Macunaíma e o estoque de energia em “Canoas e marolas”


Por Wagner Silva Gomes

Macunaíma por Poty Lazzarotto.


Do livro Canoas e Marolas (1999), de João Gilberto Noll, que versa sobre um homem de meia-idade, de moral burguesa, que vai atrás de sua filha Marta (“Ninguém”, porque assumiu ser povo) grávida de um rapaz de tradição indígena (o pobre) em plena região amazonense, veio-me a imagem dos personagens novelescos do Antônio Fagundes, um preguiçoso de dar gosto, sempre de respiração ofegante, com um cansaço mitológico, marcado de forma clássica em Velho Chico (2016), ao caminhar pelas areias nordestinas.

É a imagem do patriarcado brasileiro se dissipando, seja pelo coronelismo (em Gabriela), pela estrada (em Carga pesada) ou pela favela (em Duas caras), que vai por fim alegorizar a preguiça (em Velho Chico), como no livro de Gilberto Noll.

Essa frouxidão brasileira tem o efeito hibernal do urso, com um estoque de energia laico e leviano.

Essa frouxidão tem o efeito do grito de guerra “Ai que preguiça”, do Macunaíma. É o seu estoque de persistência na busca por seu talismã, a muiraquitã (que representa os bens do povo), nas batalhas contra o gigante Piaimã (o aristocrata ou o burguês), juntando os seus pedaços e voltando à luta, antes que vire sopa, em carne a borbulhar na polenta.

Macunaíma, como o povo, quer os seus pertences usurpados, e para isso teve que colocar o gigante na panela e extrair tudo o que lhe foi roubado, trazendo a sorte de volta.

Os personagens de Antônio Fagundes mereceriam o mesmo, e isso foi feito em Velho Chico, sugando toda a força do Afrânio, só restando areia em suas mãos.

Na história do Brasil o Macunaíma é o Lula, e o talismã é a estrela do PT. Querem fazer o Lula virar sopa, para extrair a sorte do povo, quando o Lula quer fazer o inverso. O Lula, como o Nordeste, é o povo extraindo o que a elite lhe roubou. Como Macunaíma na macumba da tia Cíata, espancando o gigante em uma batucada do povo.

O gigante (representando a elite) deixou Macunaíma em pedaços. A burguesia, na figura da indústria, deixou o Lula sem o dedo anular da mão esquerda (o que o tornou ainda mais forte, conseguindo se articular no sindicato e dialogar com a burguesia), num casamento proveitoso para ambos.

Se Macunaíma se vestiu de francesa, o Lula se vestiu de Dilma. Tática que só funcionou por algum tempo.

O Lula teve que se pintar de branco, por causa dos acordos com a burguesia, outra tática para concretizar os projetos de distribuição da riqueza com a classe trabalhadora. Macunaíma também o fez.

Macunaíma teve que transformar os bagos de cacau em dinheiro, para sobreviver na cidade. O Lula teve que transformar o solo (petróleo) em dinheiro.

O Lula é a respiração de João Gilberto cantando samba (João Gilberto nunca cantou Bossa Nova). João Gilberto Noll também escreve como João Gilberto canta. A gente não nota uma só nota se esgotar. E o estoque de energia faz o povo seguir em frente, como na música “O show tem que continuar”, dialética do Fundo de Quintal à Bossa Nova.

No entanto, João Gilberto é pintado como o ócio burguês, ou seja, o não-trabalho, o tempo livre que a elite tem para o exercício da preguiça. Mas ambos, Lula e João Gilberto, são os trabalhadores que superam o tempo, inventando o tempo livre para exercitar a preguiça. Como o índio, como os escravos negros, e como Macunaíma.

Apesar desse caráter de urso, de quem poupa energia, o personagem de João Gilberto Noll é limítrofe, entre o Afrânio, de um lado (o lado aristocrático, burguês) e o Lula, do outro lado (o lado pobre, o povo). Ele chegou ao estágio da estagnação.

É o estágio do Brás Cubas, personagem de Machado de Assis, que diz ao pai: “deixe-me viver como um urso, que sou”. Seu estoque de energia é leviano e pode ser aproveitado por qualquer uma (diga-se, as classes sociais em disputa).

Por isso, “Ai que preguiça”. Viva Macunaíma, João Gilberto e o Lula. Viva a frase guerreira que é estoque de energia. Viva o fundo de quintal nas Canoas e marolas de João Gilberto Noll.


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