sul, os criadores de gado e os donos dos extensos canaviais nordestinos. Mandavam na terra, nos escravos, no dinheiro, na política. Em tudo.

Ao lado dessa restrita classe dominante, formava-se uma burguesia dedicada ao comércio, que logo logo ia começar a querer interferir nos destinos da nação. Indústria? Nem pensar! Livros, máquinas, calçados, escravos... tudo vinha de fora. E custava dinheiro. Dinheiro que os poucos privilegiados detinham.

Em 1880 o Brasil era o único país do mundo ocidental que ainda admitia o trabalho sob regime de escravidão. No entanto, desde 1850, quando Machado ainda era um menino, já se havia concretizado o primeiro passo da luta abolicionista, com a extinção do tráfico de negros. Isso na teoria, porque na prática o caso era outro. Com a decadência da produção de cana-de-açúcar e o florescimento da lavoura de café no Sul, os senhores vendiam os escravos para os cafeicultores do Sul. Extinguira-se o tráfico externo, mas intensificava-se o interno.

Em 1871 veio a Lei do Ventre Livre. Em 1888, a Lei Áurea, que finalmente libertou os escravos.

Tudo isso, somado aos estragos econômicos provocados pela Guerra do Paraguai, afundou a Monarquia em crise. Havia sinais de República no ar.

Como se sentia diante dessa situação o neto de escravos Machado de Assis? Que registros mereceram nas crônicas do escritor, esses acontecimentos todos?

Durante muito tempo, acusou-se Machado de permanecer indiferente aos dramáticos problemas sociais que se atropelavam na sua época, como o da escravidão. Logo ele, um homem “de cor”?!

Hoje, sabe-se que isso não é verdade. Machado denunciou, de fato, a escravidão. A diferença está em que o tom por ele utilizado na denúncia era diferente do emocionalismo que caracterizava as manifestações abolicionistas. Não seria demais esperar que um homem de 49 anos, de temperamento reservado, tímido até, compartilhasse da paixão que percorria todo o movimento de Abolição? A denúncia de Machado não assumiu uma aura declamatória ou emotiva. Ele preferiu a análise, a reflexão, demolindo a idéia (muito comum na época) da “bondade dos brancos” ao libertar os negros. Em sua obra (crônica, conto, romance) procurou desvendar os mecanismos econômicos e ideológicos que tentavam justificar primeiro, a necessidade do trabalho escravo e, depois, a contingência imperiosa da libertação.

Em 19 de maio de 1888, seis dias após a assinatura da Lei Áurea, Machado publicou uma crônica sobre o assunto. Observe o tom irônico que o escritor emprega ao tratar da “bondade dos brancos”, colocando-se no lugar de um deles:

“(...) toda a história desta lei de 13 de maio estava por mim prevista, tanto que na segunda-feira, antes mesmo dos debates, tratei de alforriar um molecote que tinha, pessoa dos dezoito anos, mais ou menos (...) e dei um jantar (...) no intuito de dar-lhe aspecto simbólico. (...) Levantei-me eu com a taça de champanhe e declarei que acompanhando as idéias pregadas por Cristo, há dezoito séculos, restituía a liberdade ao meu escravo Pancrário; que entendia que a nação inteira devia acompanhar as mesmas idéias e imitar o meu exemplo; finalmente, que a liberdade era um dom de Deus, que os homens não podiam roubar sem pecado (...) Todos os lenços comovidos apanharam as lágrimas de admiração. Caí na cadeira e não vi mais nada. De noite, recebi muitos cartões. Creio que estão pintando o meu retrato, e suponho que a óleo.”

A Abolição e a Guerra do Paraguai foram fatais para a Monarquia. Sob a liderança do Exército, proclamou-se então a República, em 1889.

Antes da proclamação, Machado já se pronunciara sobre as idéias republicanas... também de modo irônico. Veja o fragmento de um diálogo incrustado na crônica de 11 de maio de 1888:

“– Mas, então, quem é que está doido?
– É o senhor; o senhor que perdeu o pouco juízo que tinha. Aposto que não vê que anda alguma cousa no ar.
– Vejo; creio que é um papagaio.
– Não, senhor; é uma república. Querem ver que também não acredita que esta mudança é indispensável?
– Homem, eu, a respeito de governo, estou com Aristóteles, no capítulo dos chapéus. O melhor chapéu é o que vai bem à cabeça. Este, por ora, não vai mal.”

Pois é! Segundo Machado, o chapéu da Monarquia ia melhor que o da República. Então, ele estava se posicionando contra uma nova ordem? Não. Contra essa ordem, sim. Para ele, o fim do Império poderia significar o fim da estabilidade (ainda que precária) do País. Foi por temer essa instabilidade que Machado se opôs ao que considerava o prematuro advento republicano.

Enfim, Machado não passou ao largo dos grandes acontecimentos de seu tempo. É possível entrever, no registro do cotidiano feito por suas crônicas – assim como posteriormente nos romances –, a ligação com o contexto social mais amplo.

Entre uma crônica e outra, entre uma crítica teatral e um poema, Machado de Assis ia tecendo a parte mais importante de sua obra: o conto e o romance.

E por falar em romance...

Fala o poeta Machado de Assis:

“Ai, o amor de um poeta! Amor
Subido!
Indelével, puríssimo, exaltado,
Amor eternamente convencido...”

Fala o homem Machado de Assis:

“A minha história passada do coração resume-se em dous capítulos: um amor, não correspondido; outro, correspondido. Do primeiro, nada tenho que dizer; do outro, não me queixo; fui eu o primeiro a rompê-lo”.

O amor de verdade, de carne e osso, viria na figura de Carolina Novais, de nacionalidade portuguesa e mais velha que o escritor. Em carta, Machado declarou-lhe:

“Tu não te pareces com as mulheres vulgares que tenho conhecido. Espírito e coração como os teus são prendas raras (...) Como te não amaria eu?”

Ana Carolina e Machado de Assis


Viram-se. Amaram-se. Casaram-se em 12 de novembro de 1869.

Veja mais um trechinho de uma cara a Carolina (as pessoas escreviam muitas cartas naquele tempo...):

“Depois... depois, querida queimaremos o mundo, porque só é verdadeiramente senhor do mundo quem está acima das suas glórias fofas e das suas ambições estéreis”.

Mas o desapego a glórias e ambições não resolvia o problema da subsistência. Houve dificuldades antes e depois do casamento, como confessa a um amigo:

“De ordinário é sempre de rosas o período que antecede o noivado; para mim foi de espinhos.
(...) agora mesmo estou trabalhando para as necessidades do dia, visto que só do começo do mês em diante poderei regularizar a minha vida”.

O casamento durou 35 anos. Consta que na mais perfeita harmonia.

No ano seguinte ao do casamento publica-se o primeiro volume de contos (Contos Fluminenses). Não seria ainda nessa obra que o excepcional escritor iria se revelar. A crítica considera apenas medianos os contos desse livro.

De qualquer forma, já aparecem características marcantes do estilo machadiano. Veja:

a) A conversa com o leitor
“O leitor superficial conclui daqui que o nosso Mendonça era um homem excêntrico. Não era”.

Estamos diante de uma novidade: em vez de se esconder para dar a impressão de que narra um fato real, o autor se expõe, para deixar bem claro que o quer escreve não é ficção.

b) A ironia
“Será uma boa mãe de família segundo as doutrinas de alguns padres-mestres da civilização, isto é, fecunda e ignorante.”

c) O estudo da alma feminina
“Tinha Augusta trinta anos e Adelaide quinze; mas comparativamente a mãe parecia mais moça ainda que a filha. Conservava a mesma frescura dos quinze anos, e tinha de mais o que faltava a Adelaide, que era a consciência da beleza e da mocidade; consciência que seria louvável se não tivesse como conseqüência uma imensa e profunda vaidade.”

Essas características, por vezes conjugadas num mesmo trecho, dão um sabor especial à escrita. Um exemplo:

“Daí alguns minutos entrava na sala a D Carlota em questão. Os leitores ficarão conhecendo esta nova personagem com a simples indicação de que era um segundo volume de Augusta; bela, como ela; elegante, como ela; vaidosa, como ela.

Tudo isto quer dizer que eram ambas as mais afáveis inimigas que podem haver neste mundo” (O segredo de Augusta).

Três anos depois, surge outro volume de contos: Histórias da meia-noite, também considerado pela crítica ao mesmo nível do primeiro livro.

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