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Mostrando postagens de 2025

Retrato de uma jovem em chamas: nenhuma mulher é uma ilha

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Por Ana Rosa Gómez Rosal Drama lésbico. Romance homossexual. Despertar lésbico. Olhar masculino/ feminino ( male / female gaze ). Feminismo. Amor feminino. Desejo feminino. Só mulheres. Mulheres sozinhas. Poderíamos enumerar categorias do Wattpad, sites pornográficos projetados para aliviar os clientes mais sensíveis e sensibilizados em relação às festividades de 8 de março e 28 de junho, ou exatamente o oposto. Podem ser termos da lista de palavras censuradas pelo e durante o governo Donald Trump, ou as buscas recorrentes no Google por Hazte Oír e Abogados Cristianos (Advogados Cristãos) para cerrar os punhos com força e proclamar o fim das famílias heteronormativas ultraconservadoras, ou seja, o apocalipse.¹   E, bom, sim, talvez muito do que foi dito acima seja verdade, mas também são as expressões mais repetidas nas críticas e resenhas internacionais de Retrato de uma jovem em chamas , o filme de 2019 dirigido e escrito por Céline Sciamma. E é compreensível. É fácil (e cômodo) ...

Nada mais do que isto — os aprovisionamentos literários de Hélvio Tamoio

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Por Lucas Paolillo   Enfim, como outros tantos rincões, em Tamoio, os trabalhadores, os moradores, as criaturas em estátuas e memórias foram cobertas pelo tapete verde na imensidão de canaviais que absorvem o interior paulista. Tudo de uma maneira rápida e nada silenciosa. A usina Tamoio foi engolida pela ventania atroz de um tipo de desenvolvimento da produção da vida que não leva em conta a criatura humana. Quem sabe, como o engenho Fortaleza e outros sítios adquiridos por Morganti para a formação da agroindústria. No entanto, nessa terra de passagem nos dispomos a admitir a promessa de outros renascimentos. A busca de outras terras onde pudéssemos expor todas as nossas potências. Não perdendo, nem nos momentos de maiores arrasamentos, a miragem do porvir.   — Hélvio Tamoio, “Algumas considerações afinam” (2008) Foto: Silvana Simão     Nos dias que correm, Hélvio Tamoio continua a buscar a produção crítica consciente. Continua também, junto a outros fazimentos e aç...

De Thomas Bernhard

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Por Daniel Rodríguez Barron Thomas Bernhard. Foto: Erika Schmied.   Ler Thomas Bernhard é um esforço que só podemos empreender uma vez a cada dois ou três anos. A maioria dos leitores — incluindo os críticos — conjectura que sua maior dificuldade reside em seus traços estilísticos: suas obras se desdobram em longos parágrafos de orações subordinadas que se transformam em páginas inteiras, que por sua vez atingem o tamanho de capítulos e, frequentemente, em livros inteiros. A essa exigência, que nos obriga a mergulhar em um fluxo em que ora nadamos contra a corrente, ora estamos francamente à beira do afogamento, deve-se acrescentar a repetição incessante e estridente de palavras e até frases inteiras, quase sempre ofensivas, sediciosas ou mórbidas.   Proponho que aí reside a verdadeira dificuldade com Bernhard: ele nos aniquila, implacável e sem descanso; não podemos segui-lo sem nos envergonharmos de nossa existência. E praticamente nenhuma outra literatura faz isso por nós....

Seis poemas dos Diários do Exílio, de Yannis Ritsos

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Por Pedro Belo Clara     I. (27 de Outubro de 1948)   Aqui os espinhos são tantos — espinhos castanhos, espinhos amarelos, ao longo de todo o dia, espinhos até no sono.   Ao saltarem o arame farpado, as noites deixam para trás pequenas tiras da saia.   As palavras que outrora nos pareceram belas perderam a cor, como o colete de um velho num baú, como um pôr-do-sol embotado nas vidraças.   Aqui as pessoas caminham com as mãos nos bolsos ou gesticulam por vezes como se afugentassem uma mosca que poisa uma e outra vez no mesmo ponto no rebordo do copo vazio ou dentro dele um ponto tão indefinido e persistente quanto a sua recusa em reconhecê-lo.     II. (29 de Outubro)   O que dormimos é pouco: não chega. Toda a noite ressonam os exilados — rapazes cansados, tão cansados.   Lá fora estão as estrelas — estrelas enormes estrelas rapadas cujo cabelo cresce selvagem como da cabeça de São João Baptista ou do nosso Panayótis. Há também peque...

Boletim Letras 360º #649

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DO EDITOR   Na aquisição de qualquer um dos livros pelos links ofertados neste boletim, você tem desconto e ainda ajuda a manter o Letras . Adélia Prado. Foto: Ana Prado   LANÇAMENTOS   Doze anos após o lançamento de sua última obra, Adélia Prado, vencedora dos prêmios Camões e Machado de Assis, retorna à poesia com O jardim das oliveiras , uma reunião de 105 poemas inéditos .   Após doze anos sem publicar um livro inédito desde o comovente Miserere (2013), Adélia Prado retorna ainda mais profunda e madura em O jardim das oliveiras , um livro que é ao mesmo tempo síntese e reinvenção de sua obra, um mergulho poético na aridez e na transcendência, no mistério e na lucidez. Os poemas aqui reunidos retomam temáticas vivas na obra da autora, como o conflito essencial entre luz e sombra, fé e dúvida, poesia e silêncio. Em versos de grande força simbólica, o sagrado e o cotidiano se entrelaçam com rigor e desatino. A poeta elabora uma reflexão radical sobre a origem da l...

Trakleanas

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Por Eduardo Galeno Paul Klee. Angelus Descendens . 1918. Heidegger foi um dos que aproximaram poesia e pensamento . Sim. Provável que Trakl a tenha procurado. Nesse motivo de interação, a suspensão da língua dá o seu modo de aparecer. E o que chegam? As tentativas e as frustrações.   Viciado em cocaína e ópio, farmacêutico formado e em pleno rebuliço da guerra de 14, espreitava também sua irmã; significava a total adesão ao lusco-fusco existencial.   Entrar em Trakl é tão simples quanto lê-lo: imagens límpidas, mas igualmente fogosas. Enjambement certeiro. O universo é um embarcar na interioridade e, sempre salvaguardando a palavra, ecoa a risca entre o verbo e a estrela. Absorve.   Lemos Salmo e, infiltrados na floresta escura, nas figuras (que servem a ele como empecilhos no papel de luta contra a floresta) nos vemos deslocantes da ideia sobre a unidade da escuta. Georg fora destinado a cumprir o eon do declínio pelas esferas que o construíam: a luz, a taberna,...

Sodomita, de Alexandre Vidal Porto

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Por Pedro Fernandes Alexandre Vidal Porto. Foto: Alexia Fidalgo. O livro de Alexandre Vidal Porto publicado em 2023 integra a vasta linhagem dos romances interessados por algum aspecto do período colonial brasileiro, sem dúvidas, um dos mais fascinantes e também desafiadores para o imaginário de um escritor, porque exige dele, não apenas a necessária criatividade do fabulador, mas também uma pesquisa histórica abrangente a fim de não incorrer em generalizações, incongruências ou anacronismos, sobretudo agora em que se predomina entre os nossos romancistas uma leitura da história a contrapelo.   Sabemos que nos primeiros séculos de presença portuguesa essas terras que se queriam de Santa Cruz serviram de cativeiro para muitos dos condenados pela Coroa ou pela Igreja e entre essa leva estiveram homens acusados do crime de sodomia. Luiz Mott — talvez o nosso mais importante pesquisador nesse assunto, autor, dentre outros de um dicionário fruto de um levantamento em documentos oficiai...