Diva Cunha: a viva carne da palavra

Por Márcio de Lima Dantas



A escritora Diva Cunha desponta na cena literária norte-rio-grandense ainda quando professora de literatura portuguesa da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, onde editou sua dissertação de mestrado, uma pesquisa sobre o mito sebastianista na literatura portuguesa, cujo título é Dom Sebastião: a metáfora de uma espera (1979). Publicou os seguintes livros de poesia: Canto de página (1986), A palavra estampada (1993), Coração de lata (1996), Armadilha de vidro (2004) e Dádiva (2017).

Dizer da poesia de Diva é anunciar em voz alta uma dívida para com o feminino, é a palavra nominando um débito para com esse gênero, é o resgate corajoso de uma mulher em plena maturidade cronológica e detentora dos artifícios formais capazes de engendrar um efeito poético no qual estão soldados sensibilidade e reflexão acerca da condição feminina.

Com efeito, na poesia de Diva, o signo poético é habilmente trabalhado para causar o resultado que se pretende, sendo que parece bifurcar-se em duas direções. Por vezes, ao afirmar com ênfase algo que se encontra travado, que foi reprimido, pelo fato de a autora ser mulher, ela escandaliza o signo verbal numa publicização que não mede consequência ou que pouco está preocupada com a opinião alheia. Eis uma mulher afirmando-se, impondo-se, detentora de uma liberdade que poucas conseguiram ter. Não deve nada a ninguém, permite-se transformar em literatura o que está escrito em seu corpo desde muito. Seu projeto escritural parece advir de cicatrizes, de ranhuras, de nódoas impressas em sua pele, em seu semblante, no jeito de caminhar, na fala meiga com que lida com as palavras.

Outrossim, numa segunda dimensão de sua poesia, há como que uma espécie de pudor, manifestado, de um lado, por uma delicadeza no trato das questões ditas femininas. Sutilmente o poema toma forma por meio de metáforas sutis, permitindo entrever uma alma requintada, formatado em poemas curtos e, quase sempre, ao modo do haicai, detentor de apenas uma imagem. Isso mesmo: sua capacidade de dar âmbito a uma metáfora por meio de poucos sintagmas é uma de suas principais virtudes, pois, como é consabido, o simples, o despojado, em arte, é muito difícil de alcançar.

Caudatária do que a poesia escrita por mulheres conseguiu de melhor, ao proclamar o âmbito de um corpo sujeito às intempéries de representações sociais que expressam o jugo do masculino, ou melhor, do macho, com suas ordens advindas de um patriarcalismo que ressuma submissão e aponta a boa via a ser seguida pelas mulheres, Diva assumiu filiar-se a uma linha de continuidade que remonta a Florbela Espanca, depois retomada por Maria Teresa Horta, por volta dos anos 60.

No Brasil, há forte identificação com a poesia extremamente prosaica, muitas vezes ácida, outras vezes risível, beirando a ironia, em relação às concepções do amor ainda vivenciadas por certas mulheres, como registrou Ana Cristina César, formas de amar mais que ultrapassadas, na medida em que o espírito de nossa época proclama maneiras outras de sentir, pensar, amar, sobretudo quando diz respeito aos avanços impetrados no contorno do feminino nas últimas décadas. Há uma outra mulher, há umas tantas mulheres, com uma liberdade de serem senhoras de seus corpos, compreendendo que este não foi feito apenas para procriar, mas para dançar, ir a baladas, encontrar-se com amigas, ataviar-se de acordo com o astral do dia, enfim um corpo para o prazer físico, no qual a mulher está ancha, desinibida, emancipada.

Há também em Diva - quando se atém sobre gestos ou fenômenos do cotidiano, vinculados a um modo mais, digamos, “feminino” de representar a condição externa ou íntima de uma mulher - a constatação de um reverberar da poética de Adélia Prado, no buscar extrair das coisas ordinárias, do prosaico, uma essência que eleve e enalteça o simples, porque detentores de gotas que, no fluir renitente, escorrem para edificar o que chamamos de grande.

Eis uma poesia e uma poética que se afirmam pela boda entre o domínio dos procedimentos poéticos, sobretudo quando do corte preciso do verso para gerar um ritmo; cadência que ressuma uma polida melancolia, tanto quando discorre acerca de um erotismo ostensivamente feminino ou quando se volta sobre a dimensão material ou o próprio código de que fala: o discurso poético. Ambas portadoras de um mesmo significante: a carne viva da palavra.


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