Um berço na Sicília


Por Rafael Ruiz Pleguezuelos

Luigi Pirandello, Catania, 1932. Foto: Mondadori / Reprodução



Durante grande parte de sua vida, Luigi Pirandello foi seduzido pela ideia segundo a qual sua família poderia não ser sua, idealizando que pudesse ter sido trocado no berço ao nascer. Uma ama ainda mais fantasiosa acabou por fazer perdurar a dúvida para sempre. Em crises de egolatria entre infantil e suicida, percebia seu eu ― precisamente o dramaturgo da busca do eu ― menos mundano e mais espiritual que o da família onde havia nascido, um clã siciliano de cerradas tradições. A Sicília lhe parecia uma terra muito confusa e tradicionalista para ser sua, e levou a broma do filho trocado a tão longe que escreveu uma obra que ainda está por ser descoberta do grande público: essa Fábula do filho trocado que foi ofuscada pelo brilho cintilante de Seis personagens à procura de um autor. Pirandello jogou com o tema como uma pessoa tão séria como ele não podia fazer: produzindo uma grande obra a partir de uma simples suspeita. Muitos anos mais tarde, Andrea Camilleri também se sentiu atraído pelo jogo de Pirandello e por isso chamou sua possível biografia sobre o dramaturgo siciliano de Biografia del Figlio cambiato.

Pirandello realizou seus estudos na Alemanha, na universidade de Bonn, e se conta que sempre podia se passar por alemão, algo que era medianamente crível por suas feições (aloiradas da cor de palha e os olhos azuis). Toda essa mania sua de se definir como um sujeito trocado ao nascer, pouco siciliano como se dizia, é parte de seu próprio teatro: qualquer pessoa que tenha visitado a ilha sabe exatamente o contrário do que é oferecido na dramaturgia de Pirandello: agito, ruído, identidades em confronto, tradição, cores, gente, gritos e cultura. Nada a ver com a limpidez de seus textos, mais apropriada para um centro cirúrgico que um palco. Pirandello levou o teatro contemporâneo à sala de operações, dissecando o eu de cada um de nós ― essa espécie de eu coletivo que ninguém sabe o que é até que um grande artista nos mostra ― e oferecendo em sua mínima essência.

Gostava de definir a si mesmo como “filho do caos”, fazendo um sensível trocadilho de palavras a partir da anedota de que Caos é o nome do lugar onde nasceu. Sempre se referiu à mansão familiar com “a casa do caos”, algo que cobra um significado quase cósmico se alguém não conhece sua literatura. Não cansava de repetir que o grave problema de entendimento com seu entorno provinha do fato de que ele “era um tipo de sangue frio numa família de sangue quente”. Sua maior vingança contra esse ambiente onde ele não acreditava fazer parte, e contra a própria Itália como a ideia coletiva, foi sua obra: acrescentou à história da literatura italiana uma equalização e universalização da personagem que fulminaria a visão italianizante do mundo que era tão recorrente em suas letras. Esse afã por encontrar uma voz universal que se situe acima de toda tradição o converte num dos primeiros dramaturgos verdadeiramente modernos. Foi uma constante em sua vida que o acaso provocasse seu talento: somente conseguiu os estudos superiores porque seu pai quis apartá-lo de um romance de juventude que família julgava inapropriado; quanto mais se sentia atraído pela pobreza, mas pobre se tornava seu entorno; no momento em que mais interessava pelos caminhos retorcidos da loucura, sua família se afogava na demência.

Sua biografia juvenil parece seguir o esquema de um romance de Alexandre Dumas: conta-se que sendo um adolescente soube que seu pai ― um don juan déspota e dominante, que tiranizava a família apoiado nos costumes mediáveis que continuavam em vigor na ilha ― mantinha relações adúlteras com uma de suas sobrinhas. Sem pensar duas vezes, o jovem Luigi decidiu ir ao lugar onde diziam dos acontecimentos e esperar seu pai. Os encontros tinham lugar entre os muros de um convento onde a abadessa era uma irmã de seu pai (pode existir entorno mais romântico, no sentido byroniano do termo, para um filme?). Ao descobrir quem o aguardava, o pai não foi ao lugar. O jovem Pirandello, cego de ódio, atacou a moça que esperava o pai dele e cuspiu-lhe na cara. Alguns biógrafos não duvidam em destacar este episódio como o trauma necessário para que o jovem Pirandello perdesse para sempre a inocência e a confiança nos sentimentos. Naquele momento deixou de acreditar no amor, definitivamente.

A atração incestuosa não parecia exclusividade do pai, é verdade: o próprio Luigi Pirandello começou um romance com uma prima chamada Linuccia que preocupou tanto a família do futuro dramaturgo que decidiram que o jovem escritor continuaria seus estudos primeiro em Roma e depois em Bonn, com a única intenção de afastá-lo da moça durante um tempo. O plano funcionou; ali conheceu, como se diz, o único amor sereno, a bela alemã chamada Jenny Schulz-Lander com quem manteve sua relação mais livre e pura, um amor de pessoa para pessoa sem que nada de seu entorno pensasse em dotes, acordos, casamentos de conveniência. Vale a pena ler suas cartas da época. Aos rogos de que voltasse a terras alemães por parte de Jenny Schulz-Lander, um Pirandello que já sonhava com o amor à literatura e não com o das pessoas respondeu: “A paixão pela arte me fez preso e me possui. Já tenho, como qualquer bom poeta do século XIV, uma amante ideal: a Arte. E a amo como se fosse uma pessoa viva, me angustio por ela, a chamo, a suplico, a sinto quando ela, depois de me humilhar, me concede sua graça”.

O que foi contado até agora justifica a formação dessa força entre sentimental e trágica que movia o autor quando trabalhava o melhor do seu legado. Mas o segundo grande ingrediente de sua obra, a loucura, o tomaria totalmente no que virá depois. Pirandello não se casou finalmente nem com sua prima nem com a moça alemã que tanto sentia sua falta, mas sucumbiu às tradições daquela Sicília ancorada no passado e os interesses findou por levá-lo ser conduzido pelo pai num casamento de conveniência com a filha de um dos sócios capitalistas do negócio familiar, quem ele só conhecia de vista.

Com ela entrou em contato com o epicentro do desequilíbrio em si próprio e, sobretudo, soube através da sua companheira da energia poderosa e perturbadora da loucura. Pouco depois de casados escreveu para ela: “Em mim habitam duas pessoas. Tu já conheces uma; a outra, nem mesmo eu a conheço direito. Pode-se dizer que estou formado de um grande e um pequeno eu: estes dois senhores sempre andam em guerra um contra o outro. A qual dos dois mais amarás? Nisso vai consistir o segredo de nossa felicidade.” Uma grande crise econômica da família foi um dos gatilhos para a loucura de Antonietta, sua companheira, e, desde então, jamais se recuperou. Nos primeiros anos de sua demência permanecia com os de casa, presa ela própria de zelos de uma enferma. Primeiro atribuía seus medos a qualquer ameaça exterior: cada ida e vinda de Luigi era uma alternativa para uma crise. A partir de 1915, a questão se fez mais grave, quando Antonietta esqueceu as rivais exteriores e desenvolveu a mesma obsessão de cuidados com sua própria filha, Lietta. Em 1918 chegou a dizer para Pirandello que ele precisava escolher entre sua filha e ela, já que sua paranoia lhe fazia ver entre os dois uma relação incestuosa. Ao saber disso, Lietta quis o suicídio com uma antiga pistola ― situação que se filia como um novo recurso novelesco para a biografia de Pirandello ―, e depois jogando-se no Tibre. Por sorte, um vizinho a encontrou na rua e conseguiu demovê-la da atitude. Antonietta, por sua vez, foi internada numa clínica psiquiátrica em 1924, de onde não saiu viva.

Curiosamente, as grandes obras de Pirandello foram escritas nesses anos de contato com a loucura e o caos: Seis personagens à procura de um autor, Henrique IV, Cada um a seu modo. De misteriosas e inexplicáveis são as mentes dos criadores e as caldeiras da criação. O suicídio e a loucura estão presentes em boa parte das peças desta época, porque quando o autor verdadeiro escreve, o faz arrancando a alegria e a dor de sua própria vida.

Entretanto, existiu um amor a mais na vida de Luigi Pirandello. Quando já era um homem de quase sessenta anos, conheceu uma bela atriz de vinte e cinco para quem escreveu um bom número de obras, embora não as melhores. Chamava-se Marta Abba e se acredita que isso não passou de um amor platônico da velhice. O mestre se contentava com escrever enquanto contemplava a atriz seminua, recostada num divã. Ela chegou a triunfar na Broadway para abandonar, pouco depois, sua carreira nos Estados Unidos e viver uma vida privada de quase tudo no retorno à Itália.

Nas luzes da carreira de Pirandello está o Prêmio Nobel de Literatura que recebeu em 1934 e essas obras universais que deveriam ser celebradas e mais representadas. Além disso não podemos pensar apenas no seu teatro: não é nenhum exagero dizer que na deliciosa novela O falecido Mattia Pascal já está o realismo mágico. No lugar à sombra está a grande mancha na carreira de Pirandello, algo muito mais grave que seu medo de ser um menino trocado no berço da maternidade. Sua adesão ao fascismo italiano nos anos vinte. Pediu para integrar o partido em 1924 e foi nomeado por Mussolini presidente da Academia Italiana.

Pirandello demorou muito em encontrar qual era o lugar que a Sicília ocupava na sua vida. Descansou quando se deu conta de que seu conhecimento da ilha e de suas gentes não era um fardo inútil, mas lhe oferecia o contato com um microcosmo que depois precisava apenas recorrê-lo para completar sua inspiração de alcançar os tipos universais. Tardou em ver o que qualquer viandante na ilha percebe: que a Sicília é a essência do ser humano, uma essência ruidosa, impregnada de uma terra que sempre se move ― a séculos e séculos ― entre a eternidade e a miséria. A Itália levou tempo demais para entender Luigi Pirandello. Na estreia em Roma de Seis personagens à procura de um autor, a obra foi por unanimidade recusada aos gritos de “Bufão!”, “Loucura!” e coisas parecidas. Só em Paris que existiu alguém que soube ouvir a voz de seu teatro e reconhecê-lo.

A casa natal de Pirandello é agora um museu onde se pode encontrar de tudo: dos boletins escolares (não muito bons, não é de se esperar muito de um Prêmio Nobel) até uma urna com as cinzas do autor. Por isso esse casarão que se encontra na entre Agrigento e Porto Empedocle, isolado como se uma espécie de prisão agreste, tem tanto de museu como de mausoléu. Na minha única visita ao lugar, recordo a casa vigiada por um desses imensos pinheiros italianos que viram passar a história da Europa, mas me dizem que já não existe, que morreu pelo descuido de quem devia se ocupar dele e pela ação da própria aridez da ilha. Não fui o único que ficou atraído por aquele pinheiro e sentiu que ali estava uma espécie de símbolo daquela casa. Um amigo siciliano me conta que alguma inteligência local tem pensado em substituir a grande árvore que era sentinela eterno da casa do caos por uma de plástico. Nada me estranha. Pirandello, com seu teatro impossível, com suas novelas de vingança contra a realidade, anunciou a modernidade e a ainda a pós-modernidade. E já se sabe que na sociedade moderna nada é real. Tudo tem um substituto plástico.  

* Este texto é a tradução de “Una cuna en Sicilia”, publicado aqui, em Jot Down

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