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Mostrando postagens de março, 2020

Sobre duas narrativas de Thomas Bernhard

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Por Joaquim Serra Extinção: uma derrocada não é um livro para qualquer cabeça. Thomas Bernhard não é escritor para qualquer leitor. Cheio de repetições, divagações longas que parecem, por vezes, quase sem sentido. Parece, mas não é. O ritmo lento parece música, uma música truncada como o espírito que escolhe guiar, pelas desventuras do homem que acorda um dia e recebe um tal telegrama com notícia de morte (“Pais e Johannes mortos em acidente. Caecilia, Amalia”), uma tal metonímia que o força a reconstruir seu passado e os interesses materiais da família que sempre se reúne em uma sala escura, e que insiste em se comportar como aristocratas. Franz-Josef Murau agora é um professor, mora longe de casa, e tem um aluno preferido: o brilhante Gambetti. Um reflexo dele, interessado e inteligente. Wolfsegg vai ficar cravada na memória do leitor. Wolfsegg, onde ele foi criado como filho de proprietários de terra ainda carrega fortes desejos – quase de vingança – pelos primeiros a

O teatro do mundo (Parte 2)

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Por Felipe de Moraes Como explicitado na primeira parte deste texto , essa “categoria histórica”, externada como forma de práticas elocutivas das sociedades de cultura, formulou padrões que foram assimilados por uma nobreza que reagia aos avanços da burguesia ascendente (que também desenvolveria e imprimiria essa nova velocidade à literatura, desaguando no romance como gênero moderno) 1 e de uma série de movimentos religiosos que se impunham contra os dogmas do catolicismo; dogmas estes que eram completamente alicerçados pela retórica e pelo cultismo. Claro fica que esse bom falar é prática dos homens dos grandes salões, distantes que estão dos plebeus e da sua linguagem mais vulgar (aqui no sentido lato da palavra): “Mas não somente pela virtude desta divina Pito, o falar dos Homens Engenhosos tanto se diferencia daqueles da Plebe , quanto a fala dos Anjos se diferencia da dos Homens; mas por milagre dele [o falar dos Homens Engenhosos] a coisa Muda fala, o não sent

Boletim Letras 360º #368

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DO EDITOR 1. Ao que se avista de outros países, estamos apenas no princípio de um longo tempo de dificuldades. E parece que, para nós tudo poderá se estender por mais tempo e com consequências dolorosas muito piores, devido ao empenho descoordenado entre governo e população. Enquanto pudermos, cuidemos de nós e dos que estão próximos – é um reforço ao pedido oferecido na edição anterior deste Boletim. 2. Nesse tempo, é impossível segurar uma verdade: o mercado editorial brasileiro entrará em colapso. Assim, na já longa lista de ajudas aos próximos, sempre que possível devemos incluir, nas compras de livros (e divulgação) as editoras independentes e as pequenas livrarias. Não é apenas o caso de, em grande parte, estas constituírem a única fonte de renda de uma família, é o caso de não deixar perecer o esforço, a dedicação e um trabalho que, em tempos de isolamento, se torna ainda mais necessário. 3. A seguir as boas notícias que nos chegaram nesta primeira semana de isol

Contrata-se

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Por Paula Luersen Este anúncio, por certo, não corresponde às usuais ofertas de emprego publicadas em classificados online ou em páginas de jornal. A vaga pertence, contudo, ao bibliotecário Oshima, longevo funcionário da Biblioteca Memorial Komura, centro cultural localizado em Takamatsu, no Japão. Embora a cidade possa ser localizada nos mapas e globos, a biblioteca será encontrada somente nas páginas do livro Kakfa à beira mar , de Haruki Murakami. Diferente de outras bibliotecas, o Memorial Komura é um espaço ficcional. No livro, ele se insinua nos sonhos daqueles que devem visitá-lo, tornando-se o lugar em que o personagem que dá título ao romance irá empreender o árduo caminho de descoberta de si mesmo. Sendo um centro de pesquisa em arte, história e literatura japonesa, a biblioteca oferece amplas áreas verdes, atendimento especializado, poltronas confortáveis e aparições reveladoras. Mais do que me tornar frequentadora dessa biblioteca, certa vez almejei trabalhar n

Lasca, de Vladímir Zazúbrin

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Por Pedro Fernandes Vladímir Zazúbrin, Novosibirsk, 1918.   A certa altura do segundo capítulo de Lasca , o narrador que acompanha Srúbov, um agente da Tcheká, Comissão Extraordinária para Luta contra a Contrarrevolução e Sabotagem, primeiro órgão de segurança da União Soviética, antecessor da KGB, o narrador registra o encontro da personagem com uma carta do pai que assim diz: “Pense nos milhões de torturados, fuzilados, aniquilados para erigir o edifício da felicidade humana... Você está errado... A humanidade futura recusará a ‘felicidade’ criada sobre o sangue das pessoas...” Este excerto, sem desprezar toda a sua dimensão profética, pode ser tomado como uma síntese sobre um livro que atravessou as fronteiras do horror e se tornou numa das primeiras peças sobre um regime de dor e morte cujas marcas são indeléveis na história do povo russo. O que acompanhamos nas poucas páginas dessa novela é a crise de uma consciência que, mesmo obnubilada pelos interesses de um

Suave é a noite. O declínio de um roteirista chamado F. Scott Fitzgerald

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Por Manuel de Lorenzo F. Scott Fitzgerald. Arquivo Princeton University Library Quando F. Scott Fitzgerald traçou em Suave é a noite a história de Dick River, sua glória e queda, a doença mental de sua companheira, a descida aos infernos do álcool, sua insegurança emocional e a falta de controle financeiro, estava deixando um testemunho por escrito de sua própria história. Uma jornada de vida que o coroou como a voz mais talentosa de uma geração extraordinária, a de John Dos Passos, Robert B. Parker, Ernest Hemingway e William Faulkner, e acabou jogando-o na lama, derrotado por seus próprios demônios. Em 1921, um ano depois de publicar Este lado do paraíso , seu primeiro romance, ele fez uma confissão profética no artigo “My Lost City” (Minha cidade perdida): “Lembro-me de viajar de táxi uma tarde entre edifícios altos e um céu cor de rosa e malva; Comecei a chorar muito, porque tinha tudo o que queria e sabia que nunca seria tão feliz novamente”. Treze anos depois, quan