“Tête-à-Tête”: amor livre, jogos de espelho e posse


Por Rafael Kafka



Posso dizer que 2018 foi um ano de redescoberta dentro do campo literário para mim. No começo do ano, finalizei um reencontro com a obra de Jack Kerouac em um trabalho de conclusão de curso no qual eu discutia elementos de liminaridade e ambiguidade em seu romance maior, On the Road. Quando li esse livro pela primeira vez, há uns dez anos, eu senti um imenso encanto lírico com suas linhas e toda a liberdade existente nele.

Na releitura feita para escrever sobre um texto que foi tão importante para minha afirmação enquanto leitor, eu me deparei, com a ajuda de textos críticos, com uma série de elementos que foram ignorados por minha primeira leitura. Eu já não via tão somente uma liberdade plena feita de atos anarquistas baseados em jazz e escrita intensos e frenéticos; eu via um sujeito vivendo entre o desejo de liberdade e o desejo de conservação, o desejo de estar aqui e estar ali ao mesmo tempo, além de um amor latente anulado por convenções viris que permeavam mesmo o ambiente mais libertário da literatura beat.

Mais do que me fazer desgostar da obra de Kerouac, tal releitura me fez amá-la mais ainda pela sua dimensão ontológica e lírica, pela sua capacidade de demonstrar o ser humano com todas as suas dimensões de ser e de sentir. On the Road segue um libelo pela liberdade, mas marcado pelo desejo de ruptura contra uma situação composta de diversos fatores ontológicos e morais que se chocam a todo instante. A angústia de Sal Paradise é extremamente humana, pois queremos ser os pioneiros da liberdade, mas tememos o fracasso e a solidão. Nesse sentido, tal pesquisa acadêmica me fez entender como nós nos escrevemos de um jeito o qual tenta a todo instante nos captar em nossos melhores ângulos, mas estamos sempre aquém e além de qualquer escrita.

Somos muito mais do que queremos perceber. Por isso, com base em leitura de Antonio Candido, defendo a tese de que mesmo quando falamos de nós somos personagens criados por nossa imaginação literária, a qual nos recorta em algo mais representável. Há em Notas do Subsolo, de Dostoiévski, algo sobre isso. Alguns diários, como o de Sartre, são flagrantes nessa intenção de captar uma escrita que pegue um retrato nosso que assume cores hiperrealistas, mas em realidade é apenas um outro que desejamos ser captados pelos seres que nos rodeiam.

Sartre por sinal está no bojo da leitura a qual me inspira esse texto, afinal Tête-à-Tête, de Hazel Dowley, é uma biografia em forma de romance que foca justamente na longeva relação mantida pelo filósofo com a também pensadora existencialista Simone de Beauvoir. Dowley escreve sua biografia em ritmo de romance, algo que merece um texto à parte meu alguma hora dessas, pois, assim como Kerouac e outros mostram, parece haver uma maior ruptura entre os gêneros textuais a cada dia que passa. Exemplo de livro com ritmo de romance de ação, mas com intenção histórica muito bem conseguida, é o de Mário Magalhães sobre Marighella, o qual me ajudou demais a entender os conflitos políticos que assolam o país há várias décadas. Mesmo com um elemento mais estético em sua feitura, o texto de Magalhães dá uma dimensão imensa dos fatos ocorridos no Brasil e se utiliza de farta biografia para tanto.

Os próprios autores usados por Dowley como tema, em especial Beauvoir, eram muito afeitos à tática de mesclar elementos romanescos aos autobiográficos. Os Mandarins é certamente o exemplo mais famoso desse gênero de obra muito popularizado pelos existencialistas e muitos, inclusive eu, veem em Robert e Perron uma polaridade de seres muito similar à existente entre Camus e Sartre no plano da realidade. Ainda assim, mesmo com os casos tidos com Koestler e Algren sendo claramente citados no volumoso romance, Simone negava ser esse um roman a clef. A Convidada é outro romance interessante nesse sentido, pois nos ajuda a entender as crises de ciúme existentes de Simone em relação a Sartre no tocante à presença de um triângulo amoroso presente na vida de ambos.

A autora de Tête-à-Tête também se utiliza de um vasto material biográfico para escrever sua biografia em forma de romances. Há um detalhismo exposto em notas que assusta. Além de ler romances produzidos pelos dois autores e por pares como Jacques-Laurent Bost e Nelson Algren, Dowley leu correspondências trocadas pelos autores entre si, entre seus pares e por esses pares com outras pessoas. Livros escritos contra eles, como de uma estudante de Simone que se sentiu atingida após a revelação da imagem dela contida nas cartas dos dois -postumamente publicadas – e entrevistas – como a de Michelle Vian – também foram usadas para construir um amplo painel existencial do casal que praticamente desenvolveu o conceito de “amor livre”.

Lembro que ouvi a primeira vez algo sobre esse conceito de uma namorada tida quando tinha 17 anos de idade. Ela tinha uma revista que continha em um de seus volumes os vários tipos de amores com base no pensamento filosófico de diversas escolas.

– Gostaria que tivéssemos um amor a la Sartre.

Eu ouvira vagamente falar de Sartre àquela época, pois estava começando a me afundar em uma literatura mais existencial, como Henry Miller, Dostoiévski, Milan Kundera, Gogól, Machado de Assis etc. Pedi esclarecimentos sobre o que ela queria me dizer e então soube de um sujeito que namorava uma moça, mas ainda assim ambos tinham a liberdade de ficar com quem quisessem. Tão encantado fiquei, que logo comecei a ler as obras de Sartre e as de Simone, começando por Entre quatro paredes e A Convidada. Ambas me fizeram entender o pensamento existencial e os conflitos entre consciências e mesmo com todo o romantismo que o conceito de “amor livre” sempre teve em minha mente já fui capaz de entender que ele não deveria ser tão simples assim.

Mesmo a leitura atenta de certos romances de Simone e mesmo de Sartre, em especial Idade da Razão e seus diários de guerra já mostram que a relação entre eles não era algo tão sereno e amigável assim. O livro de Hazel Dowley evidencia ainda mais um processo de desconstrução que nos últimos anos eu vinha sofrendo: a imagem de Sartre como o sujeito pura razão, equilibrado, profundo em todos os aspectos e cheio de autocontrole indo pelo ralo. Há um imenso amor ainda por seu pensamento filosófico que embasa obras de Paulo Freire e meu fazer pedagógico. Mas, ainda mais após a leitura de Dowley, fica evidente que Sartre teve um relacionamento dos mais abusivos com Simone de Beauvoir.

Muitos podem argumentar que esse é apenas um livro de alguém que de repente queira reforçar a ideia do amor romântico, cada vez mais espalhada e fracassada pelo mundo. Porém, leitor ávido dos dois autores e tendo recentemente uma experiência de “redescoberta” de um autor por mim amado, fico convencido pela narrativa feita pela autora de Tête-à-Tête que em quase todo texto se isenta de emitir juízos de valor.

Dowley se mostra uma grande pesquisadora e uma grande narrativa. Vasculhando tudo o que foi possível da vida do casal mais chocante do século passado, a autora nos deixa ver por cartas, trechos de livros, entrevistas e entrecruzamento de discursos e fatos que em dado momento da vida a dois de Sartre e Simone o sexo, o desejo e o tesão somem. Simone assume uma postura de amiga de Sartre, mas ao contrário do afirmado nas cartas a Algren não via isso com tão bons olhos assim. Conforme o tempo passa e os casos amorosos de Simone vão morrendo, Algren pela sua impossibilidade de largar tudo e Claude Lanzmann por se envolver com outra pessoa, os de Sartre se proliferam e em cada país que ele cria novos laços temporários, ao mesmo tempo que coexiste pacificamente com duas ou três mulheres em Paris, sustentando todas e tendo de dividir sua agenda entre elas.

Em fases mais tenras da vida de ambas, Simone chega a intermediar o contato de Sartre com outras mulheres, o que gerou a crítica severa de setores reacionários progressistas de que ela seria uma grande alcoviteira do mentor do existencialismo. Ademais, enquanto Sartre poderia conciliar seus casos amorosos, Simone inviavelmente devia abrir mão dos seus influenciada pela possessividade masculina, algo que é tão combatido por ela em O Segundo Sexo. Essa possessividade poderia ser de um dos amores contingentes, como Algren, ou do próprio Sartre que sempre a queria por perto quando estivesse por Paris.

É sempre interessante a leitura desse tipo de texto, pois podemos comparar o mesmo com os textos escritos em primeira pessoa pelos temas tratados. A imagem do casal romântico e libertário que criei quando tinha 17 anos hoje está bem arranhada. Dos dois, talvez Simone tenha sido a que mais próximo viveu isso por jamais tentar cercear Sartre, ao menos de modo mais ferrenho, de viver sua vida com outras pessoas. Porém, talvez estejamos lidando aqui com o fato de ela apenas reproduzir um comportamento passivo tipicamente feminino ainda em muitos espaços de nossa sociedade.

Assim como os protagonistas de Jules e Jim, de Henri-Pierre Roché, mas no plano da realidade, Simone e Sartre tentaram ser pioneiros da liberdade em um novo plano. Todavia, o amor é fracasso. Enquanto alguns tentam disfarçar isso por meio do casamento, o casal existencialista tentou vivenciar um modelo de liberdade não muito compatível com uma realidade social que coloca o signo da posse em tudo. Dentro da estrutura machista do mundo onde vivemos, Simone mesmo com toda sua autonomia como mulher abriu mão de sua liberdade em prol dos desejos de Sartre e mesmo seus romances deixam isso muito claro, por mais que seja difícil aceitarmos isso.

Há ainda um imenso amor pelo que ambos escreveram, pois sem dúvida são alicerces intelectuais importantes em existências como a minha, as quais diariamente tentam conciliar a liberdade com a ética, a responsabilidade e relativa estabilidade. Esse amor, como o sentido por Jack Kerouac, agora se menos idealizado e abstrato e vejo diante de mim dois seres humanos que se pecaram pela tentativa de viver o diferente, venceram pela capacidade de pensarem e viverem seu tempo como poucos.


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