“Babbitt”, uma taxonomia do homem médio contemporâneo


Por Rafael Kafka



Muitos veem no capitalismo o caminho para a liberdade política em seu maior sentido possível. O consumo seria para tais pessoas a prova viva de que mesmo um pobre trabalhador dentro da sociedade regida pelo lucro tem mais liberdade de ação do que o sujeito que vive em uma sociedade sem classes. O poder econômico gerado pelos estudos e pelo esforço pessoal dentro do trabalho ampliaria essa liberdade, a qual seria garantida e estabelecida pela unidade central da família.

Babbitt, de Sinclair Lewis, é formidável em expressar os mitos por trás dessa crença no sistema capitalista e em seus códigos morais de um modo ao mesmo tempo sutil e profundo. Não há neste romance um primor narrativo e estético que o coloque ao lado de grandes obras do pensamento literário universal marcadas pelo atrevimento e pelo experimentalismo. Do ponto de vista formal, Babbitt é uma obra simples, com começo, meio e fim bem delimitados e com um clímax bem marcado. Talvez o maior atrevimento estilístico de Sinclair Lewis aqui sejam dois, os quais conferem a obra seu aspecto de sutileza profunda, e que passam despercebidos a um leitor mais focado no que um texto tem de evidente e clichê.

O primeiro é o hiper-realismo. A cena inicial do romance é com Babbitt, o corretor de seguros e de imóveis que protagoniza a obra, em sua banheira, com ar claramente frustrado diante de um novo dia de trabalho. Logo de cara, sentimos o personagem incomodado, angustiado com sua realidade, mas tais sentimentos são contidos e sufocados pelos discursos que refletem profundamente uma ideologia do otimismo, a qual é muito similar à dos livros de auto ajuda que pululam nossas prateleiras de livros. Lewis usa um narrador onisciente que descreve fatos cotidianos e banais com riqueza de detalhes e concisão as quais em tese geram uma antítese insustentável, mas no romance em questão se mostram muito harmoniosas.

O segundo elemento de atrevimento é o clímax anticlímax. O mesmo ocorre quando Babbitt pensa em romper os laços de sua existência pequeno burguesa vividos até então. Lidando com a situação de uma doença de Myra, sua esposa, que o leva a pensar seriamente na morte desta, o protagonista decide abrir mão de ideais políticos que começara a abraçar, como uma aproximação com o liberalismo – o que no contexto do livro é quase como se declarar socialista – e se reaproxima de seus pares de classe social.

Babbitt acaba se revelando uma espécie de taxonomia do homem médio americano.  Não obstante, é perfeito para entender como muitos seres em nosso mundo contemporâneo ainda são capazes de conciliar pensamentos conservadores com discursos arrojados de liberdade econômica. Nesse sentido, há interessantes elementos de polifonia no romance que mostram as contradições internas de Babbitt em momentos os mais variados possíveis, em um nível macro e micro da ontologia deste ser.

Há um momento que ele decide parar de fumar charutos e cria uma série de métodos para fugir do vício. Sinclair Lewis explica de forma detalhada as estratégias de George para tanto, para logo na linha seguinte mostrar o homem fumando regalado com sua decisão de parar de fumar ou completamente esquecido da mudança de vida auto proposta. Há outro momento, bem típico de nossa sociedade ocidental livre, em que o corretor afirma todo seu amor pela honestidade para nas páginas seguintes utilizar de fraude para obter vantagens em dado negócio imobiliário.

A existência de Babbitt, é nesse sentido, um constante desnível. Normal, em se tratando de seres humanos. O problema é que ele vive isso em má-fé, buscando limitar a liberdade tão alardeada em discursos prontos, baseados em um otimismo conservador empreendedor e em valores pegos de interpretações da bíblia. Babbitt não assume seus projetos a si mesmo e sua consciência parece não criar uma união estável de seu ser. Por trás da narrativa bem delineada de Lewis há um sujeito fragmentado, mas sem consciência de sua fragmentação, preso aos ideais de sua classe para ter alguma paz.

Se há o conceito de romance de formação, para falarmos do sujeito que aos poucos se enquadra em um mundo adulto rodeado pelo aparato simbólico burguês, temos diante de nós aqui um tipo de romance que poderíamos chamar de romance de deformação, se os leitores me permitem o trocadilho. A frustração do protagonista no começo da história é algo cotidianamente sentido e disfarçado com os discursos prontos mencionados acima. Todavia, no decorrer do livro, começamos a ver o desejo de ruptura com tal realidade, revelando-se tal frustração como algo mais existencial e as férias representando um desejo de mudança profundo, por mais que não seja tão claro. Tal desejo se manifesta na viagem com o amigo Paul, que a princípio seria com a companhia das respectivas esposas, mas termina com os dois homens criando uma manobra para ficarem alguns dias sozinhos.

Paul, por sinal, será na história um ponto de ruptura violento, pois além de cometer adultério, fere a esposa com um tiro, representando toda a revolta com um ciclo de tédio que o rodeava. O seu sumiço da história neste momento revela uma atitude estoica a qual parece dizer muito de como a prisão de concreto não o incomodava tanto quanto a prisão matrimonial na qual viveu por tantos. Babbitt também vive essa prisão e há um capítulo que serve como verdadeira genealogia de muitos amores felizes de nosso cotidiano. Descobrimos que o personagem central do romance queria trabalhar a área do direito e era apaixonado por outra mulher, mas buscando curar a frustração de perder seu grande amor para um grande amigo, resolve se consolar na amizade com Myra, a qual descamba facilmente para o sentimento de desejo. Numa sociedade respeitável como a de Zenith, o desejo só pode ser concretizado em leito de núpcias e assim começa a união da qual George foge todo dia em devaneios com sua fada.

Babbitt também busca a fuga quando entra em contato com uma cliente que leva a conhecer uma turma cujos maiores passatempos são bebidas em tempos de proibição – proibição essa que gera outro interessante nível discursivo dentro da obra, já que o ciclo íntimo do protagonista defende a proposta, mas apenas no tocante aos trabalhadores das camadas mais baixas. Com esta moça, George chega a ter um doce começo de romance, o qual ele tenta em alguns momentos romper em suas tentativas de auto convencimento já exemplificadas com o desejo de se libertar do vício de fumar, mas é somente a doença de Myra que o leva a voltar para seu ninho de amor e estabilidade.

Babbitt é genial em sua abordagem de uma consciência sufocada por valores e morais que mais do que dizer como devemos proceder em respeito a nós e ao próximo nos diz como andar pelo mundo. A narrativa seca, com um narrador quase ausente, com fatos praticamente falando por si próprios, explicita bem a fragmentação do homem médio americano que vê em seu farisaísmo empreendedor uma forma de andar por este mundo sem enlouquecer. Assim sendo, há uma quase fuga presente neste belo livro que me remeteu a outro interessante livro lido por mim neste ano: Servidão Humana, de Somerset Maughan.

Babbitt e Phillip se encontram em uma intercessão em seus caminhos. A diferença é que o primeiro já estável em sua vida adulta de agente de seguros, enquanto o segundo é um garoto de formação religiosa e burguesa que descobre na leitura e na arte uma forma de ruptura com sua realidade, tendo de abandonar esse caminho diante da pobreza material. O final do romance de Maughan mostra seu herói se perdendo na multidão de mais um dia que vai seguir sem nada de especial ocorrendo, com ele cedendo ao ideal do amor burguês numa tentativa de fugir da angústia de ser. O final escolhido por Sinclar Lewis também remete à ideia de ciclo, com George convencendo o filho Ted a encarar a ameaça das mulheres da família mostrando quem manda com a sua virilidade. Temos diante de nós dois romances claros desse conceito de deformação, com sujeitos desestabilizados em seus projetos de vida e que acabam não conseguindo romper plenamente com dadas barreiras sociais. A diferença, reitero, é George já estar afundado nessa vida artificial, enquanto Phillip por ela vai sendo devorado até se perder no belo dia acima descrito.

Babbitt é uma bela crítica de valores na forma de romance hiper-realista, com alguns elementos de polifonia. Vale a pena ser lido, pois revela muito do pensamento liberal conservador, oximoro que virou moda nos últimos tempos, exemplar bastante presente em nossas ruas e demais espaços culturais. Tal romance mostra o poder que a literatura tem de se apropriar de um determinado discurso e, reproduzindo-o, mostrar seus desvios, recuos e falhas que revelam a crueza da existência humana desamparada. Mesmo com ar de simplicidade e pouco arrojo, o romance mais famoso de Sinclair Lewis facilmente se encaixa no rol de obras literárias cuja crítica social é atual e merece ser lido por todo aquele que quer discutir a sério os rumos de uma sociedade que foca seu discurso dominante na frágil conduta individual tornada em puritanismo hipócrita e vazio ao invés de garantir medidas de proteção à liberdade individual em todos os sentidos ontológicos possíveis.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Seis poemas-canções de Zeca Afonso

Boletim Letras 360º #580

Boletim Letras 360º #574

Palmeiras selvagens, de William Faulkner

Boletim Letras 360º #579

A bíblia, Péter Nádas