José Saramago e As intermitências da morte

Por Claudia Rocha



Lidar com a ideia da própria finitude sempre foi profundamente desconcertante para a humanidade. A morte é algo perturbador; muitas vezes nem sequer dela lembramos ou não fazemos questão de lembrar, mas a “esperta parca” (adjetivações utilizadas por Saramago) e a “inimiga enigmática” (adjetivações utilizadas por mim) nos ativa a memória e, de vez em quando, bate à nossa porta.

Estamos quietinhos no nosso refúgio palaciano, com nossas insignificantes preocupações e, de repente, alguém de quem gostamos muito “falece”, “descansa”, entre outros eufemismos usados por nós para minimizarmos a própria dor. 

Várias suposições são feitas para desvendar o enigma do fim. O fato é: “ninguém volta para contar o que viu do outro lado”. A morte seria então o outro lado da moeda, que nunca queremos tirar na sorte, embora saibamos que um dia virá. As instituições religiosas, em sua maioria, pregam a necessidade da morte para alcançarmos a vida eterna. Os mais céticos acreditam que tudo acaba, e ponto final.

No livro As intermitências da morte, José Saramago ratifica seu estilo crítico, irônico, questionador, suas inovações linguísticas, insere elementos fantásticos e cria relações interessantíssimas entre o mundo real e o imaginário. Vale-se de uma temática universal para instigar o lado curioso e crítico do leitor, estabelecendo diálogos e utilizando afirmativas cômicas. Afinal, no exercício de sua soberania sobre os homens, “a morte é a morte, não uma escrituraria qualquer”. (p.158).

No livro, há intertextualidades recorrentes, mas aqui me permito citar elementos comuns presente na narração do romance de Saramago e no poema de Manuel Bandeira, “O homem e a morte”. Esse poema em muito nos remete a segunda parte do livro, que perde um pouco do seu lado crítico e caminha para um lado mais sentimental: aquele esqueleto armado com uma foice, representação iconográfica da morte, poderia se transformar em uma mulher? Esqueleto armado de foice/ Uma mulher ou anjo/ Figura toda banhada/ De suave luz interior (partes retiradas do poema de Manuel Bandeira, in: Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: José Olympio Editora,1987).

A “inimiga enigmática” se revela amiga, amante ou algo semelhante? Será que ao ler o livro, o leitor sentiria pena da Morte? A morte personificada levanta várias questões da alma humana. Poderia a morte viver? O livro, em sua perspectiva fantástica e paradoxal, talvez nos responda várias dessas questões.

Comentarei agora sobre a primeira parte do livro:

“No dia seguinte ninguém morreu” assim começa e se encerra o livro de Saramago. Cabe ao leitor desvendar o mistério dessa história feita de passagens verossímeis e inverossímeis, cabe também a ele tentar esclarecer por que o livro começa e termina com a mesma frase. Aqui vão mais algumas questões a serem levantadas: Fecharia o ciclo da vida e da morte? Começaria a história pelo fim? Tudo aquilo narrado durante o livro teria acontecido antes dessa afirmativa?

“Seria tão bom se ninguém morresse.” Tal frase já foi pronunciada e ouvida diversas vezes, contudo, em uma trama que foge da trivialidade, Saramago consegue desconstruir em parte a afirmativa. O mundo sofreria com o caos criado pela ausência da morte. Saber que iremos morrer já nos angustia, imaginem viver para sempre nesse mundo cheio de acontecimentos que não nos agradam. O homem é um ser paradoxal: sabe que morrerá, mas quer viver e, vivendo, quer morrer.



O autor, no decorrer da obra, traça um painel das consequências de não haver mais morte.  Devemos ficar atentos, pois nada é colocado na obra de Saramago sem uma segunda intenção. Como grande autor crítico, não poderiam faltar referências às grandes instituições de poder da sociedade, “o de duros conquistadores e implacáveis imperialistas.” (de As intermitências da morte. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p.63), além de questões existenciais e de outra ordem, porque viver em um lugar onde ninguém morre traz efeitos ruins; a população cresce absurdamente, os hospitais ficam cheios de moribundos, a igreja perde fiéis, as seguradoras, os asilos, os governos entram em colapso. A igreja é o alvo preferido da ironia e da crítica de Saramago, como já se fez recorrente em outros livros de sua autoria.

Arriscaria dizer que, na visão do autor, os homens seriam marionetes nas mãos da igreja católica, embora use a expressão: “as religiões, todas elas” (p.36), o alvo preferido é, sem dúvidas, a igreja católica. Já é de nosso conhecimento que esta é a instituição religiosa que percorre toda a história, não só de Portugal, mas de toda Europa: “Por nossa parte, igreja católica, apostólica e romana organizaremos uma campanha nacional de orações para rogar a Deus que providencie o regresso da morte o mais rapidamente possível...” (p.37).

O autor nos mostra como o homem é um ser mirabolante, pode sair de qualquer situação adversa e tirar proveito disso. No decorrer da narrativa, foi necessário adaptar-se à nova condição, já que a morte entrou em greve e estava aborrecida com os moradores daquela cidade. Para descobrir as estratégias mirabolantes, o leitor deverá caminhar por entre as páginas do livro e descobrir, por si mesmo, como Saramago conseguiu revelar as mais diversas façanhas dos personagens, entre elas as da personagem principal: a morte.

Outro ponto de extrema relevância é: os personagens são nomeados por seus títulos de nobreza ou por cargos que desempenham em alguma instituição, seja ela, governamental, religiosa ou de outrem. São personagens sem nomes próprios e também vivem em um País sem nome, embora pelos títulos a eles relacionados, o leitor indiretamente já pode inferir qual o País e sua forma de governo. O único personagem nomeado é a Morte. Os seres humanos considerados de linhagem inferior pelos detentores do poder também não recebiam nomes.

Houve a greve da ilustríssima personagem e, até que terminasse, seria estabelecido outro caos, os homens novamente teriam de criar condições para voltarem ao estágio de seres mortais. Posso adiantar que a greve acabou e novo rebuliço se deu no País sem nome. Só que a Morte resolveu avisar, por meio totalmente inusitado, o fim da greve e o seu novo “modus operandi”. É a partir desse ponto da narração que a morte é personificada e passa a agir como um ser humano, inclusive, em alguns momentos, cada vez mais frequentes, ela já nos é apresentada como um ser frágil: “Tu, que te havias habituado a poder o que ninguém mais pode, vias-te ali impotente, de mãos e pés atados...” (p.156). Qual foi a forma de aviso que a morte usou?  Por que ela se apresentava tão fragilizada nesse ponto da narração? Aconteceu algo também inusitado?

Caro leitor, apenas posso dizer que isso são coisas de José Saramago e não cabe a mim revelá-las, tarefa agora atribuída a vocês. Confesso que fiquei um pouco entusiasmada com o estilo do autor, tanto que me atrevi a chamar a morte de “inimiga enigmática” e “ilustríssima”. Usei ainda a expressão: “no exercício de sua soberania” . Finalmente, espero ter despertado em vocês a vontade de conhecer não só o livro, mas também outras obras do autor português aclamado pela crítica como um dos maiores, senão o maior escritor lusitano da literatura contemporânea.

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Comentários

Unknown disse…
É um deleite ler José Saramago, que nos presenteou com obras belíssimas (embora use o plural para qualificar suas obras, li apenas O HOMEM DUPLICADO e estou em fase de deslumbramento e diversão com a leitura de AS INTERMITÊNCIAS DA MORTE), da literatura portuguesa.

Estou adorando perceber as ironias, a sática e a crítica sobre uma sociedade que se permite tirar proveito de uma situação tão trágica. Como ele mesmo diz em algum momento: é sórdido!
A sua maneira de escrever me encanta, e certamente foi ler muitos outras obras de sua autoria, pois é o tempo mais bem gasto que alguém que gosta de ler pode ter. Um verdadeiro deleite!!

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