Contrata-se


Por Paula Luersen

Este anúncio, por certo, não corresponde às usuais ofertas de emprego publicadas em classificados online ou em páginas de jornal. A vaga pertence, contudo, ao bibliotecário Oshima, longevo funcionário da Biblioteca Memorial Komura, centro cultural localizado em Takamatsu, no Japão. Embora a cidade possa ser localizada nos mapas e globos, a biblioteca será encontrada somente nas páginas do livro Kakfa à beira mar, de Haruki Murakami. Diferente de outras bibliotecas, o Memorial Komura é um espaço ficcional. No livro, ele se insinua nos sonhos daqueles que devem visitá-lo, tornando-se o lugar em que o personagem que dá título ao romance irá empreender o árduo caminho de descoberta de si mesmo. Sendo um centro de pesquisa em arte, história e literatura japonesa, a biblioteca oferece amplas áreas verdes, atendimento especializado, poltronas confortáveis e aparições reveladoras.

Mais do que me tornar frequentadora dessa biblioteca, certa vez almejei trabalhar nela. Como se eu pudesse simplesmente dobrar uma esquina e adentrar os lugares erigidos pelos livros, aos poucos, na minha imaginação. Na verdade, sempre que me vejo desempregada, volto a cobiçar os postos de trabalhos que eu gostaria de ocupar dentro do universo ficcional. Afinal, estando à espera de uma vaga, não tenho outra escolha que não entregar-me aos livros. Essa passa a ser minha maneira de alargar a imagem do mundo e sobrepor à ansiedade, característica do desemprego, um sem fim de possibilidades fantásticas.

Por exemplo: nunca me interessou, a priori, a vaga de cuidadora de pessoas idosas. Não me sinto qualificada para tanto, sendo toda a minha formação voltada para as artes visuais. Mas e se, de repente, a idosa em questão, aquela a quem eu dedicaria meus dias, tivesse sido uma das mulheres a fazer parte de uma performance icônica do artista Yves Klein? E se ela tivesse sido uma das jovens a carimbar a sua silhueta em azul, num painel que guarda a marca de várias outras mulheres e de uma época? Ela teria, então, participado de um dos notáveis momentos do modernismo e da história da arte.

No romance O porco entre os peixes, de Jasmin Ramadan, essa senhora idosa vive aos cuidados de Celestine, a narradora-personagem. Meio sem querer, durante o livro, Celestine descobre que a mulher que auxilia diariamente em algumas tarefas já foi parte dos círculos vanguardistas da arte moderna, tendo diversas histórias para contar. Eu, tomando o lugar da menina, adoraria conversar com essa senhora. Eu, inclusive, faria a ela perguntas que Celestine não chegou a fazer. Eis os infortúnios do espaço ficcional e de seus personagens.

O fato é que o lugar imaginário que essa mulher e tantos outros personagens habitam me move a olhar o espaço real com muito mais interesse, curiosa de suas tramas e recortes. Ansiosa por perceber os detalhes insuspeitos que marcam a biografia daqueles que me cercam. No caso de O porco entre os peixes, a autora do livro se valeu de um acontecimento real, a performance Antropometria do período azul, idealizada por Yves Klein, tornando uma das mulheres a realizarem a obra personagem da história. Isso aponta para o mundo, mostrando que há pelo menos meia dúzia de senhoras por aí, em algum lugar, que poderiam dividir conosco uma experiência única e muito particular vivenciada anos atrás no mundo da arte. Eis as surpresas do espaço real e de seus personagens.

Em nenhuma ocasião, contudo, converti o meu interesse ficcional em ocupação real. Isto é, não cheguei a tornar-me uma bibliotecária. Nem uma cuidadora de idosos. Infelizmente, também não cheguei a alcançar o posto de estivadora, tal qual Ishmael de Moby Dick. Mas, se os livros não me conduziram a um emprego que correspondesse aos meus anseios ficcionais, certamente motivaram-me a trabalhar. Explico: faz algum tempo que chegou às minhas mãos o livro Meus Documentos, de Alejandro Zambra. Nele, o conto “Longa distância” trouxe a figura de um telefonista cujo trabalho era basicamente atender ligações durante a madrugada e registrar dados de clientes. O tempo que restava era dedicado à leitura e à escrita. Algumas vezes, a um cochilo.

Não, não me tornei telefonista. Mas encontrei na descrição do personagem uma ideia que me é cara: “se alguma coisa havia sido constante em minha vida era o amor por algumas histórias, algumas frases, por umas quantas palavras”. Não só essa sentença, que me soou desde sempre muito nítida, mas também a leitura da obra de Zambra me levaram a exercitar esse amor pelas histórias, por determinadas frases e palavras. Dito de outra maneira, ler Zambra me motiva a escrever. E não existe, a meu ver, fator mais decisivo para saber que algo me mobiliza do que essa vontade louca de produzir arte surgida assim que fecho o livro, assim que termina o show, assim que finalizado o espetáculo.

Como disse, a escrita não é propriamente um emprego para mim, mas um trabalho. Um trabalho pelo qual, sem sair da cadeira, posso finalmente virar a esquina e achar-me no mundo ficcional. Tento, então, conduzir as experiências que por lá passeiam, amparadas pela memória, de volta ao mundo real. Trago, na melhor das hipóteses, apenas a sua insígnia. Somente uma ou outra imagem que possa se adensar, ganhando cor e profundidade aos olhos de quem lê.

Não é à toa que muitos dos personagens dos contos de Zambra são escritores. Escrever sobre o próprio ofício é bastante sedutor. Mesmo o telefonista de “Longa distância” também revela-se escritor no conto, dando aulas de Técnica de Expressão Escrita em um curso que organiza e que move a narrativa. Interessa-me mais, contudo, esse telefonista-escritor. A cuidadora-artista. O bibliotecário-filósofo. Todos esses personagens que precisam sustentar binômios para trabalhar com arte, refletindo uma situação tão própria ao nosso tempo e a tantos artistas de nosso tempo – como confirmariam professores-pesquisadores, músicos-produtores, atores-diretores, artistas-e-etc. Isso fala do contexto que atravessamos, mas, mais do que isso, da necessidade que sempre encontro de me perder no mundo ficcional e lá serenar, para então conseguir encarar o mundo real com mais coragem e sensibilidade. Quando finalmente consigo olhá-lo, crio registros, fantasio, trabalho. Escrevo.

Hoje, portanto, sigo escrevendo. E estou novamente desempregada. Nunca cheguei a me considerar escritora. Não nessa esquina do mundo. Não sei dizer que posto virei a ocupar em breve aqui no espaço real, nem que histórias isso me trará. Mas sei que nunca deixarei de ser, mesmo que em paralelo, uma trabalhadora das palavras.

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