Ana Cristina Cesar por Caio Fernando Abreu



Foi Caio Fernando Abreu quem escreveu a quarta da primeira edição de A teus pés, primeiro título de Ana Cristina Cesar publicado em 1982 pela Editora Brasiliense. Sobre a obra em questão, seduz o leitor a ficar diante de um dos escritores "mais originais, talentosos, envolventes e inteligentes surgidos ultimamente na literatura brasileira." Os dois se conheceram pessoalmente naquele ano e mantiveram uma intensa relação de amizade, mantida através de troca de correspondências, confidências por telefone – estas que nunca chegarão até nós –, embora ele não gostasse da forma de comunicação e foi um dos que fizeram o possível para tentar livrar a poeta do destino desenhado por ela: o suicídio. Numa das cartas que escreveu à amiga Jacqueline Cantore, logo depois da morte de Ana, Caio se questiona: "Com que direito, Deus, com que direito ela fez isso? Logo ela, que tinha uma arma para sobreviver – a literatura – coisa que pouca gente tem." A partida repentina da poeta deixou profundas marcas no autor de Morangos mofados: um misto de "dor e raiva" como reconhece na crônica copiada a seguir. 

Para além das correspondências, Luiza Posebon Ribas, concorda que as escrituras dos dois "se aproximam, uma vez que ultrapassam" os limites do poético e do prosaico para falar "de um mesmo universo interior". E os dois acabam por, dessa maneira, "desmitificar o caráter inferior que à literatura desse tipo era comumente atribuído, trabalhando criticamente e transpondo as barreiras estipuladas entre aquilo que se poderia chamar de escrita para si de escrita de si." Para a pesquisadora, "os dois autores têm em sua escritura um resultado literário que é consequência de um processo trabalhoso de reflexão. Em comum têm ainda o espaço urbano por onde transitaram, o ar da cidade que tossiram, as noites nos bares, uma sexualidade pulsante. Esses espaços frequentados trazem Ana e Caio para um lugar convergente, traçam por dentro das duas escrituras uma terceira margem. E nessa margem que os dois vão construir a figura do 'estranho, personagem compartilhado pelos dois autores num jogo de fingimentos e ilusões que é uma busca de um eu e, ao mesmo tempo a perda desse mesmo eu".

As palavras de Luiza muito dizem quando nos colocamos diante do material a seguir: uma crônica em que Caio Fernando relembra a amizade com Ana Cristina e as correspondências dela enviadas para ele, misto de exercício confessional sobre o eu e reflexão sobre o exercício da literatura. 

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Por aquelas escadas subiu feito uma diva

Foi mesmo amor à primeira vista. Naquela manhã de 1982, pelas escadas que levavam à “Nau dos Insensatos” – como Caio Graco batizara a redação do Leia Livros, um mezanino da antiga editora Brasiliense na General Jardim, plena Boca do Lixo em São Paulo –, por aquelas escadas de madeira subiu Ana C. feito uma diva. Linda, loura, pescoço de Audrey Hepburn mas “certo ar de Mia Farrow”, como ela mesmo se auto-retratou em um poema, um único brinco indiano na orelha esquerda. Nervosa, irônica, crispada, inteligentíssima. Atenta demais, quem sabe?

Talvez tenha sido amor correspondido também, pois através do correio imediatamente começamos a nos escrever. Os meus livros, os dela, editados artesanalmente por Heloísa Buarque de Hollanda, traduções, artigos para o velho e bom Leia, contos, poemas. Ana c. em Sampa em fins-de-semana, com Reinaldo Moraes e Maria Emília Bender íamos a restaurantes japoneses (ela adorava saquê), ao Spazio Pirandello, Frevinho, o antigo Longehamps do grande balcão anos 50 e falávamos, falávamos sem parar.

As cartas ficaram insuficientes, vieram os interurbanos – ela usando a Rede Globo, no Rio, onde trabalhava, eu a Brasiliense, em São Paulo. À noite, quando começou a longa crise, outros telefonemas em desespero: “Me sinto emparedada”, repetia sempre. Um pouco por ela, mudei para o Rio, para o Hotel Santa Teresa, no alto do morro. A crise continuava. Certa vez, no apartamento de nossa amiga astróloga Graça Medeiros, segurei -a na janela à beira de saltar. Quase bati nela. Noutra, segurei-a tentando jogar-se frente aos automóveis da Gávea. Ela quase me bateu. Não, nunca fomos amantes: nossas praias era outras, se é que me entendem. Durante quase um ano, ela forjou suicídios cotidianos ao mesmo tempo sinceros e fraudulentos.

A última vez que a vi foi numa noite de setembro, quando eu completava 35 anos. Graça conseguiu levá-la até o alto de Santa Teresa e, por mais de duas horas, Ana C. não disse nada. Lenta, concentrada, apenas tocava, um por um, todos os objetos do meu quarto. E me olhava. Profunda, atentíssima, remota. Parecia uma despedida. Pouco depois tentou suicídio pra valer e foi internada numa clínica inacessível, para onde liguei tentando falar com ela e a psicanalista recusou-se, dizendo que “os amigos eram os principais culpados”. Seríamos? Mas logo nós, que amávamos tanto, seríamos assim uns love killers?

Em outubro vim a Porto Alegre lançar o meu Triângulo das Águas, muito influenciado por ela. Ao entardecer de um começo de novembro, nossa amiga Maria Claudia Jorge ligou do Rio dizendo exatamente: “Caio F., a Ana C. conseguiu.” Surpresa nenhuma, há um ano ela jogava aquele xadrez bergmaníaco com a morte. Sabia que era cedo demais; sabia que viraria mito; sabia que mais que uma atitude existencial, era uma atitude literária. Mas ousou. Senti dor e raiva por ela nos ter abandonado tão brutalmente no meio do caminho, deixando aquela sensação de que podíamos ter feito alguma coisa. Tão arrogantes: quem tem, afinal, o poder de salvar o outro de seus próprios abismos?

Não fomos felizes para sempre. Nem infelizes. Já a perdoei, já me perdoei. Fica esta dor de saber que toda a literatura brasileira perdeu o prenúncio de sua maior voz poética contemporânea. Nossa Sylvia Plath, nossa Zelda Fitzgerald. Fugaz como elas, doida, bela, chique, insuportável, irresistível. Ficou ainda um buraco, um vácuo, solavanco na continuidade. Cartas, poemas. Vestígios, souvenirs. Palavras, nossa asa e arma. Às vezes mortífera, sabes?



Ligações a esta post:
>>>No Tumblr do Letras veja fotografias da poeta Ana Cristina Cesar e recortes das suas primeiras experiências com a literatura.
>>>Reveja uma postagem em que copiamos uma apreciação crítica de Ana Cristina Cesar sobre a poesia mais poemas traduzidos por ela de Emily Dickinson.
>>>Quando da publicação da reunião de sua obra em Poética, deixamos notas sobre a obra de Ana Cristina Cesar.

*O texto de Luiza Posebon Ribas a que nos referimos nesta matéria é "Ana C. e Caio F. O encontro dos corpos e das escrituras" publicado no Boletim de Pesquisa NELIC. Já o texto de Caio Fernando Abreu aqui reproduzido foi publicado no jornal O estado de São Paulo de 29 de julho de 1995.


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