The Post, de Steven Spielberg


Por Pedro Fernandes



Há diretores tão populares, sobretudo porque construíram obras de grande significação para o cinema que não só dispensam apresentação como se tornam uma marca capaz de influenciar a decisão do espectador em escolher ver um filme mesmo às cegas. Esquecemos sempre que todo projeto criativo independe da genialidade do seu autor, logo, não podemos cobrar a eterna condição de perfeição que algum momento terá se revelado com todo fulgor. Um desses diretores é Steven Spielberg e uma de suas obras questionáveis é The Post.

Voltamos à ideia-falsa da história estadunidense como protagonista sobre qualquer nação. A revelação pela imprensa da farsa criada pelo governo para manter a Guerra no Vietnã é elevada aqui à condição pedagógica de que uma imprensa livre é mesmo a parte fundamental de um sistema democrático ou ainda que a liberdade de expressão é o mais caro dos bens. Não há nada de errado nessa constatação, entretanto, é preciso esclarecer que não foram os estadunidenses, sempre autodesignados como os verdadeiros possuidores da liberdade democrática, que descobriam a roda. Em qualquer parte do mundo, sua imprensa já terá feito da liberdade de expressão seu dogma; assim como também não é novidade que em todo lugar o controle da informação sempre pertenceu a uma parte que estabelece algum pacto com os poderes dominantes quando não ela própria o poder dominante.

Isto é, The Post tem um valor altíssimo para a história dos Estados Unidos, ainda mais pela conjuntura que atravessa este país, em que um presidente escolhe que a sua verdade é a soberana e a dos jornais sempre questionáveis. Também é uma narrativa-exemplo para qualquer outro país, sobretudo o Brasil que mergulhou na paranoia do fake news e onde as relações entre mídia e poder estiveram sempre questionáveis porque dança sempre no ritmo que convém ao poder principal – sobretudo o do capital especulativo e o dos grupos de uma elite que sequer pensa em estabelecer quaisquer relações de compreensão sobre o poder com os setores historicamente massacrados. Aqui, mais grave ainda, porque reveste suas posições na falsa embalagem da imparcialidade. Mas, cada caso é um caso e os da América do Norte não são melhores nem piores que os da América do Sul.

Tão pior quanto estar à serviço dos governos – que no Brasil são quem, vergonhosamente, detém o poder da concessão – é estar à serviço das grandes corporações financeiras. E a situação se agrava mais ainda quando estas três corporações aparecem envolvidas numa trama complexa de favores, de troca-troca de condições na calada da noite. É isto que o filme de Spielberg denuncia: o que poderíamos designar como os bastidores do quarto poder. The post, mais que qualquer especulação, porque, mesmo tendo um propósito muito claro de favorecer aos do seu país a questionar um governo que deslegitima o valor da imprensa, se constrói de uma verdade documental, esclarece que o imparcial é um falso brilhante. Tudo é filtrado por um ponto de vista e não há ponto de vista aideológico porque nada se passa fora da ideologia. E ainda mais quando se tem um estreitamento entre governo e mídia.

Bom, e num cenário como o que agora atravessamos, em muito parecido com o cenário histórico do filme, o que nos resta? Embora a narrativa de The post só tenha mostrado muito espaçadamente, porque se concentra nos bastidores de uma decisão – a publicação ou não de uma enorme quantidade de documentos do governo que expunham as manobras para justificar o injustificável – a responsabilidade volta a recair sobre o povo. O quarto poder não se sustenta se seu trabalho não passar por uma contínua vigilância dos que lhe leem. É muito provável que, seu domínio se mantenha enquanto o poder for administrado por quem o sustém – e por sobre o que aqui se escreve vem as situações diversas em que governos assinam e compram toneladas de revistas para distribuir em repartições públicas diversas – mas, será do povo, sempre, a última palavra; ele foi a parte que ainda não descobriu tal valor.

Enquanto todo o drama se desenvolve no interior para uma decisão que afetaria diretamente as já frágeis relações entre governo e imprensa não podemos escusar a participação das diferentes frentes de protestos que se formavam nos Estados Unidos então. De maneira que, o poder decisório do jornal The Washington Post, protagonista do filme, frente as imposições do governo Nixon, estaria mais claro se lhe passasse, antes de tudo, esta compreensão aparentemente simples mas sempre subestimada porque o valor do capital é o que se impõe sobre o valor da credibilidade. Para um exemplo melhor não é preciso recorrer ao contexto e ao filme – as práticas estão em toda parte.

Por estas e outras reflexões que The Post suscita nos espectadores este é um filme indispensável. Isto é, do ponto de vista temático eis uma produção a altura de uma boa realização. O que joga este trabalho na lista das piores produções de Spielberg, além do elevado tom patriótico que não tem mais vazão na atual conjuntura, é a hiperinflação dos clichês: a transformação das personagens que são propositalmente modeladas para garantir certo caráter heroico (sempre esperado do diretor), delas e sobre elas não restam quaisquer dúvidas sobre sua integridade e moralidade; na mesma linha de raciocínio, muitos episódios da narrativa soam ingênuos e tolos, como a roubo dos papéis do Pentágono ou a divulgação da decisão da Suprema Corte no julgamento sobre a atitude do jornal. Há outros detalhes técnicos que não faz sentido pontuar um a um aqui, mas para que o leitor possa ter uma ideia, lidam com um certo bruxuleamento do tratamento da verossimilhança narrativa. 

Ou seja, do ponto de vista temático, a importância do filme está justificada e tem sua relevância; do ponto de vista estrutural é só mais uma produção que lida com os bastidores de jornal e padece, portanto, das mesmas investidas das outras de sua espécie – o que não é nenhum pouco coerente com o currículo de quem produziu pelo menos uma dezena de narrativas fílmicas de grande relevância. Mais claro: do gênero, há bem piores, há bem piores.

Comentários

LIGIA disse…
Gostei do artigo. Então, o que tem, uns melhores que os outros!! Temos convicção que o certo, é o certo, e que o errado é o errado. Esta gente puxa o abismo para si. "O abismo puxa o abismo"...

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