Henry David Thoreau: o libertário para uma vida sublime

Henry David Thoreau

McAllister, o diretor da Welton Academy, prestigiada instituição educativa de Vermont, Estados Unidos, olha com certa condescendência o professor de Literatura John Keating, cujos métodos fora dos trilhos são-lhe um quebra-cabeça. “Mostre-me um coração não afetado por sonhos tolos e mostrarei um homem feliz”, diz. E Keating responde: “Só no sonho temos liberdade. Sempre foi assim e sempre será”. E McAllister: “Tennyson?” E Keating: “Não. Keating”.

A cena é uma das mais lembradas de Sociedade dos poetas mortos, o filme de Peter Weir que agitou as mentes dos jovens (e não tão jovens) em finais da década de 1980. Espectadores que, em sua maioria, desconheciam a conexão entre Thoreau, Walt Whitman, Jonh Muir, Robert Frost... e John Keating.

A personagem interpretada por Robin Williams não tem Lord Tennyson, o poeta inglês do pós-romantismo, como sua chave de salvação. Por isso surpreende o severo McAllister e, sobretudo, seus alunos, que experimentam uma epifania ao longo do curso. “Thoreau disse que a maioria dos homens vivem em desespero silencioso. Não se resignem a isso. Libertem-se. Não caminhem pelas margens, olhem ao seu redor”, os incita. E também cita Frost, fundador da poesia moderna estadunidense, o bardo do homem rural da Nova Inglaterra: “Dois caminhos se abrem ante mim, mas tomei o menos movimentado e isso fez a diferença”.

O carpe diem já está nas odes de Horácio, mas é Henry David Thoreau (Concord, Massachusetts, 1817-1862) quem toma o tópico literário para provocar um big bang de rebeldia contra o conformismo e a docilização dos corpos. “Aproveitemos o momento porque a morte viaja sobre nossos ombros, porque temos os dias contados. Façamos com que nossas vidas sejam extraordinárias”. Thoreau que nunca pretendeu doutrinar (“Quando leiam, não considerem apenas o que o autor pensa, mas o que vocês pensam”, conclui Keating), mas não sem dar um golpe nas consciências para que cada um siga seu próprio caminho, não podia imaginar a sequela que ia deixar em gerações inteiras de leitores de todo o mundo.

“A obra de Thoreau nos faz sair das bibliotecas e nos convida a levar uma vida filosófica no dia-a-dia: sua vida se irmana com seu pensamento, é subversiva contra a mercantilização, a oligarquia, o domínio dos capitais e das finanças, sobre a independência e a soberania dos povos. Seu discurso é plenamente vigente e já não se resume apenas com o indignar-se”, reflete Maximilien Le Roy, roteirista que ficcionalizou em HQ a vida do escritor. Ele recorda que Mahatma Gandhi descobriu a obra de Thoreau na prisão e o converteu logo em seu “mestre” (“Sob um governo que prende qualquer homem injustamente, o único lugar digno para um homem justo é também a prisão”, disse o autor de A desobediência civil, livro de cabeceira de Gandhi); e Martin Luther King Jr. afirmou haver dado vida aos ensinamentos do filósofo em suas ações contra a segregação racial dos afro-americanos.

Essas figuras ilustres não servem necessariamente como argumento de autoridade. Assim, uma é preciso citar que uma legião de anônimos, defensores do meio ambiente, antimilitaristas, anticolonialistas, ativistas pela antiglobalização e rebeldes de toda causa encontraram nos escritos e na vida de Thoreau as armas contra as múltiplas formas de opressão.

Emma Goldman, lendária pioneira na luta pela emancipação da mulher, o descreve como “o maior dos anarquistas estadunidenses”. O filósofo Michel Onfray (ver texto a seguir) invalida esta característica. Thoreau não é anarquista, mas libertário. Segundo o francês, o anarquista acredita nos “ideais progressistas do século XIX”, enquanto o libertário, por sua vez, não se “sacrifica” por nenhum ideal.

“Não é um teórico metódico, inventor de uma filosofia coerente, mas um escritor que se desloca de uma margem a outra, em contínua busca de nova formulação apropriada para a linguagem que é o presente. Seu pensamento é complexo, revolucionário, paradoxal, provocador”, aponta Michel Granger, professor de Literatura da Universidade de Lyon e especialista em escritores do chamado “renascimento estadunidense”, como Emerson, Hawthorne, Whitman, Poe, Twain, Melville e Thoreau.

Nosso filósofo deixou sua marca em John Muir, provavelmente o primeiro ecologista moderno. Nascido em Dunbar, na costa leste da Escócia, em 1838, escreveu uma dezena de livros e centenas de artigos em que defendeu sua particular filosofia sobre a vida selvagem e a preservação dos espaços naturais. “O caminho mais claro até o Universo passa por um bosque virgem”, sentenciou este admirador de Humboldt (não percamos de vista o sábio prussiano nesta história de humanistas-naturalistas do século XIX que estavam em contato ou sabiam por através de uns pelos outros sem necessidade de Facebook). Muir teve sua cabana ao estilo Walden no vale de Yosemite, onde também recebia amigos. Por ali passou Ralph Waldo Emerson, que não quis acampar com ele. Um detalhe que “não dizia nada de bom do seu glorioso transcendentalismo”, pensou seu anfitrião. Embora não reduzimos Emerson a isso, porque deixou frases do tipo “nada pode trazer paz se não vocês mesmos. Nada pode trazer paz senão o triunfo dos princípios”.

cena de Na natureza selvagem

E, certamente, Thoreau, marcou seu admirador mais extremo, Chris McCandless (1968-1992), o brilhante estudante que renegou o materialismo vazio da sociedade estadunidense e sonhou abandoná-la tal como fez seu ídolo para fazer-se dono si próprio e regenerar-se pelo espetáculo da natureza. Depois de alguns fracassos, elegeu o Alaska para seu propósito e viveu vários meses num ônibus abandonado, o “ônibus mágico” que apareceu no meio do nada, até que morreu por inanição, derrotado por esta natureza que lhe exigiu algo mais que romantismo. Sua peripécia – alardeada e criticada de igual forma – está contada no livro Into the Wild (Na natureza selvagem, de Jon Krakauer) e levado para o cinema em 2007 por Sean Penn.

Em 2017, ano de celebração do duocentenário de nascimento do escritor, não faltam ensaios inspirados por ele. “Ele nos convida a ser valentes, não de modo exacerbado em situações especialmente épicas, mas no dia-a-dia”, escreve Toni Montesinos. “Nos ensina a ser bons, puramente bons, sem hipocrisias nem vaidades, mas com a firme intenção de praticar a bondade com fins determinados, quase de forma pragmática; nos ensina a olhar com respeito a natureza e sermos humildes ante ela, sem deixarmo-nos cegar pelas impactantes inovações tecnológicas; nos ensina, por fim, ao não resignarmos ao estilo de vida que a sociedade do espetáculo nos arrasta e a ter um critério próprio firme e sossegado”.

Maus tempos para a filosofia? Leiamos Thoreau. Terão um melhor dia. Talvez, se perseveram uma melhor vida. Basta abrir por própria sorte uma página de Todas as coisas boas são selvagens e livres e recitar um de seus aforismos aí contidos: “Gosto de uma ampla margem para minha vida”. “Não posso lhes dizer o que sou, mas além de um raio de sol. O que sou, sou e não digo. Ser é melhor forma de explicar-se”.

*
THOREAU, UMA CABANA TRANSCENDENTAL

Por Michel Onfray

Thoreau escreveu esta frase, terrível e muito verdadeira: “Nos dias de hoje existem professores de filosofia, mas não filósofos”. Pensava, muito provavelmente, em seu amigo Emerson. Emerson, seu amigo... Mas Thoreau era um homem difícil, tinha um conceito difícil da amizade. Quando escreveu o obituário de Thoreau, não deixou de destacar esta característica de seu caráter: “Havia em sua natureza algo de militar e de irredutível, sempre viril, sempre apto, mas raras vezes terno, como se não se sentisse bem melhor quando em desacordo. Necessitava denunciar alguma mentira, alguma falta de senso que o colocava em praça pública, um certo ar de vitória, um toque de tambor para libertar plenamente suas faculdades”.

O transcendentalismo de Emerson foi um movimento filosófico estadunidense notável, ao mesmo tempo que um modismo (como foram o schopenhauereísmo e o nietzscheanismo na França). Sem dúvidas, a moda é o pior que pode acontecer com a filosofia, porque a desintegra, a dilui e a metamorfoseia em monstros construídos com fantasmas e projeções.

O Deus de Emerson não se parece em nada com o do judeu-cristianismo, zeloso e vingativo, castigador e malvado; o filósofo regressa a aquele outro que não se encontra esgotado pela razão, nas análises e na ciência. Deus é assimilável ao espírito do mundo, à energia da natureza, à força cósmica. A partir deste momento, o conhecimento não deve ser uma questão de dedução, de análise e de racionalismo, mas de sentimento, sensação, intuição, simpatia, empatia.

Thoreau é um transcendentalista? Sim e não. Sim, porque acredita em Deus, pratica o conhecimento por empatia, detesta as multidões e os grupos, não acredita mais que na transformação individual, celebra e pratica a confiança em si mesmo, preconiza e vive o inconformismo, pratica a contemplação e o gozo místico, constrói sua vida filosófica a partir de si. Mas não se compara com Emerson, que vive um transcendentalismo de gabinete e de biblioteca. O autor de Over-soul faz da natureza um meio para alcançar um fim, o êxtase de tipo plotiniano. Para Thoreau, é o contrário, a natureza é um fim em si mesma e não um meio para alcançar algo maior que ela. Emerson quer sair espiritualmente do mundo e solicita à natureza que proveja essa saída; Thoreau quer ficar no mundo, quer gozar da natureza aqui e agora, corporal e fisicamente.

A cabana de Walden, onde viveu Henry David Thoreau


Oportunidade existencial

Thoreau afirma que Emerson seria totalmente incapaz de manejar o carro de mão no jardim; vê nessa incapacidade prática do espírito puro a prova de uma diferença fundamental. E, sim, é certo: Emerson é um estado de filósofo; Thoreau, um pensador dos campos. O segundo imaginamos devorando cru um pequeno mamífero, coisa que fez um dia; o primeiro o vemos melhor bebendo chá em pequenos goles no transcurso de uma conversa de salão sobre a natureza... A cabana é, para Thoreau, a ocasião de demonstrar que o transcendentalismo não é uma questão de livros, mas de oportunidade existencial. Uma só noite e uma vida intermitente na cabana bastam para ensinar que o filósofo vivia suas ideias e pensava sua vida, que associava a teoria e a prática, o pensamento e a ação, a filosofia e a vida. Que não era professor de filosofia, mas filósofo.

Emerson havia lhe emprestado o terreno onde Thoreau construiu a cabana, às margens do lago Walden. Imagina o lago sem fundo, sem entrada nem saída de água, como cheio de uma água pura capaz de lavá-lo do pecado original da civilização. Banha-se aí diariamente, seja qual for a estação. Quando a superfície encontra-se congelada, deita-se no gelo e observa sob ele a vida das profundezas. Estuda as subidas e descidas do nível da água; a respiração do lago, como se se tratasse de um ser vivo... A cabana tem treze metros quadrados de superfície: três por quatro e meio, com dois e meio de altura. Coloca nela três cadeiras para receber mais de duas pessoas de uma vez. Dispõe uma cama e uma mesa. Uma chaminé lhe permite esquentar-se. Recebe viajantes, camponeses, lenhadores, escravos, fugitivos. Também filósofos.

Publica Walden em 1854. Trata-se de um livro autêntico e grande de filosofia. Não se encontra em nenhum conceito, nenhuma personagem conceitual, mas numa reflexão sobre as condições de possibilidade de uma experiência existencial: como levar uma vida filosófica? Thoreau nos convida a não imitá-lo, ensina como pode fazer-se; fica a critério de cada um inventar seu caminho, encontrar sua via.

Remédio para a felicidade

Livro grande a autêntico de filosofia. Thoreau propõe o que denomina uma “medicina péptica”; noutras palavras, uma medicina para gerar o bem-estar e a felicidade e afastar o mal e a dor. Qual é esta medicina? Regozijar-se ante o esplendor de cada manhã; opor-se com uma vontade de alegria ao movimento natural da negatividade, que nos leva ao pessimismo; desejar a felicidade, que não nos é dada, mas que deve ser construída; colocar-se ou voltar a colocar-se no centro de si próprio; transformar os inconvenientes em vantagens; buscar o positivo no negativo; querer fazer da própria vida uma festa.

Convida igualmente a reprovar “a vida mesquinha”. A vida mesquinha é uma vida orientada por falsos valores. É uma vida suja por vícios da sociedade de consumo: cobiçar, comprar, possuir, consumir, substituir desnecessariamente. Quem poderia não subscrever esta constatação: “Parece-me evidente que muitos de vocês vivem umas vidas pobres e servis”? Não nos pertencemos, perdemos nossa vida tratando de ganhá-la, vivemos como máquinas, entregamos sempre nossa vida ao amanhã. Que fazer para deixar de levar uma vida mesquinha? Há aqui seis fórmulas: “Explora a si próprios”, “viva a vida tal como imaginada”, “ama sua vida”, “simplifica, simplifica”, “tenha um corpo são”, “viva livre e sem compromisso”. Precisemos.

A primeira: “Explora a si próprios”. Emerson afirmava: “Viajar é o paraíso dos bobos”. De que serve dar uma volta ao mundo quando partir em busca de si mesmo é uma odisseia muito mais rentável do ponto de vista existencial? Viajar só serve para perder-se. Partir em busca de um si mesmo é, talvez, achar-se.

A segunda: “viva a viva tal como imaginada”. Ir na direção dos sonhos, não ser infiel às promessas que fazemos quando jovens. Thoreau escreveu esta frase extraordinária: “Se você já construiu castelos no ar, não tenha vergonha deles. Estão onde devem estar. Agora, dê-lhes alicerces.”

A terceira: “ama sua vida”. Thoreau aprecia os textos espirituais, os Evangelhos, o Bhagavad Gita, a Bíblia, os textos mitológicos de todas as civilizações; estima também os grandes mestres espirituais: Jesus e Zoroastro, Buda e Confúcio. Mas não gosta da religião cristã, que cansou os homens com a vida, os seres vivos, a natureza. A quarta: “simplifica, simplifica”. O que possuímos nos possui, por que deixar passar a vida perdendo-a e acabar de querer ganhar a vida, porque o que o ganhamos nos perde. O que temos, o que queremos, o que esperamos, o que possuímos: tudo isso nos perde.

A quinta: “tenha um corpo são”. A prática dos exercícios espirituais precedentes contribui para produzir um corpo perfeito. Sobriedade, frugalidade, simplicidade e austeridade geram um corpo são, limpo e, logo, uma alma impecável. O sábio não teme já a chuva, o frio, o calor, a sede, a forme, o tédio, a dúvida, a melancolia, a angústia, o medo, o desespero. É, assim, livre.

A sexta: “viva livre e sem compromisso”. Custa imaginar Thoreau casado e pai de família! Embora tenha manifestado em sua juventude uma paixão por certa jovem, o que demonstra que não estava desprovido de libido, e mesmo os encantos da senhora Emerson poderiam tê-lo perturbado. Thoreau foi um solteiro empedernido. Prefere sua companhia às dos demais, que mantém a distância. E quanto a humanidade, nem falamos. Escreve claramente: “Eu não dobraria correndo a esquina para ver como explode o mundo”.

Walden contém uma utopia política. Essa é, ao menos, minha hipótese. Thoreau ensina a autêntica revolução, a única que vale e que não provoca derramamentos de sangue: a que permite, mudando a si mesmo e convidando o próximo a mudar, mudar a ordem do mundo.

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