Não há nada de novo na literatura contemporânea



A quase 85 anos, Harold Bloom segue sendo um colosso entre os críticos literários, embora pleno da florescente excentricidade e do gênio legendário que construiu entre os poucos eruditos célebres de nosso tempo. Apesar de sua má saúde de ferro, acaba de entregar a seus editores um livro sobre o sublime nos Estados Unidos, título que em breve chegará às livrarias, The Daemon Knows: Literacy, Greatness and the American Sublime (O demônio sabe: alfabetização, grandeza e sublimidade nos Estados Unidos, em tradução livre). O livro sai depois de Poetas e poesias e enquanto trabalha noutro ensaio sobre William Shakespeare, autor que já apreciou em Shakespeare, a invenção do humano.

Bloom, “secularista com inclinações gnósticas”, persiste no assédio permanente; e segue ainda defensor da ideia de como a influência se exerce na literatura imaginativa e de que se é produzida entre o conflito e a tensão. Hoje, entretanto, o crítico se sente muito mais que disposto a comentar o estado da crítica literária atual que sua própria obra.

Sua presença abalou profundamente as torres de marfim da academia. Apesar de ter completado seu sexagésimo ano na Universidade de Yale, em seu “departamento de uma só pessoa”, Bloom é um incansável. “Deixei o departamento de Literatura Inglesa e me converti em professor Sterling do departamento Bloom em 1976” – recorda. Desde então, há produzido exercícios críticos de grande monta como O cânone ocidental, uma de suas obras mais influente, e situada na direção contrária a da usurpação da primazia estética: críticos marxistas, feministas, historicistas da Nova História, todos aqueles que leem um poema como documento social ou mescle política ou ideologia com a literatura. Denomina “escola do ressentimento” essa leitura tendenciosa, e seus praticantes, pois sustém que a leitura “cuidadosa e escrupulosa, desinteressada” é uma arte que agoniza.

Bloom classifica a internet como um artefato responsável pela erosão linguística e redefine os resenhistas e redatores de blogs autodenominados críticos como ideólogos ou propagandistas. “A maioria dos que chamam a si mesmos poetas são só versificadores; e a maioria dos que se chamam a si mesmos críticos não os são de nenhuma maneira, são jornalistas, ideólogos ou propagandistas”. Cita Johnson com o “sendo o maior crítico literário do Ocidente” e seu herói: “a função da verdadeira crítica é enaltecer a mera opinião em conhecimento. Não me interessa a gente que ostenta uma opinião sem conhecimento”.

O que faz um crítico ser verdadeiro crítico é “um profundo conhecimento da filologia, do grego e do latim, do provençal e do hebraico, além das línguas românicas e a história do idioma inglês. A gente ignora essas coisas e não parece preocupar-se com elas. Digo a meus alunos que se isolem quando um poema ou uma passagem do romance os encontre ou os enalteça até o conhecimento, e leiam em voz alta, cantem até que o possuam, o façam seu de memória. Esse é o verdadeiro conhecimento no campo da literatura. A memória é em verdade a mãe das musas. Nunca escrevi um poema porque não posso esquecer que eu mesmo sou uma encarnação da memória”.

As pessoas parecem buscar campos do novo, sendo comissárias do conhecimento verdadeiro, mas o comércio parece se nutrir de outra coisa; estamos vivendo o acaso das humanidades, dos periódicos e das revistas sérias? Bloom responde que todos os dias recebe e-mails de pessoas de todo mundo é seu lamento é sempre o mesmo, “lemos muito lixo”.

Não é o caso de que um crítico verdadeiro seja uma sorte de profeta, tampouco estamos vivendo uma era de retorno dos profetas, mas os bons leitores sabem por instinto, diz o crítico, quem é e não é um crítico. Como sabe também quem é e não é um bom escritor. “Há milhões de pessoas que me chamam de mestre, o que é uma lição de humildade, mas compreendo o que querem dizer. Para mim, o ensino, a leitura e a escrita são três nomes de uma só atividade. Sou um professor e estou muito esgotado, mas não vou aposentar-me”, diz ao relembrar que mesmo submetido a hemodiálise, sempre se pergunta sobre o pensamento mágico na literatura. “É uma modalidade diferente da poesia, mas é poesia”.

E repensa alguns dos dizeres sobre a conjuntura política mundial, ainda que se diga não ser essa uma atribuição restrita do crítico. “O mais polêmico que disse ou escrevi ofende aos ortodoxos da fé, sejam cristãos, mulçumanos, judeus, e é que Javé, Jesus ou Alá são personagens literárias. E por isso a noção de matar às pessoas em nome de um personagem literário é uma obscenidade. Mas fazemos. Isso é que se passando atualmente sem cessar em Síria e Iraque, em Palestina”.

Sobre o estado da literatura diz: “Não me parece que na literatura contemporânea, seja inglesa, nos Estados Unidos, espanhola, catalã, francesa, italiana, nas línguas eslavas, haja algo radicalmente novo. Não há grandes poetas como Paul Valéry, Georg Trakl, Giuseppe Ungaretti e meu predileto entre os espanhóis, Luis Cernuda, ou romancistas como Marcel Proust, James Joyce, Franz Kafka e Beckett, o último da grande estirpe. Borges era fascinante, mas não era um criador”.

A ressalva, na afirmativa, se dá sobre a obra de Bolaño, com quem o crítico manteve correspondência durante largo tempo: “Há algo aí, já veremos. Tivemos nossas diferenças, embora diga que exerci influência sobre ele”. E desata a comentar sobre a poesia poesia sul-americana. “Alguns poetas sul-americanos são muito vigorosos, esse que é inclusive mais velho que eu, Nicanor Parra. E Vallejo é um poeta notável. E, por certo, Octavio Paz, um escritor muito vigoroso tanto em prosa como em verso, e um amigo muito querido”.

***

À opinião de Harold Bloom, muitos não concordam e consideram um tanto atrasada para o tempo atual. Poucos estão de acordo e chamam atenção para o termo utilizado pelo crítico - radicalmente. De fato, não há nada radicalmente novo na literatura atual; “nem na atual e nem em nenhuma: nem Dante, nem Cervantes, nem Shakespeare, nem Kafka são radicalmente novos; se o fossem, não seriam tão bons. A literatura se alimenta de tudo o que encontra, mas sobretudo da própria literatura. Em certo sentido, é como a matéria: nem se cria nem se destrói, só se transforma. Por isso dizia Picasso, e eu não me canso de repeti-lo, que a originalidade não consiste em não parecesse a nada, mas em parecesse a todo mundo. O radicalmente novo não existe e se existisse seria mal. E Bloom sabe disso”, concorda Javier Cercas. 

“O original segue existindo”, assegura o escritor Enrique Vila-Matas. “Ser radicalmente novo não significa ser original. Ser radicalmente novo acaba sempre mal e está, além disso, bem visto como cômico, ou como o romance baseado em feitos reais. A mudança, ainda que pese mal para alguns, o original, segue existindo. Recente eu disse que uma obra nova só tem sentido se forma parte de uma tradição, mas só tem valor nessa tradição se, como ocorre em Diderot sobre Sterne, com Joyce sobre Homero, com Valeria Luiselli sobre Samuel Beckett, oferece uma variação profunda que nos devolve transformada e nova a obra mestra eleita”. 

Cesar Antonio Molina no texto “Vivemos uma era da intensidade tênue” concorda com Bloom que, “não há autores a altura de Proust, Joyce, Kafka, Beckett, mas sim interessantes”. “As grandes cabeças não ocorrem em abundância. São escassas e, cada vez mais, porque também desgraçadamente a sociedade massificada e de consumo em que vivemos as produz menos. É certo que estamos ante o ocaso das humanidades, dos periódicos e da cultura em geral como temos vivido até hoje. As novas tecnologias e tudo o que elas implicam, todavia, ampliam esse abismo. Há bons leitores, magníficos livros mas, cada vez mais, como disse Harold Bloom, o lixo nos invade.”

Já Alberto Mangel concorda que os catálogos nunca convencem e se seguirmos eles, eles podem nunca oferecer outra visão além da opinião de Bloom; isto é, a opinião do crítico estadunidense pode ser revisada. “É certo que a voz de Ceess Nooteboom tem ecos de Ibn Battuta e Diderot; que em W. G. Sebald há vestígios de Sir. Thomas Browne e de Heine prosador; que Enrique Vila-Matas herdeiro de Laurence Sternec; que Ismail Kadaré continua a tradição de Heródoto e de Homero; que Jean Echenoz aprendeu a lição dos romancistas franceses do século XVIII; que Tom Stoppard deve muito ao teatro de Wilde e Pirandello; que Tomas Trasntrömer leu Virgilio das églogas e Wordsworth; que Cynthia Ozick estudou a obra de Henry Hames; que Pascal Quignar tem uma dívida com Montaigne. Tudo isso é certo, mas certo é também que esses autores são únicos e suas obras iluminam nosso século como Cervantes e Shakespeare iluminaram o seu”. 


* Escrito a partir de notas de "No crec que hi hagi res radicalment nou en la literatura actual", "El abismo entre novedad literaria y calidad", "Vivimos una era de intensidad tenue" e "Autores únicos que iluminan en siglo".



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