Baudelaire e o poema em prosa, a invenção do instante

Por Agustín Fernández Mallo

Charles Baudelaire. Foto: Félix Nadar.


 
O poema em prosa, artefato que escapa a qualquer categorização mas é imediatamente reconhecido assim que é lido, tem uma vida curta, pouco mais de cento e cinquenta anos em comparação com os mais de dois mil que o poema métrico possui. Não que Baudelaire tenha sido propriamente o inventor da forma, mas foi ele quem o dotou do valor com que ainda hoje nos é servido. A primeira manifestação moderna da invenção apareceria em 1869, com um título que diz tudo, Petits poèmes en prose; enunciativo e direto, descritivo e explicativo, não há metáfora que auxilie esta frase e, se houver, é de natureza científica.
 
Baudelaire diz “pequenos poemas em prosa” da mesma forma que, por exemplo, o matemático Henri Poincaré, também francês, já tramava outro tipo de modernidade, que se concretizaria em sua famosa publicação Os novos métodos da mecânica celeste. Embora um apele à subjetividade total e o outro à objetividade científica, cada um quer apenas encontrar uma maneira de subverter o lugar-comum, antecipando uma Vanguarda. Quando numa época algo realmente novo aparece, ou se espalha para toda a esteira social ou desaparece.
 
Devemos, portanto, a Baudelaire não só a descoberta do poema como uma forma de arte absolutamente moderna, isto é, absolutamente subjetiva e urbana, mas também a formulação do mais estranho de seus filhos, o poema em prosa, com seu ideário, sua estética e sua forma como ainda conhecemos e praticamos hoje. Na época de Baudelaire, os gêneros estavam presos em si — como ainda acontece hoje — mas nunca foram questionados como tal, e é claro que era impensável que no seu âmbito uma nova forma pudesse aparecer, o mundo foi feito de uma vez por todas.
 
Baudelaire dota seus Pequenos poemas em prosa de um espírito conciso, mas não prosaico, com tendência à ironia, ao lúdico e a um pathos urbano; a ideia de que o futuro da poesia, se existe, tem que passar por essa ruptura com o molde clássico que afirmava falsamente que na arte existiam coisas como “o progresso” ou “a perfeição”. E tal revolução deve ser feita pelo flâneur, esse ser quase amorfo tão nitidamente asfáltico, que não conhece outra moeda senão o atraso nas maravilhas oferecidas pela modernidade recém-desabrochada, a tal ponto que seu único destino possível será um maníaco e abandono vicioso ao spleen.
 
Porque o instante é a medida do tempo na época moderna, todo passado é comprimido em menos de um décimo de segundo, e todo futuro nada mais é do que a projeção — o desdobramento fantasmático — desse momento presente. Mas o instante — como Walter Benjamin definiria mais tarde — é um “piscar de olhos”, não tem forma, por definição é incomensurável, por não ter conteúdo tem — daí o caráter niilista inevitável de tudo o que é instantâneo — exceto para o conteúdo que a subjetividade da mão que o escreve dá a esse fragmento. A forma mesmo do poema em prosa pede aquela rotundidade do instantâneo: ele se expressa como um bloco retangular, um quadrado de letras de tinta, mas um cubo de sentido, com sua espessura e densidade, que não vem do desenho ou da forma métrica mas da força com que um mundo inteiro chamado eu é comprimido e expresso em apenas um piscar de olhos.



Quando Baudelaire se aproxima da invenção desse gênero, o objetivo é esquecer a Natureza e suas imitações artísticas, portanto é lógico que ele tenha inventado uma forma sem forma. Como não ia chamar seu livro simplesmente de Pequenos poemas em prosa: privilegiando a explicação do momento à retórica do tempo histórico. O poema em prosa já nasce, portanto, como bloco unitário e ao mesmo tempo com uma profusa e selvática rede interna que multiplica os significados, semântica que avança por mecanismos diversos tanto do poema tradicional quanto da prosa narrativa. Esses novos poemas nascem de uma compactação que busca seu próprio fôlego, muito diferente tanto da respiração ofegante do poema em verso quanto da lógica administrativa da prosa convencional; a quadratura de um círculo que, no entanto, forma quadratura.
 
Essa nova música do poema é muito semelhante ao que Flaubert exigia: “uma prosa rítmica como o verso e precisa como a linguagem da ciência”. Como nos lembra Félix de Azúa em seu clássico, Baudelaire, o artista da vida moderna, o poeta francês acaba realizando o colapso do que Foucault chamaria de “guarda-roupa neoclássico ou arquivo ilustrado”, porque, lembre-se, não estamos falando de prosa poética - um estilo que nada tem a ver com a poesia e sim com os maneirismos das formas — mas, precisamente, o seu oposto: um verdadeiro ponto zero de algo que estava por vir, assim como Borges fez, em seus contos, meio século mais tarde com a prosa.
 
Pequenos poemas em prosa é um livro que, nos últimos anos, Baudelaire prefere chamar de Le Spleen de Paris. Talvez mais desiludido e menos vital, este outro título combina o tédio produto do constante desejo de novidades absolutas — físicas e tecnológicas — que findam não satisfazendo o sujeito moderno, com o do dândi que vagueia pela cidade, abandonado ao passeio sem fim e antecipando a — em termos políticos opostos ao passeio — deriva situacionista que chegaria pela mão de Guy Debord na segunda metade do século XX. Na verdade, o destino é caprichoso e os opostos são sempre identificados em algum lugar, e assim Baudelaire prefigura seu antagonismo.
 
Terminemos com as palavras do poeta. Poema em prosa e cidade em um único estabelecimento lógico: “Qual de nós que, em seus dias de ambição, não sonhou o milagre de uma prosa poética, musical, sem ritmo e sem rimas, tão macia e maleável para se adaptar aos movimentos líricos da alma, às ondulações do devaneio, aos sobressaltos da consciência. É, sobretudo, da frequentação das enormes cidades e do crescimento de suas inumeráveis relações que nasce esse ideal obsessivo”.
 
* Este texto é a tradução de “Baudelaire y el poema en prosa, la invención del instante”, publicado aqui, em El Cultural.

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