Cinco coisas que você precisa saber sobre Cem anos de solidão

Por Julio Ortega

Gabriel García Márquez na clássica foto em que exibe a primeira edição de Cem anos de solidão


As origens

Gabriel García Márquez teve a ideia do romance quando sua mãe lhe pediu para acompanhá-la a Aracataca, o povoado onde nasceu, para visitar a casa de sua infância e vendê-la. Passaram-se 40 anos e várias versões até que um dia, quando ia com Mercedes, sua companheira, e os dois filhos de férias para Acapulco, veio-lhe o ponta pé ou chave que há muito havia buscado em vão. No retorno para casa, na Cidade do México, sentou-se ante a máquina de escrever e só saiu daí dezoito meses depois quando colocou um ponto final na primeira versão do texto.

O título

Há uma música afro-americana chamada One hundred years of solitude, um lamento de escravos do Sul. E há um curta-metragem mudo em que um solado da Guerra Civil, frente ao pelotão de fuzilamento, recorda sua vida fugaz. Mas, em Cem anos de solidão se trata da “sol-edad”, a era solar. A saga guerreira dos pais cuja extraordinária arbitrariedade multiplica as batalhas e destrói a família, o povo e a memória. Seu primeiro título foi A casa. Defendia a casa familiar, reconstruída pela leitura. À primeira vista, o romance em espanhol deixa de ser uma série (de pícaros, quixotes, páramos e cruzes) e abre para o leitor um lugar hospitaleiro.

A hipótese

Este romance se constrói contrário à tradição narrativa, socialmente situada. Ao invés de espaços antagônicos (vida pública-vida privada), postula a complementariedade do modelo cognitivo aborígene. Os opostos se articulam, se necessitam, e formam uma só figura. Os ciclos de abundancia e carência são sucedidos como espaços do mundo direito e do mundo ao contrário. Cem anos de solidão é também a gênese sobre as nações; isto é, de um relato antecessor dos Estados, livre de fronteiras, lendário e autárquico. Ao final, tudo o que lemos vem por sobre o ombro de outro leitor, o último dos Buendía. Cada leitor é o último Buendía. O primeiro de uma pátria paralela, a leitura.

Os ciclos

Já na primeira página encontramos que os estilos que são tramados correspondem ao discurso mítico, que encarna nos ciganos, os jovens que ensaiam a alquimia e o patriarca que utiliza as “invenções” disfuncionalmente. Logo emerge o discurso histórico, com as eleições trapaceadas, a rebelião de Aureliano e a guerra civil, que traduz o radical desengano da história política. Trama-se em seguida a voz dos que estiveram no momento do acontecido. E finda a espiral na fala apocalíptica, quando o romance vai servindo de rascunho ao próprio romance. Cada linguagem é, por sua vez, temporal: lendária, cronológica, memorialística e conclusiva.

Os leitores

Cem anos de solidão deu ao ato de ler uma função emotiva, educando-nos em sua extraordinária sutileza, ao mesmo barroca e lírica, tão elaboradíssima como muito clara. A grande parábola da leitura é a “peste da insônia”, que coloca em que xeque a capacidade do homem em reter os nomes das coisas. Mas não apenas se trata das cenas da leitura que desdobram uma após outra, como um cenário mais barroco que fantástico; trata-se também que este romance, excedendo a lição de Borges, não só inventa seus precursores (Rabelais, Faulkner, Rubén Darío), mas cria seus leitores. Quem a leu no mesmo ano de sua aparição (1967) confirma sua fé numa América Latina capaz de sua diferença criativa e moderna. Mas uma geração depois foi lida como a utopia emancipadora dos projetos nacionais perdidos.

O incesto

A obsessão do incesto coloca Úrsula como uma maldição da linhagem. A origem está no filho com cauda de porco e está também na profecia do filho comido pelas formigas. A proibição do incesto organiza o sistema de parentesco e dá um valor de intercâmbio ao bem familiar mais precioso, as filhas. Mas, no romance o que não se constrói é a vida cotidiana, seguramente já esgotada por Balzac. Úrsula, sem dúvidas, faz do incesto outra denúncia sobre a violência patriarcal. Como Pedro Páramo, de Juan Rulfo, Cem anos de solidão combate a paternidade errática como o centro do mal.

O realismo mágico

Nada é mais real que a magia da leitura. E qualquer um que tenha conhecido a ética dos afetos poderia discorrer por estas páginas a proveitosa leitura desse romance. Uma vez perguntei a Toni Morrison se os negros que em seus romances voam de volta para a África saíam das páginas de Gabo. Não, me respondeu, saem de Ohio. Ela havia encontrado esse mito popular entre os camponeses negros. Quando pai e partia, a família dava-lhe essa explicação. Como ocorre com Remédios, a Bela. Quando um vendedor ambulante roubou a menina bonita do povoado, sua família explicou que havia subido ao céu em corpo e alma. Em ambos os casos, a cultura popular sutura as feridas sociais com o mio do voo. Se o negro de Toni Morrison cruza o céu das Antilhas, com Remédios, a Bela é porque ambos saem da cultura afro-americana. É o anjo da história (da destruição), ela é o anjo da fábula (da reparação). Se cruzam, na verdade, no horizonte de nossa leitura. Não é fácil ler, mas se aprende.

Ligações a esta post:

* Este texto é uma livre tradução para "Claves de Cien anos de soledad" publicado no El País.



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