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Mostrando postagens de 2025

Manhã e noite, de Jon Fosse

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Por Sérgio Linard  Jon Fosse. Foto: Christoph Hardt Quando resenhei para este blog o excelente A casa de barcos , do norueguês galardoado de modo muito justo com o Nobel de literatura de 2023, indiquei que aquela seria uma boa obra para se ter um primeiro contato com a escrita de Fosse. Àquela época, dispúnhamos de poucas obras traduzidas do autor, sendo É a Ales e Melancolia (essa em edição esgotada) algumas dessas poucas.  Hoje, como era de se esperar, o autor ganhou algumas casas editoriais novas e sua obra passou a ser mais frequente e comum entre os livreiros. De 2023 para cá, temos notícias de sua Trilogia , de Brancura , de uma antologia de poemas e o anúncio da tradução de seu monumental romance Heptalogia ; também algumas de suas peças já estão disponíveis para o leitor brasileiro. Em pouco tempo, Jon Fosse saiu de uma certa obscuridade do lado de cá do Atlântico e passou a uma popularidade que somente um prêmio desta monta poderia fazer. Sorte a nossa.  Dentre...

Anseios e cobranças em A contagem dos sonhos

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Por Vinícius de Silva e Souza Chimamanda Ngozi Adichie. Foto: Jared Soares Dez anos depois, Chimamanda Ngozi Adichie cumpre, enfim, um retorno à ficção, e não apenas, mas à forma com a qual se fez reconhecida: seus volumosos romances. Sim, pois desde Hibisco roxo , nenhuma obra da autora possui menos de 300 páginas, o que a coloca na posição de romancista de mão cheia, sempre disposta a entregar trabalhos complexos e extremamente articulados, em temática, personagem e enredo-narrativa.  Depois de Americanah e seu longo passeio pelos anos da vida de Ifemelu (e também de Obinze), A contagem dos sonhos se debruça sobre quatro protagonistas, todas conectadas entre si: Chimaka, uma mulher “bem de vida”, que vive a escrever livros de viagem e tem sua rotina totalmente revirada com a pandemia da covid-19; Zikora, amiga advogada que passa por uma gravidez indesejada e um parto solitário; Omelogor, prima de Chimaka, uma mulher autônoma e também bem sucedida; e por fim, Kadiatou, a empregad...

Amores brutos e Os esquecidos

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Por Daniel Krauze  Tantos anos depois, é fácil esquecer o impacto que Amores brutos (2000) após vencer o Prêmio da Crítica em Cannes. O filme de estreia de Alejandro González Iñárritu parecia descompassado com o seu entorno, como se uma obra da sua magnitude — em ambição e realização — não pudesse sair de um país que ainda saboreava o mel do modesto Cinema Novo Mexicano. Desde a primeira cena, o longa-metragem sacudia o público como alarme de um despertador. Ao longo de suas mais de duas horas e meia de duração, o filme exibia um ritmo narrativo só fora visto antes no extraordinário O beco dos milagres (1995), de Jorge Fons.  Era um filme que se atrevia a mostrar uma visão única da vida chilanga,¹ tentando abranger todas as classes sociais em um tríptico moderno. Guiada pelo simbolismo eficaz dos cães como reflexos de seus donos, a história de Guillermo Arriaga brincava com o tempo e o espaço, visitando as vidas de Octavio (Gael García), um rapaz de classe média baixa determ...

Sappho

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Por Eduardo Galeno Pois nenhuma relação se forma se o pensamento não a produz. — Simone Weil Safo, 470 a.C. Prescrever   Na seção XV do Peri hypsous , de pseudo-Longino, se introduz, pelas citações que o acompanha, o juízo da aparição ( phantasia ). Ali ele apresenta as condições mínimas para o estabelecimento do que poderíamos chamar de “presença ausente”. Claro que, em outros termos, isso significaria um modo de traduzirmos o distanciamento no vão da percepção e do objeto. Ou: a estrutura residente na transferência entre a poesia e o evento. No caso, há a explicação, sob o exato da efusividade do crítico literário — para usarmos um anacronismo —, de toda uma esfera de se fazer sublime . Demonstrações espertas e fincadas, modelos delimitados (uma pitada de Eurípides, outra de Ésquilo), alguns reparos, algumas notações. O tratado escolheu esse tipo de polêmica por um simples motivo. Certamente, a astúcia do seu autor estava na tentativa de deslocar a mimesis , ou imitação, do âmbi...

O não-dito no romance Asfalto selvagem

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Por Amanda Fievet Marques Nelson Rodrigues Foto: Adalberto Diniz As personagens de Nelson Rodrigues, que encontramos sempre arremessando-se umas sobre as outras, crispadas, hirtas de medo ou de fé, trôpegas, sôfregas, são frequentemente tomadas por paixões. Paixões terríveis, capazes de levar à ruína e à loucura; paixões nostálgicas, em que se rompem os diques do passado e o presente é súbito inundado de desejo; paixões de domínio, paixões religiosas, paixões incestuosas, pervertidas, obsessivas, transgressoras. No romance Asfalto selvagem , publicado inicialmente como folhetim no jornal Última hora , e depois em dois volumes, em 1961, pela editora J. Ozon, há toda uma proliferação e dramatização das paixões humanas, essas comoções que tocam “até as raízes do ser” (Rodrigues, 1994, p. 43), em seu longo e variado espectro.* O notável, no entanto, é que, o mais das vezes, a consumação dessas paixões se exprime por um não dito, uma elipse, uma nomeação indireta.  Na primeira parte,...

Cinco poemas de “Altitudes e Extensões (1980 – 1984)”, de Robert Penn Warren

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Por Pedro Belo Clara  (Seleção e versões)* Robert Penn Warren. Foto: Bettmann LIMITE MORTAL Vi o falcão subir o vento no ocaso sobre o Wyoming.  Ergueu-se da escuridão das coníferas, passando impiedosas Cristas cinzentas, passando a faixa branca, entrando no crepúsculo  De luz onírica e espectral acima da última pureza dos farrapos de neve. A oeste, a cordilheira Teton. Picos nevados terão em breve Um perfil escuro a quebrar constelações. Para lá de que altitude Paira agora o negro ponto? Para lá de que distância olhos doirados Verão novas lonjuras erguerem-se, para marcar um último rabisco de luz?   Ou, tendo provado a finura da atmosfera, será que  Plana sem se mover, numa visão que falece antes De saber que aceitará o limite mortal, E deixar-se ao grande círculo descendente que restaurará A respiração da terra? Da rocha? Da podridão? De outras Coisas tais, e o negrume dum qualquer sonho que agarramos? ESPERANÇA Na orquidácea luz do entardecer, Observa como, d...

Boletim Letras 360º #662

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DO EDITOR Saibam que na aquisição de qualquer um dos livros pelos links ofertados neste boletim, você pode obter um bom desconto e ainda ajuda a manter o Letras. A sua ajuda é essencial para que este projeto permaneça online. Eugène Ionesco. Foto: Pohlmann LANÇAMENTOS Dois novos livros ampliam a presença do teatro de Eugène Ionesco entre os leitores brasileiros.  1. Encenada pela primeira vez em 1953, Vítimas do dever  é a peça em que Ionesco satiriza o teatro realista ao colocar um inspetor diante de um homem comum, num interrogatório que rapidamente mergulha no absurdo. A busca por um nome esquecido leva o protagonista a questionar sua própria identidade, num jogo de linguagem e poder que escancara a falência do discurso lógico e das convenções dramáticas. O livro tem tradução de Bruno Brandão Daniel, que assina também o texto de prefácio e posfácio mais notas de Gilles Ernst.  Você pode comprar o livro aqui . 2. A cantora careca  marcou a estreia de Ionesco é...

A ficus e a ficção especulativa de “Floresta é o nome do mundo”

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Por Afonso Junior Mas, naquele tempo, enquanto esteve intacta, tinha montanhas altas e encristadas de terra, e, quanto às planícies a que agora chamamos solo rochoso, tinha-as cheias de terra fértil. Tinha também numerosas florestas nas montanhas, de que ainda hoje há evidências manifestas, pois é nestas montanhas que atualmente existe o único alimento para as abelhas, e não há muito tempo que se cortava árvores nesse local para construir os tetos das grandes edificações — coberturas essas que ainda estão conservadas... Ursula K. Le Guin. Foto: Benjamin Reed No seu diálogo Crítias (111c), Platão já relata um tempo passado (uma Era de Ouro) em que as florestas da Ática viviam livres. Esses dias, um condomínio cortou uma árvore de 70 anos, cuja copa (sem manutenção da prefeitura) atravessava a rua até o prédio da frente, porque todos pagaram indenização depois que uma pessoa foi atingida pela queda de um galho. Eu, no começo, acreditei que a ficus elástica era uma ameaça ao mundo civil...

O retorno d’O mameluco, de Amélia Rodrigues

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Por Renildo Rene Na vida, como na arte, as peripécias caminham às vezes indiscretas, silenciosas, até que se revelem profundamente desiguais para impedir o trajeto feliz. Mesmo após ter se destacado em vida, por suas contribuições à educação e à imprensa do recôncavo baiano, Amélia Rodrigues teve o seu primeiro romance publicado em livro apenas em 2022, quase um século após sua morte. Agora, O mameluco , que estava restrito à sua publicação periódica no jornal Echo Sant’Amarense (onde os capítulos foram publicados em 1882), consegue edição exclusiva — e o seu panorama cálido sobre a nação, remanescente de uma mente que pensa a identidade civil dentro de um projeto autoral, torna-se mais tangível ao leitor brasileiro.   Nesse livro que chega a nós sob esforços admiráveis da pesquisadora Milena Britto e do selo editorial paraLeLo13S, há um quadro de personagens que se inicia com o viúvo português Paulo de Avilez e a sua filha Ramira, educada nos princípios do evangelho de moça pura ...