Libelo contra o maniqueísmo


Por Rafael Kafka


Em O dragão da maldade contra o santo guerreiro, certamente localizado no panteão de obras maiores do diretor baiano Glauber Rocha, temos uma narrativa cujo foco são os temas da conversão e do engajamento. Não há espaço no enredo dessa obra para visões categoriais fechadas em um maniqueísmo que insiste em ver a humanidade como dois polos afastados um do outro sem ponto de contato. Na obra de Glauber, não há o modo de ser estanque, em-si, típico do cinema imperialista que insiste em separar mocinhos e vilões como personagens tipo que representam plenamente a condição humana. Em ensaios e entrevistas como os localizados em Revolução do Cinema Novo, temos a preocupação de uma poética política que visa ao cinema de autor como forma de representar o ser em todas as suas dimensões. Ao fazer isso, o cinema se torna uma arte extremamente pedagógica, pois fere os princípios de percepção estanques do cinema comercial, em especial o mais tradicional, de narrativas mais simples que recaem no maniqueísmo como recurso de economia de esforço.

O dragão... busca romper essas fronteiras cognitivas e narrativas por meio de uma velha obsessão de Rocha: a representação fidedigna do ser humano brasileiro em todo o seu esplendor de violência e miscigenação. As tomadas de câmera focando a paisagem de cidade pequena típica do nordeste, com seu ar isolado, idílico e agreste mesclado aos elementos tecnológicos que indicam uma certa invasão do urbano são apenas um dos elementos usados por Glauber nessa espécie de ontologia do ser nascido no Brasil. O uso de atores que representam perfeitamente os traços de nosso povo e as cenas documentais flagrantes de festas religiosas, bem como a presença da poesia de cordel, são outros aspectos importantes para entendermos a arte provocativa feita por Glauber em seu filme.

Tudo isso se mescla a uma narrativa que coloca em pólos inicialmente opostos o cangaço e os matadores de aluguel a serviço do coronelismo e do latifúndio. A narrativa plenamente existencial de Rocha evidencia as contradições sociais de nosso ambiente evidenciando as diversas contradições sociais existentes em nós como seres humanos. A sua denúncia contra o cinema imperialista acaba se tornando também uma denúncia contra a propaganda dos governos que criminalizam de forma excessiva a pobreza, em especial a que se revoltou na forma dos cangaceiros. Glauber busca desconstruir a figura maléfica do soldado do cangaço ao passo que busca criar pontos de paralelo entre as ações de Antônio das Mortes e o cangaceiro o qual deve ser morto por ele.

No Dragão... temos a transmutação para o cinema do que é a indefinição de ser característica maior da condição humana. O professor do começo da história, o qual ensina as crianças usando métodos decorativos altamente tradicionais, ao final do longa se engaja contra as forças do coronel que buscam matar Antônio das Mortes que após servir ao antigo senhor, matando o cangaceiro, sente-se tocado pela causa da justiça social e passa a ser inimigo do cego senhor das terras que é traído sob seu próprio nariz pela esposa e o fiel escudeiro. Curiosamente, Antônio ainda tenta apelar para a bondade do senhor pedindo ajuda aos mais pobres, mas acaba tendo o pedido negado, situação limite a qual o leva ao caminho da revolta e do engajamento.

Ainda no começo da trama, Antônio fala em tom mesclada de alegria e comoção do seu encontro com Lampião, outra de suas caçadas. Em seu relato, sabemos que quando teve a chance de mata-lo, Lampião o poupou considerá-lo alguém de sua extirpe guerreira. Nesse monólogo, já temos uma clara noção de que o maniqueísmo não terá espaço na história, que as barreiras entre bem e mal serão derrubadas a cada momento, mostrando o universo do sertão como microcosmo a refletir os conflitos sociais e dramas existenciais de seres que não conseguem se definir plenamente a partir das categorias polarizantes. Uma fala similar será emitida pelo coronel quando se diz bandido nobre como Lampião. A diferença ainda tenta dar as caras em seu discurso, mas sem sucesso, porque aqui a diferença é mero discurso a reafirmar as velhas distinções entre este e aquele lado da paleta de cores simplista do velho discurso moralista. Lampião e o coronel são diferentes por serem seres humanos e a maldade e a bondade surgem somente em suas manifestações de ser como juízos de valor enunciados pelo outro.

A conversão entre bem e mal se dá na angústia da liberdade, como bem assinalada por Sartre em seu imenso ensaio O ser e o nada: o que somos é definido por nosso projeto de ser no mundo. Todavia esse projeto pode ser mudado a qualquer momento. Nossa liberdade traz o peso das consequências de nossas ações e o peso de não termos a prova de que ela seguirá firme em seu projeto no futuro próximo. Podemos ser outros a cada segundo ou podemos querer ser outros a cada segundo e a angústia pode gerar condutas inautênticas.

No caso de Antônio das Mortes, a conversão gera também engajamento. Consigo e com o outro. Das Mortes era pura mercadoria, um ser vendendo sua capacidade de matar e pensar para sobreviver. Por baixo do ar sereno e frio, há o vazio de quem não é dono de si mesmo. O contato com a morte do outro, com sua dor, e com a pobreza circundante gera em si a mudança de rumos que marcará o desenrolar do filme. Das Mortes assume-se como parte de um projeto social, mesmo que de forma breve, como uma forma de salvação pessoal, como forma de integrar-se a si mesmo e ao ambiente social no qual reside.

O engajamento, portando, mostra-se profundamente ligado ao olhar, algo focado em outra obra de Sartre, O que é a literatura?. Das Mortes tem no olhar o fator libertador para si para participar da luta pela liberdade dos mais pobres do coronel e de sua claque. Ao mesmo tempo, a obra de Glauber é engajada sem ser panfletária refletindo a profunda dimensão existencial do ser humano a qual se coloca além de qualquer definição entre bem e mal. O cangaceiro não é um ser maléfico nascido das profundezas do inferno: ele é produto da dinâmica da luta de classes ocorrida em dado contexto geográfico e social. O cangaceiro é um reflexo do espelho que nós, confortados em nossa visão maniqueísta, não queremos enxergar. Demonizamos para nos manter protegidos, isolamos para sentirmos a paz de sermos seres bondosos, positivos, belos. A proteção assim se dá no sentido de exigir um Estado que proteja os cidadãos de bem por meio do poder policial e pela crença de que nós temos ao menos a consciência tranquila por não estarmos do mesmo lado que a imundície vista por nós no ser do outro.

Glauber ao contar a história do santo guerreiro contra o dragão da maldade mostra os dois ao mesmo tempo em guerra e em um abraço acalorado e fraterno. Por isso mesmo, a sua obra se torna uma poética política universal e sempre atual para entendermos o poder do cinema e da arte em geral em resgatar o que é o ser humano em todo o seu esplendor.


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