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Mostrando postagens de junho, 2020

Conversas com suicidas

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Por Carlos Mayoral Alfonsina Storni. Mar del Plata, 1925.  Safo terá pulado do alto de uma pedra no fim da vida? Foi capaz de assumir que nunca poderia esquecer o amor não correspondido? Ao escutar o canto da sereia, o suicida sempre a imagina bela, atraente, necessária. Alfonsina Storni reflete sobre sentada na areia da praia de La Perla, em Mar del Plata. Deixou tudo amarrado, muito bem amarrado. Tomou cuidado para que seu filho não suspeite sobre a verdade: sua mãe deixou o hotel para observar o mar tranquilamente, embora o jovem acredite que se trate apenas de uma noite a mais. Alfonsina, entretanto, sabe que não. Alfonsina e, certamente, Safo também. Porque Safo é a poesia, diz-se. Ela alcançou a plenitude que ninguém alcançaria mais tarde, logo seu salto para o vazio do alto da rocha estava mais que justificado. E se a poesia, como diria depois Jaime Gil de Biedma, é o único recurso para dialogar ao mesmo tempo com os seus contemporâneos e os seus antepassad

Um berço na Sicília

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Por Rafael Ruiz Pleguezuelos Luigi Pirandello, Catania, 1932. Foto: Mondadori / Reprodução Durante grande parte de sua vida, Luigi Pirandello foi seduzido pela ideia segundo a qual sua família poderia não ser sua, idealizando que pudesse ter sido trocado no berço ao nascer. Uma ama ainda mais fantasiosa acabou por fazer perdurar a dúvida para sempre. Em crises de egolatria entre infantil e suicida, percebia seu eu ― precisamente o dramaturgo da busca do eu ― menos mundano e mais espiritual que o da família onde havia nascido, um clã siciliano de cerradas tradições. A Sicília lhe parecia uma terra muito confusa e tradicionalista para ser sua, e levou a broma do filho trocado a tão longe que escreveu uma obra que ainda está por ser descoberta do grande público: essa Fábula do filho trocado que foi ofuscada pelo brilho cintilante de Seis personagens à procura de um autor . Pirandello jogou com o tema como uma pessoa tão séria como ele não podia fazer: produzindo uma g

Boletim Letras 360º #381

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DO EDITOR 1. Caros leitores, abaixo estão as notícias divulgadas durante a semana na página no Facebook (ou não) e a atualização das demais seções deste Boletim com as recomendações de leitura, assuntos de arredores do campo de interesse do blog e a sugestão de visita a algumas das publicações apresentadas aqui. Obrigado a todos pela companhia ― sigamos juntos. Boas leituras! João Guimarães Rosa. Obra com textos de Paulo Rónai sobre o escritor mineiro ganha edição. LANÇAMENTOS Nova tradução de O falecido Mattia Pascal , de Luigi Pirandello . O que alguém faria se tivesse a chance de nascer de novo, de ser quem quisesse? Seria possível abandonar família, história, romper com a imagem que sempre teve de si mesmo? Tema caro ao italiano Luigi Pirandello, a autopercepção do sujeito em meio à sociedade em que vive leva a uma ruptura na vida de Mattia Pascal. O leitor acompanhará sua trajetória em meio ao embate entre identidade e sociedade, entre o passado e as

A aldeia global como campo de concentração: a vida nua em tempos de coronavírus

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Por Rafael Kafka ©  Masha Mitva A leitura de É isto um homem? , de Primo Levi, revela algumas coincidências entre fatos vividos na realidade dos campos de concentração e a atual vivenciando uma quarentena para não sucumbir pelo novo coronavírus. Ao falar isso, não esquecemos a crueldade da limpeza étnica que existia na lógica dos campos, mas diante dos atuais cenários de descaso cada vez maior com a vida dos mais pobres, a analogia até no foco genocida parece fazer bastante sentido. Textos que retratam o terror do nazismo possuem uma relativa fama dentro do universo literário, mas ao que me parece suas narrativas quase sempre se voltam mais para um olhar global do fato social ou registram o vivido por outra pessoa. Casos emblemáticos dos dois cenários são o diário de Anne Frank e Maus , de Art Spielgman. Anne fala de um confinamento que termina no campo com sua morte e o quadrinista fala da experiência narrada por seu pai, dois textos muito valiosos para se entend

As solas dos pés de meu avô, de Tiago D. Oliveira

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Por Pedro Fernandes a memória é um tamarindal em movimento e harmonia na imagem que não cessa A literatura é, por vezes, feita de memória. As primeiras formas poéticas mais elaboradas que chegaram até nós dão contas de um trabalho de recriação das figuras inscritas no tempo pela potência de seus feitos permitindo, assim, mantê-las vivas entre as gerações futuras. Esse tratamento não se filia em exclusivo à experiência do vivido. É verdade que o poeta é o principal sujeito da enunciação, mas esta é constituída de uma cooperação entre o ente da palavra e as Musas ― elas, sim, presenciam, sabem tudo e o poeta é um ouvinte dos rumores do que rememoram. Esse fenômeno que explica as bases da tradição clássica constitui toda a atividade criativa com a palavra e suas implicações se verificam em culturas das mais variadas; também os cantos populares no interior do sertão nordestino, por exemplo, remontam o tratamento da poética clássica. Desconsidera-se aqui a ideia do re

Marvin, de Anne Fontaine

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Por Pedro Fernandes A sinopse oficial de Marvin não menciona ser uma adaptação da obra de Édouard Louis; nem os créditos finais ou de abertura da película. Mas, resulta impossível negar as relações entre O fim de Eddy e Marvin , ainda que o romance nos coloque diante de outro rumo para a vida da personagem e se revista de uma objetividade mais acentuada acerca dos acontecimentos relatados. Quando se anunciou o novo filme de Anne Fontaine dizia-se que a história de um ator, dramaturgo e escritor que transformou a miséria, a violência e a vergonha de seu passado em campo de experimentação discursiva era a partir da obra de Édouard Louis; um ano depois, o próprio escritor veio a público dizer que não tinha nada a ver com o filme. A partir disso, tudo o que se disse foi especulação. Uma das cenas finais da obra de Anne Fontaine apresenta o agora Martin Clement acolhido pela apoteose de sua peça para o teatro encenada ao lado de Isabelle Huppert numa entrevista utilizand