Jardins de Luz, de Amin Maalouf

Por Pedro Belo Clara




O jornalista e escritor libanês, há muito um ilustre residente da eterna cidade da luz, deu ao grande público diversos títulos de maioral interesse, de que As Cruzadas Vistas Pelos Árabes ou O Périplo de Baldassare serão exemplos adequados.

Nesta obra em particular, Maalouf reintroduz no imaginário colectivo uma figura que durante séculos permaneceu praticamente oculta dos anais da história humana. E com a devida razão para tal, mas já lá iremos. Por enquanto, fica a quase sólida certeza do pouco ou mesmo nenhum impacto que a anunciação do nome da misteriosa figura poderá provocar no conhecimento do leitor: Mani, por vezes designado Manes e até Maniqueu. Permaneceu impassível diante da revelação? Não se apoquente. Se este texto cumprir fielmente o seu propósito certas luzes acender-se-ão em si, caro leitor. Pelo menos, disso fazemos as nossas maiores esperanças.

Embora não haja precisão na data, Mani terá nascido em 216 d.C., em pleno Império Sassânida. A história que se lhe conhece chegou até nós através do Vita Mani, um manuscrito que contém a tradução grega do original em aramaico. Conhecendo ou não esse texto, sobrará sempre, assim se crê, a curiosidade em constatar se as duas paralelas, o relato supostamente real e o ficcionado, alcançam nos longes dum qualquer horizonte um determinado ponto em comum. Em todo o caso, terá sido esse o ponto de partida deste romance que, para todos os efeitos, designaremos de “histórico”.

Muito pouco se sabe sobre a infância do malogrado profeta, não obstante os esforços do autor em suprimir, sem exagerada fantasia, tais lacunas. Mas desde terna idade terá desfrutado dum íntimo contacto com a religião dos Homens que, à época, pareciam suster o desejo de nela encontrar um escape às incertezas e aos receios que pairavam sobre uma desolada Mesopotâmia, inundada de conflitos entre Romanos e Partos.

Assim que findou a idade de amamentação, Mani foi levado de casa por seu pai, o mesmo que já antes havia abandonado a mulher grávida com a promessa de que apenas retornaria para consigo levar o filho que viria ao mundo. Cumprido o prometido, regressou ao seio da seita religiosa a que pertencia, os austeros hallé hewarén, expressão aramaica para “fatos brancos”.

Foi neste clima que Mani terá crescido, apartado do mundo que para além das muralhas da sua reclusão subsistia (só aos doze anos de idade soube quem a sua mãe era), rodeado de dogmas e restrições comportamentais, as mesmas que pareciam apelar tão fortemente ao coração do pai. Até ao momento em que atingiu a adolescência e descobriu o seu talento para a pintura, os seus dias não terão conhecido grandes variações ao que antes foi descrito.



Como em qualquer história, para que o novelo narrativo se desenrole a preceito uma qualquer revelação terá invariavelmente de surgir. Então, numa manhã, ao debruçar-se sobre uma superfície aquosa num local da sua predilecção, com a mente sedenta de respostas às questões que o assolavam, obteve Mani aquilo que secretamente esperava. Ali mesmo, naquele reflexo, visionou o rosto da voz que o acompanharia durante o seu percurso futuro, a voz daquele a quem chamou de “gémeo” e “duplo”.

Na verdade, a história presente no manuscrito grego relata a visão dum anjo que confirmou o profeta como o eleito para receber os preceitos duma nova religião, apaziguadora e capaz de por milénios se preservar no coração dos Homens. O autor optou, assim, por uma compreensível variação que em nada desmente o suposto original.

Passando as duas décadas de idade, Mani decide escapulir-se do antro de imposições e enganos em que vivia, iniciando uma longa caminhada que duraria largos anos, levando-o aos extremos do Império Sassânida, desde o rio Tigre ao rio Indo, embora a versão não ficcionada refira ainda visitas à Índia, China e Tibete. Seja como for, apesar duma deficiência inata que o fazia coxear ligeiramente, não se atemorizou pelo incerto. Guiado por uma força de invisível aparência, decerto a fonte da sua íntima certeza, apreendeu as formas do mundo e o conhecimento dos Homens para com eles formar e espalhar a sua mensagem, o que o levou a granjear fiéis e dedicados discípulos.

Na realidade, a fusão das doutrinas de religiões díspares numa só e a oferta duma visão humanista e deveras conciliadora poderiam colocar Mani na galeria dos grandes pensadores da humanidade, místicos e profetas incluídos. Afinal, naquela era, chegou a ser designado de “Buda da Luz”, ele que se intitulava “Apóstolo de Jesus”. Contudo, segundo o autor, ao ter permanecido fiel a si próprio e à verdade que defendia, opondo-se à fúria dum imperador ambicioso e facínora, que por motivos políticos até esteve disposto a abraçar os princípios da nova crença, Mani assistiria à condenação do seu legado, a hoje extinta religião (ou de expressão mínima, quando muito) que dá pelo nome de Maniqueísmo.

Compreende-se que o profeta apenas desejou purificar os ensinamentos de Buda e de Jesus, completando-os com preceitos do hinduísmo e do zoroastrismo, bastante comum naquele tempo, mas a sua “rebeldia” teve um altíssimo custo. Gozou da protecção do rei Sapor I e do sucessor, mas o seguinte, supostamente vendo negado o apoio político que desejaria obter de Mani, então em crescente popularidade, acabaria por permitir a sua perseguição às mãos dos sacerdotes zoroastristas, que o tinham por herege. 

Após o encarceramento de Mani, seguido de tortura e morte, aos cinquenta e oito anos de idade, o corpo foi negado aos discípulos e, quase desde então, a sua obra votada ao esquecimento. Nenhum dos livros que escreveu chegou incólume aos tempos modernos, somente fragmentos, descobertos no século XX, em número altíssimo e em variadas línguas, sobreviveram. O facto só contribui para tão pouco se saber acerca do indivíduo que terá tentado plantar sementes de conciliação e de esperança no duro coração dos Homens, mas esse gérmen haveria de ser carbonizado pelas mesmas chamas que devoraram os seus escritos e, acrescente-se, alguns dos seus devotos.

Este livro dá-nos o sinal: é hora de relembrar Mani pela sua essência e palavra, tão crucial num mundo louco como este ainda o é. Mais do que o elemento “religião”, que historicamente se apresentava gnóstica e de rígidos preceitos, louvando a pureza de carácter e a castidade, destaca-se na fórmula a parcela da “fraternidade”, pelo menos aquela que, pelas linhas do romance histórico, se permite adivinhar.

Após séculos de mentiras e deturpações da sua palavra e imagem, segundo o autor nos conta, pouco mais se poderá afirmar sobre os pormenores da existência material de Mani além daqueles que sob linha segura ao longo destas páginas se revelam. Reaviva-se, porém, e com plena propriedade, uma das mais fortes convicções do profeta esquecido: «Vim do país de Babel para fazer ecoar um grito pelo mundo».

Resta-nos preservá-lo, para que ele não esmoreça de novo.

* Este texto aparece pela primeira vez no extinto site Amanhã ou depois e foi revisado pelo autor para reapresentação aqui.

***

Pedro Belo Clara é colunista do Letras in.verso e re.verso. Por decisão do editor do blog, nos textos aqui publicados preservam-se a grafia original portuguesa. Nascido em Lisboa, Pedro é formado em Gestão Empresarial e pós-graduado em Comunicação de Marketing. Atualmente centrado em sua atividade de formador e de escritor, participou, com seus trabalhos literários, em exposições de pintura e em diversas coletâneas de poesia lusófona, tendo sido igualmente preletor de sessões literárias. Colaborador e membro de portais artísticos, assim como colunista de revistas e blogs literários, tanto portugueses como brasileiros, é autor dos livros A jornada da loucura (2010), Nova era (2011), Palavras de luz (2012), O velho sábio das montanhas (2013), Cristal (2015) e Quando as manhãs eram flor (2016). Outros trabalhos poderão ser igualmente encontrados no blog pessoal do autor – Recortes do Real; Pedro organiza também o Uma luz a Oriente, onde partilha poemas de origem oriental, e The beating of a celtic heart, blog dedicado a traduções de poemas e canções de origem celta.

Comentários

LIGIA disse…
Elucidativo, gratificante em saber a vida desse profeta.
Pedro Belo Clara disse…
Agradeço a visita e o comentário que deixou, Lígia.
Até breve.

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