As heroínas de Jane Austen

Por Virginia Higa



Vamos propor um desafio de leitura: encontrar uma cena em algum romance de Jane Austen em que dois ou mais homens conversem sem uma mulher assistindo aos eventos. Será difícil, até impossível, porque nos romances desta escritora inglês, sobre a qual tudo já foi dito, só parece existir uma história se uma personagem feminina estiver como testemunha do que acontece. Essas personagens assumem formas diferentes, são as famosas heroínas austenianas e também suas amigas, irmãs, parentas, conhecidas e rivais. O papel dessas mulheres é duplo no mundo da ficção; não são apenas personagens, mas emprestam olhos e ouvidos a uma autora que escreveu apenas sobre o que conhecia verdadeiramente.

Jane Austen nasceu em 1775 e viveu um período de transição entre duas formas do romance. Os seus parecem mais com sátiras sociais e comédias de costumes do século XVIII diferente dos romances do romantismo e do século seguinte. Tudo foi dito sobre ela, é verdade, mas não é menos verdade que seu trabalho continua a despertar paixões, favoráveis e contrárias. Entre as últimas, está a reação inicial de Charlotte Brontë, nascida um ano antes da morte de Austen, que detestava Orgulho e preconceito e disse que sua autora não tinha poesia e não conhecia a paixão. Ralph Waldo Emerson também deixou registrado em seus cadernos o quanto ele não gostava daquelas tramas que giravam quase exclusivamente em torno do casamento e do dinheiro, dizia que careciam de criatividade e “conhecimento do mundo”. “O suicídio é mais respeitável”, escreveu ele com firmeza.

Será que mentes literárias tão refinadas o leram tão mal? O amor por uma certa prosa, no fundo, é uma questão de temperamento e uma questão sobre a qual sempre será impossível chegar a um acordo? Uma experiência recente me lembrou essa anedota: uma amiga escritora que nunca havia lido Orgulho e preconceito comprou o romance devido ao meu fanatismo e ficou desiludida ao me contar quase o mesmo que Charlotte à pobre crítica que recomendara sua leitura (E já que falamos de personagens masculinas sob personagens femininas, não vamos dizer o nome dele, mas apenas que ele era o amante de Mary Ann Evans, também conhecida como George Eliot).

É possível que a aparente limitação dos temas e dos ambientes não lhes permita ver o humor, a inteligência, a percepção das observações? A perplexidade ante o julgamento de Emerson e Brontë (entre vários outros detratores ilustres) surge porque o que mais gostamos os que leem Jane Austen é a voz da narradora. Sua linguagem, que reconheceríamos imediatamente, mesmo em traduções. Suas inflexões e sua sintaxe. Seu uso do discurso indireto livre. Sua música verbal de pianoforte. A voz que narra em seus romances é sempre a mesma, uma terceira pessoa que aborda uma e outra personagem e se contamina um pouco delas, mas que nunca perde a compostura e sempre mantém uma distância segura. Uma narradora firme e elegante que nos tira para dançar uma daquelas danças de grupo do período da Regência e nos conduz do começo ao fim.

Em 1853, um crítico anônimo (há quem diga que era a própria George Eliot) escreveu que Austen se concentrava demais nas “pequenas coisas e trivialidades da vida” e se limitava aos discursos e ações de pessoas sem graça, ignorantes e desagradáveis ​​e que, em suma, “dava sono”. O que ele mais criticou foi sua falta de imaginação e experiência, já que “descrevia apenas o que sabia e o que tinha visto”. Novamente: é possível que o que alguns veem como defeito, para outros – para nós, seus leitores – seja uma virtude? Se não há cenas nos romances de Jane Austen em que dois homens conversam sem serem observados por uma mulher, pode ser pela mesma razão; eles seriam tão estranhos para ela quanto uma cena de guerra ou uma aparição angelical. Um traço textual de seu apego ao é visto e ouvido.

Talvez seja essa combinação entre um mundo fictício limitado e hiperconsistente e uma voz narrativa tão sólida e segura que faça de seus romances um lugar ideal para mergulhar e escapar do mundo e o que gera tantos e tão apaixonados leitores em todos os lados. Sabe-se que, por causa de suas propriedades “reconfortantes”, seus livros foram prescritos para soldados que retornavam com estresse pós-traumático da Primeira Guerra Mundial, homens feridos que precisavam se isolar por um tempo de sua realidade e mergulhar em outra para poder se curar. Não deixa de ser curioso que Austen, como tantos outros autores acusados ​​desse defeito impreciso, misto entre realismo e falta de imaginação, ofereça, por sua vez, possibilidades tão intensas de escapismo. Ou talvez, não seja tão curioso, e simplesmente um efeito dos bons romances.

* Este texto é a tradução de “Las heroínas de Jane Austen”, publicado aqui, em Eterna Cadencia.

Comentários

Fernanda Huguenin disse…
Como fã de Austen, o que me
fascina na escrita dela é que mesmo
Jane ficando a maior parte da vida com
uma rotina mais caseira e com poucas
aventuras comparadas à vida da própria Brontë,ela
foi capaz de criar personagens femininas racionais e
questionadoras que mesmo apaixonadas eram fortes e
não se prejudicavam por influência alheia.

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