Revolução invertebrada

Por Carlos Pardo

A Abbas / Magnum Photos. V. S. Naipaul em Grenada, 1983. 

A morte de V. S. Naipaul (1932-2018) reaviva uma polêmica que acompanha o escritor desde quando recebeu o Prêmio Nobel de Literatura, em 2001: o velho clichê de se os gênios são boas ou más pessoas. E se “quanto mais sutil e intensa se fazia sua prosa, maior era a impudência de seus comentários em público”, como escreve seu biógrafo Patrick French, de Naipaul chegavam a expor como contradições ideológicas ambíguos segredos de alcova. Também lhe chamaram de racista, preconceituoso e “lacaio depreciável do imperialismo”; opiniões gravadas inclusive nos obituários. Muitos dos exemplos contrários estão em O escritor e o mundo [tradução livre], contundente compilação de crônicas de viagens datadas entre 1962 e 1992. Lidas hoje, alguém pode recordar o desejo de Schiller: não dês ao teu tempo o que te pede, mas o que necessita.

Nascido numa família indiana emigrada na ilha de Trinidad, escritor em língua inglesa, Naipaul define suas intenções: “Viajo para descobrir outros estados de espírito. E se para esta aventura vou a lugares onde as pessoas levam uma vida de restrições, é porque minha curiosidade ainda obedece, em parte, ao ditado de minhas origens coloniais de Trinidad”*. E se um marco são os processos de descolonização do século XX (na Índia, África e América), estas crônicas alcançam uma contundência universal e têm como protagonistas, como em sua obra de ficção, a dor e o desemparo. Ninguém escreveu como Naipaul sobre a desigualdade, os fingimentos identitários, o extermínio dos povos e o apelo aos mitos sentimentais. E tampouco é casual que o escritor cite em duas crônicas Espanha invertebrada para desmascara estas “revoluções invertebradas”, pois seu método compartilha a ambição da “razão histórica” de Ortega.

Naipaul começa a escrever suas crônicas durante uma crise criativa depois de concluir o romance Uma casa para o Sr. Biswas (1961). Duas obrigações literárias levam o escritor a retornar ao Caribe e seu primeiro contato com a Índia; ali experimentará a falácia de seu próprio substrato cultural. A Índia é miséria e mais miséria; o Caribe, reivindicações importadas, alheias à realidade multirracial da região. 

Assim, frente ao desapiedado e humorístico (e empático) Biswas, surge um Naipaul mais severo que, ao apropriar-se dos rincões que carecem de literatura de primeira qualidade, deve construir-se uma exigente moral da escrita, um hibridismo de formas herdadas para as que já não serve ao romance convencional. À sua vista, esta pertence a “sociedades fechadas”, como a Inglaterra do século XIX; não, portanto, à aberta e falsificada experiência colonial. Por isso, não estranha que estes artigos, originalmente publicados em “revistas de esquerda”, como The New York Review of Books, tenha influenciado de uma maneira tão decisiva na renovação da literatura pós-colonial, sem que possa dizer que seu rastro tenha desaparecido.

 Mas também é fácil de ler O escritor e o mundo como um laboratório de seus próprios romances, cada vez mais complexos em sua concepção, embora despojados em sua prosa. Aqui está a origem das obras-primas como Num estado livre (1971) e Uma curva no rio (1978); assim com a indagação autobiográfica das obras da maturidade O enigma da chegada (1987) e Um caminho no mundo (1994). Além disso, as crônicas têm identidade própria pelo estilo amaneirado, a objetividade e o pessimismo.

A leitura de O escritor e mundo é profundamente experimental. E às vezes necessitamos tomar ar (e acompanhar a leitura com os menos amargados Momentos literários – 2012 – guiado pelo próprio Naipaul, que combinou ambos os registros em suas primeiras compilações).

Destacam-se as crônicas mais extensas. Por exemplo, “O quartel superlotado”, de 1972, dedicado à estagnação da ilha Mauricio com o acolhedor retrato de uma prostituta de origem indiana. Ou “Michel versus os assassinatos do Poder Negro”, escrito entre 1973 e 1975, importante estudo da falsificação literária das revoluções, gênese de seu romance Guerrilheiros (1975). Ou “Os crocodilos de Yamusukro”, crônica de um processo “exitoso” de descolonização na Costa do Marfim, quando se interroga a partir de seu lugar de escritor. Ou o polêmico “Argentina e o fantasma de Eva Perón”, escrito entre 1972 e 1991, com sua severa leitura “colonial” da obra de Borges e de uma sociedade “criada na fase mais gananciosa e decadente do imperialismo”.

Este será o ponto mais vulnerável da equidistância de Naipaul. A repressão, por autoritária que seja, se mostra como uma consequência da imperícia das revoluções. Naipaul carrega nas tintas sobre o erro estratégico da utopia: “Quando o jargão acaba competindo com o jargão, a gente não tem causas. Só inimigos”. Para o escritor, as mentiras mais daninhas são as que alguém conta sobre si mesmo.

“Nossa civilização universal”, uma conferência de 1992 que fecha o volume, arrisca a propor um sistema positivo: a defesa de um “centro” que dê atenção “ao resto do mundo e a todas as correntes de pensamento deste mundo”. Já nem o Ocidente colonial nem o niilismo pós-moderno, mas o fruto modificador de uma cultura híbrida que não renegue o sentido moral, do intelecto e das formas culturais que expressam a individualidade (as artes). Um mundo impuro em que a dor não seja um mal menor.

* Os excertos de V. S. Naipaul são traduções a partir da apresentada na versão do texto – em espanhol. Este texto, aliás, é a tradução de “Revolución invertebrada” publicado inicialmente no jornal El País.

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