O anjo mudo, de Al Berto

Por Pedro Belo Clara





Nascido Alberto Raposo Pidwell Tavares, na cidade de Coimbra, este autor de pseudónimo genialmente óbvio (sugerindo através da parcial divisão silábica uma certa fragmentação do “eu”) será por certo um dos mais criativos e notáveis escritores que o século XX português terá conhecido, sem que, de modo algo irónico ou talvez contra-corrente, ao mesmo se lhe tenham concedido as honras devidas. Se falamos de prémios, base de consideração sempre tão vaga e subjectiva, esses ainda em vida os recebeu: em 1988, o Prémio Poesia do Clube PEN Português; e em 1992 a honraria de ser instituído oficial da Ordem Militar de Santo'Iago da Espada. A questão prende-se antes com a perpetuidade do seu trabalho literário, ainda que o desaparecimento precoce do autor possa de algum modo ter contribuído para tal. Isso e o facto de Al Berto nunca ter sido, de todo, um “escritor de modas”. Devido a esse mesmo factor, a sua voz marcadamente poética tornar-se-ia numa das mais originais e audaciosas vozes que as letras lusitanas já conheceram.

Apesar de ter abertamente influenciado uma geração, desde as artes escritas às artes cantadas, Al Berto é um autor cuja obra parece assim surgir em processo descendente nos dias que correm, no que à sua divulgação e debate diz respeito (não obstante os esforços da editora que actualmente o publica). Fora, de início, um entusiasta discípulo da pintura, tendo mesmo obtendo o referido curso em Bruxelas, mas a partir 1971 dedica-se de corpo e alma às incidências do processo literário. Até à sua morte, tal decisão manter-se-ia sem desvios ou arrependimentos, ainda que em paralelo tenha desenvolvido trabalhos como editor, pintor e animador cultural. O fruto dessa escolha amadureceria em trabalhos de índole poética (provavelmente os mais afamados), prosaica e dramatúrgica. Embora, acrescente-se, sejam também reconhecidos os seus ensaios para a composição de uma ópera e de um livro de fotografias sobre Portugal. Eis um homem genuinamente dado ao cultivo das artes, como assim se depreende.

O livro hoje em discussão, de teor narrativo, tem a particularidade de reunir quase todos os textos que o autor publicou em revistas e em catálogos de exposições de pintura e fotografia, aos quais se acrescentaram alguns inéditos e outros que apenas haviam sido lidos em público, sem posteriormente obterem a devida publicação. Embora não se encontrem organizados de forma cronológica, os mesmos foram compostos entre 1985 e 1993, o ano de edição da obra em causa – apenas quatro anos antes de um linfoma ter arrebatado a sua material existência, o que coloca O anjo mudo na categoria dos derradeiros trabalhos publicados por Al Berto ainda em vida.

É verdade que a antologia O Medo, editada em 1987, que reúne o principal trabalho poético produzido entre 1974 e 1986, é por muitos tida como um «definitivo testemunho artístico», justificando as sucessivas reedições e acréscimos póstumos de que o título tem sido alvo, o que a tornará, talvez a par de Horto de incêndio, na obra mais afamada e central de Al Berto. Não obstante, livros como este que aqui se apresenta serão os mais fluídos meios de entrar no peculiar universo do autor, pelo menos para os leitores que se aprontem para a sua primeira aventura. Assim, estarão a ser facilitadas a absorção das temáticas expostas e a degustação do compasso a que as palavras impressas suavemente obedecem. É por essa mesmíssima razão que se dará azo à intenção de introduzir O anjo mudo nas suas regulares opções de leitura, caro amigo leitor.


O estilo de escrita apresentado (não só neste trabalho como nos restantes, entenda-se) encerra inclinações melancólicas que se revestem de tristezas contidas, sendo dotado de uma harmonia pausada e sofrida, apresentada muitas vezes num interessante jogo de luz e sombra, que ora se observa ora se subentende. Embora aparente irromper de um mudo desassossego, o ritmo utilizado cria um singular ruído, quase soporífero (no bom sentido do termo), em quem vogar pelas frases esculpidas. As linhas que da pena se esboçam são pela sua carga poética rendilhadas, embora não assumam formas de declarados exageros palacianos. Mas a escolha amiúde cuidadosa das palavras e dos sentidos permite entender a impressionabilidade subjacente. Na verdade, Al Berto, figura de alguma medida teatral, era um autor dotado de uma sensibilidade deveras apurada.

Altamente poética e metafórica, como antes referimos, a sua composição literária, de ímpar expoente criativo, adquire o dom de transportar os leitores para vívidas realidades numa consequência directa dessa espécie de “feitiço estilístico” que o autor fomenta. Neste caso em concreto, encontra-se a mesma dividida em quatro distintas partes, ainda que o traço-comum da criação artística seja perfeitamente identificável em todas elas: uma certa desolação, uma saudade sem nome, um abandono quase herético que adorna as planícies onde as palavras se espraiam.

Na primeira parte deste trabalho encontramos textos geralmente compostos em estilo de crónica, relatando impressões sobre diversas viagens e suas demais incidências através dos retratos de cenários e indivíduos com que o viajante se cruza. Neste capítulo, Al Berto aproxima-se bastante das propostas e do estilo literário de Bruce Chatwin, figura que, aliás, na derradeira parte deste livro merece um texto em sua honra. A influência recebida do romancista e escritor de viagens britânico torna-se, assim, óbvia. De qualquer modo, o próprio acto de viajar era algo que umbilicalmente se encontrava ligado à primeira fase do exercício de escrita levado a cabo pelo autor. A dita influência parece então surgir da mera inevitabilidade do rumo assumido:

«As viagens estão intimamente ligadas aos meus livros. A todos eles, mas em especial aos primeiros. Àqueles que o tempo destruiu, tornou impublicáveis – ou eu rasguei, queimei, perdi.»
(O que resta de uma viagem)

 Admitindo desde cedo que o acto de viajar contém a cura para a doença de alma que julgava padecer («Um dia li num livro: “Viajar cura a melancolia”», Aprendiz de Viajante), assiste-se aqui à confissão não expressa de alguém que parece buscar o seu âmago como se buscasse uma outra forma – talvez informe – de si próprio. A esta perceptível toada acresce um constante desejo de anonimato e de despojo, fazendo até lembrar um pouco os pressupostos de filosofia mais orientais (mas sem revelar a plenitude e o equilíbrio que as mesmas tendem a transmitir). Viajar, assim, tornar-se-á um acto necessário perante a inutilidade e o assombro da existência material, uma libertação de alma e corpo, uma via de alcançar tudo o que se demora além das aparências. Ainda que a doença de sempre teime em permanecer:

«Viajar, se não cura a melancolia, purifica. Afasta o espírito do que é supérfluo e inútil (…). O viajante (...) Aprendeu a nomear o mundo. (…) A sedentarização empobrece-o, seca-lhe o sangue, mata-lhe a alma (…). Por tudo isto, o viajante escolheu o lado nómada da linha de água. Vive ali, e canta – sabendo que a vida não terá sido um abismo se conseguir que o seu canto, ou estilhaços dele, o una de novo ao Universo.» (Aprendiz de viajante)

São igualmente abordadas, no capítulo em questão, certas recordações de infância que irrompem de um revisitar de determinados lugares, quase sempre com o mar, a sua eterna paixão, em pano de fundo (o facto de ter vivido alguns anos em Sines, localidade costeira, naturalmente fomentou o seu amor por esse elemento). Mas as cidades também desempenham um papel importante, principalmente Lisboa. Numa das derradeiras narrativas, impregnada de um desassossego que roça a tentação do suicídio, é ao leitor revelada, em plena atmosfera nocturna, uma sugestão do quotidiano do autor num pulsante instinto de fuga. Nomeadamente, o seu rápido impulso para o esvaziamento de (vários) copos que não impõem restrições quanto ao seu conteúdo.

Os textos da segunda parte apresentam um cariz distinto se comparados com os anteriores. Surgem já as primeiras notas sobre o ofício da escrita (a imperatividade do eterno recomeço e a «condenação» que o escritor assume em prol do seu trabalho, com todo o desnível emocional que o processo comporta) e definições sobre a própria pessoa, por tantas vezes reflectida noutras que o rodeiam. Os adornos centrais do seu estilo mantêm-se, naturalmente, adquirindo apenas um outro sentido e profundidade, pois na vez de plasmar o interior no exterior, como antes sucedera, somente o primeiro – o interior – é explorado em contidos soluços de uma ânsia de sol ou... de desaparecimento.

«Apenas deseja que no momento em que parar o coração (…) tudo se apague (…). E da sua passagem nada reste, absolutamente nada. Nem mesmo a impressão digital sobre o rosto que o acaso da paixão o fez tocar».
(Que tudo se apague)

A morte começa também por neste momento narrativo relevar uma breve sombra da sua mão de longos e lânguidos dedos, ainda que a presença seja decifrável em cada linha de cada texto ou poema escrito por Al Berto. A intensa relação que o autor mantinha com o mar, com a bebida e a sua própria homossexualidade, sempre admitida e posta a descoberto, são igualmente aspectos de personalidade que nestes textos se podem (re)encontrar. A título de exemplo, e de elucidação sobre os temas principais neste volume reunidos, transcrevem-se, respectivamente, excertos de Incêndio, Mar e Ressaca para uma Autobiografia:

«Sentas-te e debruças-te para o caderno de capa preta. O silêncio arde por toda a casa. Abres o caderno onde sepultaste, há dias, umas quantas palavras. E ao abri-lo caem as imagens sobre a mesa. O caderno volta a ficar branco – o caderno, a nocturna memória do mundo, a vida. Tudo branco como a morte.»

«Nunca conseguiu viver longe do mar.
(…) Conhecera a ansiedade daqueles que, ao entardecer, olham meio cegos a vastidão incendiada do oceano – e ninguém sabe se esperam alguma coisa, alguma revelação, ou se estão li sentados, apenas, para morrer.
Aprendera, também, que o mar, aquele mar – tarde ou cedo – só existiria dentro de si: como uma dor afiada, como um vestígio qualquer a que nos agarramos para suportar a melancólica travessia do mundo».

«Sempre bebi em quantidade, violentamente, para perder a noção de mundo, e do mundo. Nunca bebi por paixão, nem por desgosto de amor, não, nunca bebi dramaticamente. E no dia seguinte a ter bebido muito, é como se os sentidos e a memória tivessem sido passados a esfregona e lixívia.»

Na terceira parta da obra, que em extensão praticamente iguala a anterior (ambas são relativamente curtas), encontram-se textos de escrita mais fragmentada, produzidos num esforço que se diria, em muitos casos, quase “experimental”. Os textos são curtos e compostos por parágrafos igualmente diminutos, em vários momentos espaçados entre si, construindo uma narrativa que anexa diversos instantes num só lugar, obedecendo a uma tendência evolutiva, cronologicamente falando, das ideias e dos eventos. Denota-se ainda uma ténue linha de busca de sentido, sendo o sentido – no fundo – a própria busca. É, portanto, um exercício distinto dos anterior, o que comprova a versatilidade do autor dentro deste estilo literário. Em acréscimo, os trabalhos neste capítulo reunidos apresentam um traço surrealista que antes não havia sido explorado; embora deva recordar que os textos não estão nesta obra dispostos por data de produção, antes por temática:

«Olho para dentro de casa. Os objectos que toquei estão sozinhos. Mas não há redenção neste olhar sobre a solidão.
Madeira ardida. Ossos flutuando. Dedos que esgaravatam a cal das paredes».
(Retrato)

Por outro lado, assuntos como a passagem do tempo, a morte e a solidão adquirem neste instante de leitura uma outra dimensão, mais pungente, aberta e profunda. Ficam, como exemplo, excertos de Canto do amigo morto:

«O tempo passa como cinza branda sobre os cabelos, aprisionando-os numa velhice futura – sem fim».

«O meu corpo é agora húmus e ausência. Sombra a perturbar-te a vigília do sono – bolor que te cresce, luminescente, entre os dedos.  (…) Mas não são os mortos que se alimentam com os vivos. São os vivos que escondem na memória o peso dos mortos».

«O tempo cobre-se de musgo.
O amigo morto ocupa cada vez menos espaço na cela do meu corpo. Desaparece na voracidade que a terra tem ao apagar qualquer vestígio de vida ou de morte».

Como se depreende, a poesia impressa na escrita de Al Berto é deveras notável, salpicada de melancolia num gesto de quem ama e sofre. Sempre bem balanceada, cada palavra é bebida ao ritmo da frase escrita.

Sobra-nos, no entanto, a derradeira parte da obra que já nos rendeu um longo artigo. Nela, é publicada sob a epígrafe Mapa-Múndi um brevíssimo texto que serve de prelúdio aos restantes, onde, como em breve veremos, Al Berto dará novas asas ao seu génio criativo. Nesta antecâmara, são de novo concedidas referências ao alvorecer do processo de criação. Ainda que o texto seja somente um retrato do acto em si, é sempre um aspecto deveras interessante de se conhecer:

«Sento-me à mesa de trabalho. Inclino a cabeça para a memória dos livros que li e amei.
Com um gesto de ave pouso a mão sobre o papel. E no interior da sombra da mão, começo a escrever: era uma vez...»

Nos demais, a técnica de elaboração, inovadora sobre determinadas ópticas, é constante: os textos são construídos a partir de factos e de personagens reais. Desde logo, aquele que se segue ao prelúdio atrás referido e que relata a hipotética história do desterro de Al-Mu'Tamid, poeta muçulmano do séc. XI e o último rei da taifa de Sevilha. Como bem se compreende, as referências remontam ao tempo em que os árabes ainda ocupavam a parte sul da Península Ibérica, na Espanha actual, e através delas, ao estilo de um bom romance histórico, em poucas páginas Al Berto compôs Degredo no Sul. O poeta mourisco, cuja homossexualidade fora motivo de suspeita por parte de seu pai, viria a morrer em Marraquexe, Marrocos, o local do seu desterro, justificando assim o nome que o autor português concedeu ao texto em causa. Mas se nele nos demoramos um pouco mais, apenas é para explicar este tipo de produção que Al Berto compõe no quarto capítulo de O Anjo Mudo: desenterra personagens ou históricas ou de romance e, tomando a voz das mesmas, reescreve a história ou, ao menos, partes dela que nunca ninguém antes conhecera. Uma proposta novelística para uma realidade efectiva, portanto.

O exercício desenvolve-se e repete-se com Isabelle Eberhardt, Arthur Rimbaud, Herman Melville, W.S. Burroughs, entre outros. Importa referir que também Fernando Pessoa é visado, ainda que nesse texto o autor adopte uma óptica de narrador, e que sobre Antonio Machado, poeta modernista espanhol, Al Berto contraria a tendência e constrói um poema em estilo de epitáfio. Embora o mais longo seja aquele que encerra a obra e que dedicado é a Jean Genet. O autor francês, também ele homossexual, merece um texto dividido em duas partes onde Al Berto parece criar uma relação íntima e intensa entre ambos, ainda que a mesma não passe do papel e da imaginação de um deles. A tendência homoerótica revelada pelo autor português encontra aqui um expoente elevado, sem, contudo, quebrar as barreiras da prudência e do bom-senso (ainda que certos termos e ideias implícitas a isso quase almejem).

Em todo o caso, e devido ao persistente uso da metáfora, que apesar de recorrente não se revela enfadonho, Al Berto consegue amiúde criar um outro mundo dentro do próprio mundo da escrita. O seu esforço criativo é louvável, mesmo que em determinadas alturas se adivinhe o tom confidencial, quase expiatório das palavras. Já o seu traço de personalidade literária assume por vezes contornos tão originais que urgem ser conhecidos e preservados. Inclusive, certos textos detêm a rara capacidade de deixar o leitor imerso num duradouro silêncio após a sua leitura. E pouquíssimos autores se poderão afirmar instigadores de tal (e)feito. Outras narrativas guiá-lo-ão ainda, estimado leitor, pelos obscuros recantos de uma alma que se demora pelas incidências terrenas, tenebroso cárcere. A diversidade é assim uma aposta segura e, como tal, ganha, ainda que parta de fundições comuns; isto é, de uma unidade que não comporta o oposto: separatismo.

De que se adorna, então, a escrita de Al Berto? De que perfume se impregna ao ser capaz de instigar um silêncio plácido ou assombroso no leitor? Será pelos temas que aborda? Pelo estilo de escrita? Pelos cenários que evoca? Ou pelas palavras que harmoniosamente espalha ao longo das linhas que tece? Em Al Berto tudo tem a sua vez, tudo comporta o seu sentido... Mesmo que este se declare ausente. Talvez por isso, e certamente por muito mais, lê-lo, em certas ocasiões, é como planar sobre o negrume da mais alta das noites, até que, de súbito, frágeis dedos luminosos rompem as negras e opressivas cortinas que outrora tudo cingiam. Então, os olhos amanhecem na delicadamente ténue luz das primeiras manhãs. E dádiva acontece.

***

Pedro Belo Clara é colunista do Letras in.verso e re.verso. Por decisão do editor do blog, nos textos aqui publicados preservamos a grafia original portuguesa. Nascido em Lisboa, Pedro é formado em Gestão Empresarial e pós-graduado em Comunicação de Marketing. Atualmente centrado em sua atividade de formador e de escritor, participou, com seus trabalhos literários, em exposições de pintura e em diversas coletâneas de poesia lusófona, tendo sido igualmente preletor de sessões literárias. Colaborador e membro de portais artísticos, assim como colunista de revistas e blogues literários, tanto portugueses como brasileiros, é autor dos livros A jornada da loucura (2010), Nova era (2011), Palavras de luz (2012) e O velho sábio das montanhas (2013) – sendo os dois primeiros de poesia. Outros trabalhos poderão ser igualmente encontrados no blogue pessoal do autor – Recortes do Real (artigos e crônicas diversas).


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