Vinicius de Moraes

Por Antonio Candido



Os poetas que valem realmente fazem a poesia dizer mais coisas do que ela dizia antes deles. Por isso, precisamos deles para ver e para sentir melhor, e eles não dependem das modas nem de escolas, porque as modas e os poetas ficam. Se hoje dermos um balanço no que Vinicius de Moraes ensinou à poesia brasileira, é capaz de nem percebermos quanto contribuiu, porque, justamente por ter contribuído muito, o que fez de novo entrou para a circulação, tornou-se moeda corrente e linguagem de todos.

Do que trouxe, lembro apenas: a peculiaríssima ligação que estabeleceu entre o mar, a praia e a vida amorosa; a mistura do vocabulário familiar com uma espécie de casto impudor; a invenção de um léxico do amor físico que abole qualquer diferença entre ele e o que é considerado não-físico. E mais um uso próprio do ritmo de romance popular, quem sabe inspirado inicialmente em García Lorca. E uma reconstrução do soneto. E a transformação do versículo solene dos primeiros livros em ritmo suspenso entre verso e prosa, de modo a não haver mais verso nem prosa; mas prosa e/ou verso, em franca ida e volta. E a capacidade de dessolenizar as coisas solenes para guardar que tem de sério no meio da pilhéria aparente. E a capacidade de se apegar às coisas pequenas e humildes para lhes dar uma gravidade que não vem do tom, mas da estrutura latente de paradoxo que enforma sua poesia.

Vinicius começou falando mais ou menos como outros. Os seus primeiros livros - Caminho para a distância (1933), Forma e exegese (1935) - são afogados no longo verso retórico usado pelos poetas cristãos daquele tempo, com uma vontade quase cansativa de espichar o assunto e um certo complexo de antena, ou seja, o esforço de captar algo misterioso, fora da órbita normal. Mas Vinicius capitalizou essa falação para transformá-la num sentimento muito pessoal das coisas inexplicáveis, que acabou por dessacralizar, tirando-as da metafísica para criar uma física extremamente humana e comunicativa.

Os anos de 1937 e 1945 são fundamentais nesse sentido. Neles se firma a fisionomia do poeta que conhecemos e que, sem perder a experiência anterior, renovou essencialmente a sua linguagem e a sua orientação. Novos poemas (1938) ainda é meio solene, mas já mostra a capacidade de variar os ritmos, fazer verso curto e jogar com as formas fixas, inclusive o soneto, instrumento rígido e fechado que ele haveria de abrir em estruturas livres. Nalgumas das suas páginas, como "O falso mendigo", está pronto o Vinicius renovado.

Em 1943 surgem as Cinco elegias, poemas densos, escritos entre 1937 e 1939, nos quais a pesquisa metafísica dos primeiros tempos foi canalizada para representar a naturalidade do amor, a inquietação relacionada à experiência corrente, o mistério traduzido em familiaridade e temperado com uma espécie de humor sem agressão - traços que nunca sairiam de suas receitas. É notável o sentido experimental da linguagem, que o levou inclusive a jogar com os aspectos visuais, tão em moda atualmente.

Poemas, sonetos e baladas (1946) talvez seja o momento de síntese das suas capacidades e ritmos. Nele encontramos Vinicius inteiro, o de antes e o de depois; o que apela para a transcendência e o que realiza o verso correndo os dedos pelo violão. Numa tarde de domingo ele nos leu inteiro o livro ainda inédito; e aliás teria sido preciso vê-lo naqueles tempos, na flor dos vinte e tantos ou dos primeiros trinta anos, corretamente vestido de escuro, mas sem sombra de convencionalismo; extremamente polido e sereno, com uma boa vontade fraterna e universal, não se espantando de nada e fazendo da sua poesia um espanto permanente com tudo. Era capaz de passar a noite devagar, com o copo de uísque perto da cadeira, o violão no colo, olhos postos nalguma coisa distante, cantando com voz curta e abafada, escorregando para o bate-papo, inserindo comentários, voltando ao canto. Vinham canções inglesas, modinhas antigas, valsas cariocas, um poema de Bilac cuja melodia só ele conhecia, porque seu pai lhe ensinara, poemas seus que já então punha em música, porque a sua poesia sempre resvalou por ela. É o caso de "Balada a Pedro Nava", típica do seu processo de tomar um pensamento de amizade ou ternura, uma anedota, uma alusão ao dia-a-dia, uma complacência consigo mesmo - e de repente abrir as asas.

Por isso, o Vinicius de agora nos parece conseqüente e necessário, como se toda a sua vida e a sua poesia tivessem confluído no bom caminho. Para os moços, ele é decerto incompreensível sem a bossa nova, Tom Jobim, Chico Buarque de Holanda; incompreensível se sem os festivais da canção e essa vasta musicalização da poesia, que é uma das faces que ela mostra ao nosso tempo, transformando os poetas em letristas e cantores. Mas, para os mais velhos, ele é o Vinicius de sempre, apascentando a sua constelação fraternal de gêneros e recursos e gêneros - crônica de jornal, conversa, notícia, confissão, indignação política, discurso de amizade, declaração sempre pronta de amor. Um de seus feitos foi trazer para a casa da poesia, dando-lhe um arranjo próprio, essa matéria que anda dispersa outras formas, na prosa de Rubem Braga, nalgum lamento de Orlando Silva, no gesto simples de cada um. Com ar de quem conversa ocasionalmente (como já dedilhava o violão em nosso tempo de rapazes), Vinicius vai transformando tudo em estilo, num espaço poético vasto e arejado. E criando alguns dos poemas mais belos e necessários do nosso tempo.

Infância na praia, familiaridade com as coisas do mar, geografia fantástica do corpo feminino dissolvida na sua história pessoal, procura do sentido da vida, infinita paciência e compreensão do outro, experiência com a palavra no limite constante em que ela parece dissolver-se noutra coisa, milagrosa capacidade de achados, malabarismo que na verdade é encarnação do necessário, superação de qualquer preconceito que separe verso e prosa. Vinicius diverso e sempre o mesmo.


* Este texto foi publicado em Vinicius de Moraes: poesia completa e prosa (Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004).


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