Três séculos de Giacomo Casanova, a pena mais indócil

Por Diego Malpede


J.H.W. Tischbein. Retrato de G. Casanova (detalhe)


No dia 2 de abril de 2025, completaram-se 300 anos que Giacomo Girolamo Casanova nasceu no coração de Veneza. Ele provavelmente nasceu na Via Malipiero, ao lado da Igreja de São Samuel e antigamente chamada de “della Commedia”, em uma família de artistas de teatro. A mãe era atriz e o pai era ator e dançarino, mas o próprio Casanova e vários estudiosos indicam que seu verdadeiro pai era o nobre veneziano Michele Grimani. Foi criado pela avó e desde a adolescência estudou direito na Universidade de Pádua e depois religião, com o objetivo de se tornar abade.
 
Que seu nome ainda seja usado hoje para descrever alguém interessado apenas em conquistar mulheres constitui, se a linguagem pode ser enganosa, um grande erro, ou pelo menos um mal-entendido; de qualquer forma, a palavra em questão é, sem dúvida, o legado mais trivial do nosso homem. Casanova não foi apenas um indivíduo complexo, único e multifacetado, com múltiplas vocações, conhecimentos e habilidades, mas as memórias nas quais ele registrou essa vida tão peculiar e ao mesmo tempo tão universal, em contato constante com tudo e todos, fizeram dele o maior cronista do século XVIII.
 
Historiador, advogado, dramaturgo, clérigo, conselheiro de príncipes, reis e papas, espião, poeta, inventor, empreendedor, matemático, jogador, médico vocacional, químico ou alquimista, economista, cabalista, esotérico, gourmet completo e violinista, Casanova foi um dos homens mais livres, curiosos e alegres da história ocidental. Nunca parou mais de viajar por dezenas de grandes e pequenas cidades europeias, reinos, castelos, portos, salões, palácios, postos postais, hospedarias e estalagens, em todos os tipos de transporte, guiado pela intuição, pela vontade de aprender e pelo desejo febril de passar de uma novidade para outra.
 
Suas memórias, intituladas A história da minha vida, "valem menos pelo relato de suas conquistas femininas (aliás, partes delas se tornam tediosas pela repetição) do que pelo quadro histórico macro e micro da Europa que ele vive e sobre a qual nos conta, pelas milhares de observações sobre os costumes e as instituições dos diversos países que o incansável viajante visita. Tudo o interessa, tudo o diverte, e não apenas a anatomia secreta das mulheres”, segundo o escritor francês Dominique Fernandez. Ou nas palavras de Leonardo Sciascia: “Casanova foi primeiro um escritor, depois um aventureiro e, finalmente, um sedutor” (vale dizer, no entanto, que Giacomo ama e respeita as mulheres de todas as idades e classes sociais, e continua sendo um amigo fraternal delas por anos mesmo depois do fim de seus casos; ele é o anti-Don Juan, aquele obsucuro trapaceiro espanhol, seu oposto mais perfeito: luminoso, charmoso e italiano).
 
É impossível condensar suas inúmeras aventuras, e somente uma longa leitura das 4.000 páginas de sua História oferecerá o quadro completo. O livro começa com um longo prólogo, que inclui um racconto de seus ancestrais provavelmente inventados e um relato de sua infância e adolescência em Veneza e Pádua. Então começa a aventura: Nápoles e Roma, s Corfu veneziana, Constantinopla: “Não há espetáculo tão belo em nenhum lugar do mundo.”
 
Tudo é movimento. Em 1746, ele foi adotado por três nobres venezianos que o ajudaram com suas andanças por muitos anos depois que ele salvou um deles da morte, o senador Matteo Bragadin, por meio de truques cabalísticos. A vida de Casanova, em meio a encontros românticos, festas, carnavais e atividades ocultistas, torna-se tensa, e ele começa a ser observado pelos inquisidores de Veneza, uma cidade governada por conservadores políticos e religiosos que permitem vícios e excessos particulares, desde que não saiam do controle. Depois de viajar por várias cidades italianas, ele chegou a Paris pela primeira vez, onde ficou por dois anos. Foi então incorporado à Maçonaria em Lyon e mais tarde visitou Praga, Viena e Dresden.
 
De volta a Veneza, mantém casos escandalosos com freiras do convento de Murano, em cumplicidade com o abade de Bernis, embaixador da França, no ridotto deste último (os ridotti eram pequenos espaços que frequentemente serviam como clube ou cassino, onde os venezianos se reuniam, especialmente à noite, e onde máscaras e encontros amorosos eram comuns). Em julho de 1755, o desastre aconteceu: Casanova foi feito prisioneiro, sem dúvida por posse de obras proibidas e libertinagem, e após meses de suplício nas piores condições, em novembro de 1756 ele completou sua obra-prima: a fabulosa e funambulesca fuga andando na corda bamba pelos tetos da Câmara de Chumbo, cuja cela era abrigada no sótão do Palácio Ducal, e isso criaria sua lenda por toda a Europa.
 
Ele chega a São Petersburgo e aconselha Catarina da Rússia a adotar o calendário gregoriano. De volta a Paris, fundou a Loteria Nacional, montou uma fábrica de tecidos e seduziu a riquíssima Madame d’Urfé, uma senhora peculiar que, como ele, gostava do ocultismo e a quem ele prometeu a imortalidade por meio da transmigração para uma criança. Na França dessa época, também conhece outro colega alquimista, o Conde de Saint Germain. Casanova se junta à corte de Luís XV; conhece, entre outros, D’Alembert, Rousseau e Benjamin Franklin, o primeiro embaixador dos nascentes Estados Unidos, que fascina viandante italiano com seu conhecimento sobre balões de ar quente. Passa três dias entre amor e controvérsias com Voltaire em Ferney, discutindo política e literatura. Percorre a Inglaterra e, em Londres, entra na corte do Rei George III, onde padece um grande amor frustrado por Marianne de Charpillon que quase o leva ao suicídio. Salta para Berlim, onde se encontra com Frederico II, o Grande; depois, a Polônia, onde duela com um nobre e outra vez precisa fugir; Holanda, onde está envolvido em espionagem, maçonaria, mercado de ações e patinação no gelo. Passa pela Madri e Barcelona então repletas de aventuras e encontros românticos, incluindo outra pena de prisão na cidade catalã; na Provença, onde conhece um casal aventureiro, Giuseppe Balsamo, Conde de Cagliostro. Acaba na corte imperial em Viena e se torna secretário do embaixador veneziano Foscarini; na Suíça, perto de Zurique, quase se tornou monge. O catálogo de viagens e peripécias não tem fim.
 
Sempre, nessa fuga sem fim, sua companhia era sempre marcada pelos livros (“sem o sustento dos bons livros, a comida ruim me teria matado”) e de suas anotações de viagem, que nunca deixou de carregar e que mais tarde dariam suporte para a escrita da História da minha vida: “Minha vida é minha matéria. Minha matéria é minha vida. […] Membro do universo, falo com o ar e imagino que estou prestando contas do meu trabalho, como um mordomo presta contas ao seu senhor antes de partir.”
 
Amante fervoroso de Horácio, Ariosto, Aretino e Petrarca, escreveu contos, polêmicas e diálogos, obras sobre geometria, história, filosofia, moral, teologia e literatura, sobre a história de Veneza e da Polônia e sobre a Revolução Francesa; traduziu a Ilíada para o italiano; em Praga, ele colaborou com Mozart e Da Ponte antes da estreia de Don Giovanni: é possível até que tenha participado da maior ópera da história. Publicou também, com pouco sucesso, um romance complexo, longo e lisérgico que prenunciou a ficção científica moderna, o Icosameron, uma viagem ao centro da Terra, onde vive uma civilização utópica de pequenos seres hermafroditas, perfeita e paralela à humana, leitura segura para Júlio Verne. A editora francesa Laffont, aliás, iniciou 2025 tendo no catálogo depois da publicação dos três tomos da História da minha vida, uma enorme coleção das obras de Casanova no magnífico volume Casanova, d'une plume indocile.1
 
Depois de centenas ou milhares de negócios e empreendimentos com mais fracassos do que sucessos, planos e utopias de curta duração, amores e desilusões, perigos, cercos, emboscadas, decepções, fortunas que vêm e vão, as memórias terminam em Trieste, entre 1774 e 1776. É nesta cidade que obteve o tão esperado perdão do governo veneziano, que lhe permitiu retornar à cidade natal em troca de se tornar um espião a seu serviço, salvaguardando os bons costumes e monitorando as manobras austríacas no Vêneto e na Dalmácia. Se Casanova começou a escrever suas memórias em 1791, por que a história termina cerca de 15 anos antes? Duas hipóteses: a primeira é que ele considerava que em 1776 o fogo sagrado de sua juventude havia se apagado e não valia a pena contar muito mais; a outra, mais prosaica, é que ele não quis revelar ter atuado como informante em acontecimentos posteriores àqueles anos.
 
Depois de um breve período na Sereníssima e outro romance que quase o converteu em marido (uma boa moça, Francesca Buschini, com quem vive em Barbaria delle Tole), ele se torna, sem sucesso, editor e empresário teatral. Arriba novamente, continuando suas aventuras em busca de salvação financeira e cada vez mais consciente do cerco que impõe a velhice. Em setembro de 1783 — quão perto estava a Revolução! — na casa do embaixador veneziano em Paris, Daniele Andrea Dolfin, conheceu o jovem conde Josef Karl von Waldstein, membro da nobreza tcheco-alemã e amante das “ciências da magia”, nas próprias palavras de Casanova. Fascinado e também motivado pela fraternidade maçônica, o conde contrata Giacomo como bibliotecário em seu castelo em Duchcov, Boêmia. Ele aceita e será aí, importunado e ridicularizado pelos funcionários do castelo, que começa a escrever suas memórias, recriando alegremente sua vida: “Nada poderá impedir que eu tenha me divirtido”.
 
Somos eternamente gratos ao conde Waldstein por sua hospitalidade providencial e pela segurança financeira e paz de espírito que proporcionou ao nosso herói. “A tranquilidade é o mais precioso dos tesouros”, argumenta Giacomo, visivelmente cansado. O castelo pode ser visitado, está a 100 quilômetros ao norte de Praga. Embora seja um museu tão belo quanto glacial, e alguém pode imaginar o tédio que terá passado o velho Giacomo através do contraste entre o vivido com o mausoléu onde passava suas horas; foi finalmente neste lugar e em meio a esse tédio que pôde recriar a sua vida, com sua própria pena, em um francês italianizado que o tornará literariamente universal, alcançando a sua redenção por inúmeros pecados (alguns são suspeitos de serem muito graves, como o incesto, e outros nem tanto, como a sodomia) e experimentar um último e prolongado prazer: “Quando me lembro dos prazeres que vivi, renovo-os e rio das dores que sofri, e que já não sinto.”
 
A história de suas memórias originais é, em si, material para um romance. O manuscrito foi recebido por um sobrinho de Giacomo que o acompanhou em sua agonia. O material foi publicado pela primeira vez em alemão com extensa censurada imposta pelo editor Brockhaus em 1822, e depois numa versão ainda mais modesta e terrivelmente criativa foi publicada em francês pelo tradutor Laforgue. Em 1834, elas foram incluídas no index de livros proibidos. Centenas de edições de todos os tipos se sucederam na Europa, e foi somente em 1960 que a versão completa apareceu em francês, em um projeto conjunto entre Brockhaus, que preservou o manuscrito (que sobreviveu ao bombardeio de Leipzig na Segunda Guerra Mundial), e a editora francesa Plon. Em 2010, após negociações discretas e complexas, a Biblioteca Nacional da França comprou o manuscrito por sete milhões de euros, com a colaboração de um doador anônimo. As edições de Laffont (1993) e La Pléiade (2013) são altamente recomendadas.2
 
Veneza celebrou seu filho pródigo durante o recente carnaval com festividades e magníficos espetáculos de água, luz e música. Em junho a Universidade Ca’ Foscari e a Fundação Carlo Cini realizam um grande simpósio — “Casanova no tempo: 1725-2025”; a primeira instituição, aliás, edita a excelente Revista Casanoviana.  Os devotados estudiosos de Giacomo formam uma legião, uma antiga comunidade de pesquisa que nunca poderá saber se o que Casanova relata realmente aconteceu e devota apaixonadamente a atividade de imaginar o que poderia ter acontecido. De fato, a pergunta é repetida diversas vezes: tudo o que esse homem nos contou em suas memórias é verdade? Se assim fosse, todo o interesse literário teria se perdido: “Poderia muito bem ter sido um grande documento para historiadores e sociólogos. O surpreendente é que, em sua forma original, Histoire de ma vie é, além de um documento singularmente importante sobre a vida europeia no século XVIII, também uma obra-prima literária, uma história que comove, exalta, entretém, inspira, encanta e excita tanto a loucura quanto a razão”, nos conta de Azúa.
 
Casanova é inesgotável, infinito e contraditório. Embora fosse esplendidamente moderno, uma personificação perfeita da Idade da Razão e do Iluminismo, ele também personificava a doçura da vida do Antigo Regime e sempre se opôs à Revolução Francesa, que viveu com enorme desgosto. Ele fez do humor, do prazer e da liberdade um modo de vida que, nestes tempos reacionários e autoritários, de extremismo simétrico esquerda-direita, de intolerância e Dark Enlightenment, se torna mais relevante do que nunca.
 
Maçom, livre-pensador, esotérico, libertino, jogador, despudorado e fabulista, ele também era um romântico avant la lettre, sentimental e crente, com uma confiança persistente em Deus: “Considero que minha vida foi mais feliz do que infeliz, e depois de ter dado graças a Deus, a causa de todas as causas e diretor soberano, não sabemos como, de todas as combinações, me rejubilo.”
 
E nós também! Feliz tricentenário, caro Giacomo! Saúde!3
 
Notas da tradução
1 D’une plume indocile reúne ensaios de filosofia, história e política, moral e literatura; desta seção, textos dedicados a Voltaire, Rousseau e Bernardin de Saint-Pierre. É uma edição crítica e anotada por vários especialistas interessados em redescobrir o pensamento de Casanova produzido em francês e italiano, incluindo vários materiais até então desconhecidos dos leitores.
 
2 A José Olympio chegou a publicar em dez tomos o que ficou traduzido como Memórias de G. Casanova de Seingalt escritas por ele mesmo. A tradução de Caio Jardim incluiu prefácio de Agrippino Grieco. Desde então, o livro não mereceu nova tradução. História da minha fuga das prisões de Veneza e O duelo são dois outros livros de Casanova publicados entre nós em edições mais recentes.
 
3 Entre as publicações mais recentes que podem ajudar o leitor interessado na vida e obra de Giacomo Casanova estão: a biografia Casanova: a vida de um gênio sedutor, de Laurence Bergreen; e Casanova. Muito além de um grande sedutor, de Ian Kelly.

 
* Este texto é a tradução livre para “300 años de Casanova, la pluma más indócil”, publicado aqui, em Letras Libres.  

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