Onze livros com animais no plano principal do enredo



É bastante recorrente na ficção a presença de animais que desempenham ora um papel muito simbólico para a narrativa – caso de o cão das lágrimas em Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago em que sua atitude de conforto à mulher do médico extenuada das forças em lutar contra algo maior que ela – ou mesmo assumem o papel de protagonista até o limite de ganhar destaque na capa do livro, isto é, dão nome à obra. Não raras vezes são animais cujas feições humanas ultrapassam a caracterização do próprio homem.

A humanidade de baleia em Vidas secas, de Graciliano Ramos e dos cães na obra de José Saramago (eles lá estão em toda parte) é de chamar a atenção de qualquer leitor. E essas personagens marcantes pertencem a uma galeria para outra lista. Esta que agora se publica é também uma lista de animais, mas seu caráter é mais abrangente e chama atenção para aquelas obras cuja importância dessas personagens é tamanha que o seu autor ousou nomeá-las em referência explícita a elas. Parte dos livros aqui citados são de outra lista, elaborada por Mercedes Cebrián e publicada no jornal El País e daí porque se trata de ideia que ultrapassa a primeira – de só nomear obras literárias com a presença de figuras do reino animal com extremo valor simbólico para a narrativa.

Nunca é demais repetir que toda lista como esta não tem interesse de ser definitiva; toda lista se baseia em critérios de escolha de seus criadores e está limitada pelo seu horizonte de conhecimento sobre o tema. As indicações da lista de Mercedes Cebrián aparecem marcadas no fim de cada texto com as iniciais M. C. Os textos das indicações do Letras são, em parte, sinopses copiadas das editoras que publicam a obra em questão no Brasil.

- Timbuktu, de Paul Auster
Apesar de não aparecer no título da obra, a presença do vira-lata Mr. Bones, é predominante em toda a narrativa; aliás, está uma narrativa cujo tema é o da amizade entre um poeta semilouco e o cão. Misto de romance e fábula, Timbuktu se passa numa cidade de mesmo nome, lugar para onde vai viver Willy, o poeta em questão. Para ele, o lugar é para onde vão os mortos, onde o mundo acaba. O vira-la compreende a língua dos homens e acredita fielmente nas aventuras, ensinamentos e delírios de seu companheiro. Quando Willy morre, o cão é obrigado a sobreviver sozinho num ambiente hostil, povoado de perigos. À medida que as privações e os maus-tratos acentuam o espírito meditativo e melancólico de Mr. Bones, percebemos que só um animal poderia nos deslocar para uma esfera de sentimentos puros como os que aparecem nesse livro.

- Os gatos, de T. S. Eliot
Durante toda a década de 1930, o poeta já consagrado pelo seu épico Terra devastada, deu de presente a seus afilhados e amigos uma série de poemas. Enviados por carta – que ele assinava como "o velho gambá", apelido cunhado por Ezra Pound –, esses poemas narravam a vida de um grupo de gatos, do temível Mac Anália (o "Napoleão do crime") ao mágico Sr. Mistófelis, passando pelo velho Deuteronômio e pelo teimoso Rin Tim Tan Tam. Os poemas, no entanto, surpreenderam seus amigos pela graça e sensibilidade para com a psicologia felina, e em 1939 ele foi convencido a publicá-los. O que era para ser uma brincadeira acabou por se tornar um de seus trabalhos mais conhecidos, e quando recebeu o Nobel de literatura, em 1948, a fama extrapolara o meio acadêmico. Após sua morte, os poemas serviriam de base para o musical Cats, um dos mais longevos do West End londrino e da Broadway.



- A viagem do elefante, de José Saramago
O que poderia ser apenas um romance – ou conto, como prefere denominar o autor – sobre a longa viagem de um elefante chamado Salomão, que no século XVI cruzou metade da Europa por extravagâncias de um rei e de um arquiduque, se transforma numa poderosa fábula para a denúncia dos desmandos do homem, os subterfúgios do capital e da religião e a hipocrisia que carcome a humanidade desde o início dos tempos. Salomão é presente do rei Dom João III ao arquiduque Maximiliano II. O animal havia chegado a Portugal junto com seu tratador de Goa e descartado depois de deixar de ser uma criatura exótica para o público. No sentido da expressão uma mão lava a outra, o rei tem, então a ideia de presentear o austríaco com o paquiderme. A trajetória – uma epopeia de fundo histórico – é o itinerário necessário para a extensa teia de situações que colocam o animal e o homem em relação diversa, capaz de revelar os vários lados assumidos pela natureza humana.

- Viajando com Charley, de John Steinbeck
Na década de 1960, o escritor de As vinhas da ira, preocupava-se em querer conhecer novamente os Estados Unidos repetindo a façanha de perambular pelo interior do país como havia feito trinta anos atrás quando rodou milhas e milhas num caminhão de padaria. Foi com essa ideia que ele percorreu diversos estados e regiões dos Estados Unidos ao lado do poodle Charley, a bordo de um caminho batizado de Rocinante adaptado para servir-lhe de moradia durante a viagem. É dessa viagem que nasce o livro agora indicado. A obra saiu no mesmo ano em que ganhou o Prêmio Nobel de Literatura. A comunicação não-verbal com seu cachorro que possui “coração e alma de urso assassino” é uma das lições mais eloquentes entre homens e animais.

- Moby Dick, de Herman Melville
Inteligência e perspicácia dominam a lista de qualidades do cachalote enfurecida que, depois de ferida diversas vezes por baleeiros, consegue reverter a situação ao seu favor. O romance inspirado nos acontecimentos do naufrágio do navio Essex foi publicado em Londres em três fascículos em 1851; no mesmo ano, dado o sucesso fora do país, a obra foi publicada em formato de livro nos Estados Unidos. Revolucionário para época pelas descrições intrincadas e imaginativas das aventuras do narrador Ismael, suas reflexões pessoais e a inserção de longos trechos propositalmente inseridos pelo escritor para tratar de assuntos diversos relacionados à trama: baleias, métodos de caça às baleias, armas, embarcações, funcionamento e armazenagem de produtos extraídos das baleias etc.

- Eu sou um gato, de Natsume Soseki
Ao aparecer num terreno baldio, “sombrio, úmido e pegajoso”, o gato, narrador deste romance, depois de passar por algumas poucas adversidades, acaba parando numa casa onde é acolhido por Chinno Kushami, o professor mal-humorado e estagnado em sua completa falta de perspectiva. Ridiculariza de maneira demolidora a vida da intelectualidade do Japão da Era Meiji, mostrando a fragilidade do professor e daqueles que o cercam. Sugerindo-se sempre como um ser de raça superior, o gato, com sua pesada munição e ares de dândi, não poupa nada nem ninguém. Sua linguagem é carregada de sarcasmo quando o assunto é o ser humano. Mesmo quando há uma ternura esta é impregnada de deboche. Soseki investe, por meio do olhar de fora, recurso que usa habilmente, em profundas análises psicológicas do ser humano – influenciado por William James (1842-1910) e suas pesquisas sobre o subconsciente. Todas as personagens passam pelo crivo do felino que leva o leitor a uma jocosa aventura, chamando-o para ser seu cúmplice na tarefa de desvendar o trágico cinismo interior de cada personagem e seu mundo repleto de mesquinhez, mentiras, vaidades e desolação. Publicado inicialmente em forma de capítulos no Hototogisu, importante jornal literário da época, e lançado em 1905, Eu sou um gato é a estreia literária de Natsume Soseki e uma das primeiras faturas da renovação modernista da literatura japonesa.

- Contos da selva, de Horacio Quiroga
Parece ser clássico que as histórias protagonizadas por animais tenham como leitores implícitos as crianças. Assim acontece aqui, pois o escritor uruguaio escreveu estes contos pensando no público infanto-juvenil. São histórias sobre uma selva conhecida de nós, mas pouco lembrada, a sul-americana: desfilam ante o leitor os jacarés argentinos do rio Paraná, a tartaruga gigante amiga do diretor do Zoológico de Buenos Aires, a abelhinha malandra de algum lugar das selvas latino-americanas. Animais cujas histórias se somam às das onças pintadas em guerra com as arraias de fogo, dos filhotes de quati que cruzam fronteiras proibidas para conhecer os filhotes de homem. Esse tom fantástico logo serviu para que a obra se tornasse não apenas um clássico da literatura latino-americana do século XIX, mas, pela maneira como o escritor forjou linguisticamente as situações, um livro para todas as idades.

- O colóquio dos cachorros, de Miguel de Cervantes
Esta é uma das novelas que compõem Novelas exemplares, livro publicado por Miguel de Cervantes em 1613. É a primeira história de cachorros falantes na literatura ocidental. Uma noite, os cachorros Cipião e Berganza, que habitam e protegem o Hospital da Ressureição de Valladolid, adquirem o dom da fala. Antes que amanheça, Berganza narra sua vida para Cipião. Suas histórias, sempre pontuadas pelas observações equilibradas de Cipião, percorrem várias cidades da Espanha e traçam sua relação com seus inúmeros donos; pastores que ludibriam o dono do rebanho, ciganos que vendem duas vezes o mesmo animal para um comprador desavisado, um artista de rua que lhe ensina truques para receber moedas, homens de negócio nem sempre honestos. Inspirados por essas histórias, os cachorros refletem sobre o homem e sobre a ética do seu tempo. Flertando com a estrutura de romance picaresco, tão difundido na época em que foi escrita esta novela, Cervantes inova ao confrontar a realidade fantasiosa com a verossimilhança e ao elevar as técnicas de narrativa literária a outro patamar. A sátira social, a fantasia, o humor, são características do autor de Dom Quixote que se condensam neste texto do século XVII que mantém a atualidade.



- Flush – uma biografia, de Virginia Woolf
Logo depois de escrever As ondas, a escritora inglesa lia os dois volumes da correspondência de Elizabeth Barrett Browning, a importante poeta da era vitoriana. E instigada por essa leitura resolveu escrever Flush – uma biografia. O relato de Virginia inicia na época em que Elizabeth conheceu o poeta Robert Browning, com quem, pouco tempo depois, ela se casaria às escondidas, fugindo com ele para a Itália. Foi um pouco antes disso que ela recebeu de presente, da também poeta Mary Russell Mitford, um filhote de cocker spaniel chamado Flush, que teria um importante papel em sua vida. Para surpresa da própria Virginia, o livro foi um sucesso de público. Em compensação, foi praticamente ignorado pela crítica. Ou, pior, quando mereceu alguma atenção, foi apenas para ser classificado como uma peça que representava o fim da carreira literária de uma grande escritora. A obra, como sugere o título, é a biografia de um cão que mostra aventuras e mistérios da existência percebidos através do seu olhar. Em pleno processo de apreensão do mundo e de si mesmo, ele ama tanto os raios de sol quanto um pedaço de rosbife, a companhia de cadelinhas malhadas assim como a companhia de seres humanos, o cheiro de campos abertos tanto quanto ruas cimentadas e o burburinho da cidade. Através dele, a autora tece comentários sobre a sociedade inglesa e vitoriana e seus valores.

- Reflexões do gato Murr, de E. T. A. Hoffmann
Se um gato-narrador já seria uma opção narrativa ousada na literatura de qualquer autor contemporâneo, que dizer da Alemanha do início do século XIX? Pois é essa a proposta de E.T.A. Hoffmann nesse livro, obra de grande comicidade e irreverência, em que o bichano evocado no título, metido a erudito e cuja personalidade passa longe da modéstia, dedica-se a produzir a própria biografia com o intuito de legar à posteridade o registro de sua felina e brilhante passagem por esta existência. Assim, o petulante Murr, em meio a reflexões filosóficas e divagações mundanas, repassa ao leitor os momentos marcantes de sua vida, desde a primeira mão humana que o recolhe para pô-lo diante de uma generosa tigela de leite, até as danações de sua vida adulta, que incluem, por exemplo, a peculiar amizade com o poodle Ponto; o amor malfadado pela beldade bichana Miesmies; e o truculento acerto de contas “a dentadas” com o gatuno pintalgado que a roubou dele. Murr também critica seus pares “filisteus”, aqueles desprovidos de qualquer erudição – o que não deixa de ser uma ironia de Hoffmann sobre os hábitos burgueses que ele condenava. 

Caninos Brancos, de Jack London
O romance a história de um lobo nascido no território de Yukon, no norte congelado do Canadá, durante a corrida do ouro que atraiu milhares de garimpeiros para a região. Capturado antes de completar um ano de idade, é usado como puxador de trenó e obrigado a lutar pela sobrevivência em uma matilha hostil. Mais tarde repassado a um dono inescrupuloso, é transformado em cão de rinha e, mesmo depois de resgatado desse universo de violência, ainda precisa de um último ato de heroísmo para conseguir sua redenção e finalmente encontrar seu lugar no mundo. Percorrendo o caminho inverso ao do traçado em O chamado selvagem (1903), em que um cão domesticado é obrigado a se adaptar à vida na natureza, em Caninos Brancos (1906) Jack London narra a história d e um animal que precisa suprimir seus instintos para sobreviver na civilização. Grande sucesso de público desde o lançamento, já foi traduzido para mais de oitenta idiomas e adaptado diversas vezes para o cinema, os quadrinhos e a TV.

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