Joker


Por Davi Lopes Villaça



Parece inevitável comparar o Coringa de Joaquin Phoenix em Joker com o Coringa de Heath Ledger em Batman: the dark knight, embora as propostas das duas personagens sejam completamente diferentes. O Coringa de Phoenix parece ser, na verdade, o perfeito antípoda de seu antecessor. No dizer de algumas pessoas na internet: “o coringa do Ledger era um fodão. Esse aí é um perdedor”. Acho interessante refletir sobre essas categorias.

Em português, coringa significa indivíduo versátil, capaz de desempenhar múltiplas funções; daí o nome da carta do baralho, que pode substituir qualquer outra. Esse sentido cai bem à personagem dos quadrinhos, mas mais ainda versão de Ledger: um homem sem identidade, que não é ninguém mas pode ser qualquer um. O vilão se define menos pela loucura e pelo sadismo do que por sua astúcia. É a expressão de um poder caótico e demoníaco, que dificilmente pode ser agarrado ou previsto. Nós o amamos e torcemos a seu favor em parte porque o vemos como o representante de uma liberdade e de uma espontaneidade irredutíveis, que se compraz em ludibriar os agentes da ordem e da justiça – o sonho de vingança do cidadão comum contra uma sociedade que o rotula e paralisa.

O Coringa de Phoenix se situa na contramão de tudo isso. Desajeitado, não muito esperto, Arthur (esse seu nome verdadeiro) a todo instante tropeça nos obstáculos do dia a dia, sempre presa das amarras do sistema, contra o qual é incapaz de se rebelar. Não é só pelo fracasso de sua carreira como palhaço ou por sua condição paupérrima que o chamam perdedor: a expressão se dirige também à sua indisfarçada e mal correspondida carência de afeto e reconhecimento. O Coringa de Ledger desperta admiração também por sua completa indiferença e independência em relação aos outros. Essa autossuficiência é produto de sua sociopatia, mas nem por isso deixamos de invejá-la. Depois de assistir ao trailer de Joker, acho que muitos esperavam, como eu, descobrir como o sujeito ali retratado acabaria se transformando no mestre do crime que conhecemos em Dark knight. Mas a reviravolta pela qual ele de fato passa na história não sugere nada do tipo. No final Arthur ainda é o tipo fracassado do começo (é difícil imaginá-lo se tornando o arqui-inimigo do Batman). Sua loucura, esse elemento tão frequentemente romantizado, não abre para ele as portas da genialidade, apenas reafirma sua inaptidão para lidar com as barreiras de sua realidade.

A trama acompanha o desenrolar da crise de identidade da personagem – uma identidade já de início vacilante, posto que Arthur jamais teve sucesso em sua carreira de palhaço, naquilo pelo que desejava ser reconhecido: fazer os outros rirem. Quando perde o emprego, tem de lidar com sua falta de lugar no mundo. Em outra história, este poderia ser um momento de redefinição, o início de um processo de autodescoberta, e há algo mesmo nesse sentido: o herói segue a pista de seu pai desconhecido. No entanto, não se lhe revelam possibilidades positivas de saída de sua crise, e ele se vê  inevitavelmente confrontado com a própria nulidade. Isto tem a ver com questões tanto particulares quanto sociais: Arthur pertence ao mundo da pobreza e da violência, acentuadas por uma crescente desigualdade que empurra uma parcela cada vez maior da população para a marginalidade e a irrelevância.

As histórias de super-heróis costumam representar a sociedade como algo bom em si mesmo: todos os seus problemas são causados por elementos que constituem a exceção de sua dinâmica própria. Em Apocalípticos e integrados, Umberto Eco, ao tratar do quadrinho do Super-Homem (para o crítico, a expressão máxima da ideia de super-herói), atentou ao fato de que a personagem, esse ser quase onipotente, capaz portanto de solucionar os problemas mais graves da humanidade, emprega a maior parte de seu valioso tempo perseguindo bandidos na cidade onde mora. Acontece que no mundo do Super-Homem o mal nada mais é do que o resultado das ações de alguns indivíduos intrinsecamente perversos, (sejam eles ladrões de banco ou super-vilões). Para manter o título de defensor do bem e da justiça, o herói não precisa lidar com governos corruptos, as crises do capitalismo ou qualquer outro grande problema do mundo real. Basta-lhe garantir o funcionamento do establishment. Nos filmes de Christopher Nolan, o primeiro grande inimigo do Batman é a criminalidade, orquestrada pelas máfias que tomaram conta de Gotham. Tudo de que a sociedade precisa é ser purgada desses maus elementos – e não questionada na sua estrutura própria.

Joker se destaca não só por se focar na história de um vilão, mas por estabelecer um diálogo bem mais sério com a realidade. O que o diretor Todd Philips fez foi, na verdade, algo bem semelhante ao que os antigos tragediógrafos sempre fizeram: convocou uma personagem já bem fixada no imaginário popular para pôr em questão problemas atuais. O filme apresenta uma Gotham levada a um nível crítico de desigualdade. O problema maior não são os criminosos, mas a pobreza, o desamparo e a falta de perspectiva de boa parte da população. Thomas Wayne, o pai do futuro Batman, é um magnata candidato a prefeito da cidade, bem diferente do simpático filantropo da versão de Nolan. Ao se manifestar sobre os primeiros crimes do Coringa, comete a gafe de dirigir ao público um discurso elitista e meritocrático: “Quem teria o sangue frio para fazer isso? [...]. Alguém que tem inveja dos que são mais afortunados do que ele. [...]. Enquanto esse tipo de gente não melhorar, aqueles de nós que fizeram algo de suas vidas vão sempre olhar para os que não fizeram como nada melhor do que palhaços”. Existem diferentes percepções sobre o que significa “fazer algo com a vida”, mas geralmente se tem em mente algo como encontrar um lugar na sociedade, ocupar uma posição que garanta sustento e um sentimento de dignidade. A isto também chamamos “tornar-se alguém”. Mas numa sociedade em estado de desigualdade crescente, uma parte cada vez maior da população está fadada a ser ninguém. Em Joker, não é só com a pobreza e a violência que sofre o povo de Gotham, mas também com a impossibilidade mesma de autoafirmação.

Desde sua origem, os quadrinhos de super-herói muitas vezes jogaram com o sentimento de impotência do cidadão comum. Para Umberto Eco, é esse o sentido da dupla identidade do Super-Homem: na maior parte do tempo, Clark Kent, um jornalista sem qualquer atributo especial, tímido, míope e sem muito jeito com as mulheres. Mas quando a coisa aperta, ele abre a camisa e mostra quem é de verdade. Uma figura muito atraente para o cidadão comum numa sociedade, como diz Eco, “particularmente nivelada, onde as perturbações psicológicas, as frustrações, os complexos de inferioridade estão na ordem do dia; numa sociedade industrial, onde o homem se torna número no âmbito de uma organização que decide por ele, onde a força individual, se não exercitada na atividade esportiva permanece humilhada diante da força da máquina que age pelo homem e determina os movimentos mesmos do homem”. Vale lembrar, a primeira HQ do Super-Homem foi publicada em 1938, quando o mundo, em especial os Estados Unidos, tentava se reerguer após o trauma da crise de 1929. Nesse contexto, o herói aparecia também como símbolo da força oculta do cidadão comum, capaz de superar qualquer desafio. Um ano mais tarde, com o estourar da Segunda Guerra, o mundo descobriria a que consequências poderia levar o mito dos super-homens numa sociedade tomada pela humilhação e pelo ressentimento.

Mas o ideal do “tornar-se alguém” do Coringa é, como apontou Contardo Calligaris, bastante modesto: ele “não sonha com a riqueza dos Wayne, mas com o amor da vizinha”. Na verdade, a personagem provavelmente se contentaria com bem menos: com o reconhecimento do seu trabalho, com o afeto das pessoas à sua volta. A virada trágica de sua história talvez não fosse possível sem o esvaziamento completo de sua identidade. É tentador pensar nele como uma personagem coletiva, dizer que a marginalização cada vez maior do indivíduo na sociedade faz de todos nós coringas potenciais. Mas, ainda que isto pareça correto, é preciso cuidado para não nivelar a trajetória pessoal da personagem. Um dos pontos fortes do filme é justamente o diálogo entre o individual e o coletivo, entre a figura solitária de Arthur e a multidão furiosa nas ruas. Numa cena, ele caminha alegre num protesto ao lado de muitos manifestantes com roupas de palhaço (como ele mesmo estava vestido no dia seu crime) em resposta ao comentário infeliz de Thomas Wayne. Esse é um tipo problemático de identificação. É verdade que boa parte dos problemas de Arthur tem a ver com questões sociais. Mas ninguém tem culpa, por exemplo, de ele ser um palhaço ruim ou de não ter uma relação muito saudável com a mãe. Ao mostrar atos do herói se transformando em símbolo de revolta para a multidão, o filme não pretende dignificá-lo, e sim retratar, creio, esse momento delicado em que raivas particulares se confundem com raivas coletivas e perigosamente se canalizam para o mesmo ponto.

Uma questão importante que as discussões sobre o filme têm levantado é a que se refere à ideia de responsabilidade na trajetória do herói. Em que medida Arthur deve ser responsabilizado por seus atos? Mesmo os que tendem a atenuar sua culpa não gostariam de pensar nele como simples produto do meio. Gostamos de acreditar que mesmo nas situações-limite há uma escolha a ser feita, que o sujeito possui sempre uma margem, ainda que minúscula, de liberdade – afinal, tomamos esta como o parâmetro para nossa humanidade. Mas há também um terceiro fator a ser levado em conta, além da questão do livre arbítrio e do condicionamento: o acaso. O fato que introduziu o herói no maravilhoso mundo da violência dependeu sobretudo de ele estar no lugar errado na hora errada. É claro que quase tudo o que veio depois teve a ver com escolhas, mas então um passo fundamental já havia sido dado. A meu ver, trata-se sobretudo de não exagerar o caráter extraordinário de suas ações. O Coringa de Phoenix é só um tipo desequilibrado fazendo escolhas desajeitadas num mundo pouco propício à sensatez. Não é um homem perverso ou violento – é qualquer um.

Gregório Duvivier saudou Joker como um filme perigoso, com o mérito de ter desagradado ambos os lados de nosso binarismo político mais tacanho. Em sua crônica, vozes de direita acusam o Coringa de ser um representante da esquerda, enquanto vozes de esquerda acusam-no de ser um representante da direita. A complexidade da personagem é confirmada pelo fato de que nenhum dos lados a deseja para si, mais preocupados que estão em reafirmar sua própria coerência. A rigor, a multidão furiosa para quem o Coringa se converte em herói ainda não se definiu politicamente. Ela representa a força informe e sem liderança que emerge da raiva dos ninguéns. Uma força facilmente cooptável pelo fascismo (seja ele de esquerda ou de direita) mas que não necessariamente tomará esse rumo. Em meio a tudo isso, Arthur não é nenhum  porta-voz das massas, muito menos seu articulador. Mesmo com todas as suas peculiaridades e esquisitices, trata-se, na verdade, de um sujeito bem pouco original. Que a multidão o aplauda – sem de modo algum compreendê-lo – parece um sinal de tempos sombrios, quando homens medíocres são subitamente alçados à categoria de ídolos.  

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