Postagens

Manhã e noite, de Jon Fosse

Imagem
Por Sérgio Linard  Jon Fosse. Foto: Christoph Hardt Quando resenhei para este blog o excelente A casa de barcos , do norueguês galardoado de modo muito justo com o Nobel de literatura de 2023, indiquei que aquela seria uma boa obra para se ter um primeiro contato com a escrita de Fosse. Àquela época, dispúnhamos de poucas obras traduzidas do autor, sendo É a Ales e Melancolia (essa em edição esgotada) algumas dessas poucas.  Hoje, como era de se esperar, o autor ganhou algumas casas editoriais novas e sua obra passou a ser mais frequente e comum entre os livreiros. De 2023 para cá, temos notícias de sua Trilogia , de Brancura , de uma antologia de poemas e o anúncio da tradução de seu monumental romance Heptalogia ; também algumas de suas peças já estão disponíveis para o leitor brasileiro. Em pouco tempo, Jon Fosse saiu de uma certa obscuridade do lado de cá do Atlântico e passou a uma popularidade que somente um prêmio desta monta poderia fazer. Sorte a nossa.  Dentre...

Anseios e cobranças em A contagem dos sonhos

Imagem
Por Vinícius de Silva e Souza Chimamanda Ngozi Adichie. Foto: Jared Soares Dez anos depois, Chimamanda Ngozi Adichie cumpre, enfim, um retorno à ficção, e não apenas, mas à forma com a qual se fez reconhecida: seus volumosos romances. Sim, pois desde Hibisco roxo , nenhuma obra da autora possui menos de 300 páginas, o que a coloca na posição de romancista de mão cheia, sempre disposta a entregar trabalhos complexos e extremamente articulados, em temática, personagem e enredo-narrativa.  Depois de Americanah e seu longo passeio pelos anos da vida de Ifemelu (e também de Obinze), A contagem dos sonhos se debruça sobre quatro protagonistas, todas conectadas entre si: Chimaka, uma mulher “bem de vida”, que vive a escrever livros de viagem e tem sua rotina totalmente revirada com a pandemia da covid-19; Zikora, amiga advogada que passa por uma gravidez indesejada e um parto solitário; Omelogor, prima de Chimaka, uma mulher autônoma e também bem sucedida; e por fim, Kadiatou, a empregad...

Amores brutos e Os esquecidos

Imagem
Por Daniel Krauze  Tantos anos depois, é fácil esquecer o impacto que Amores brutos (2000) após vencer o Prêmio da Crítica em Cannes. O filme de estreia de Alejandro González Iñárritu parecia descompassado com o seu entorno, como se uma obra da sua magnitude — em ambição e realização — não pudesse sair de um país que ainda saboreava o mel do modesto Cinema Novo Mexicano. Desde a primeira cena, o longa-metragem sacudia o público como alarme de um despertador. Ao longo de suas mais de duas horas e meia de duração, o filme exibia um ritmo narrativo só fora visto antes no extraordinário O beco dos milagres (1995), de Jorge Fons.  Era um filme que se atrevia a mostrar uma visão única da vida chilanga,¹ tentando abranger todas as classes sociais em um tríptico moderno. Guiada pelo simbolismo eficaz dos cães como reflexos de seus donos, a história de Guillermo Arriaga brincava com o tempo e o espaço, visitando as vidas de Octavio (Gael García), um rapaz de classe média baixa determ...

Sappho

Imagem
Por Eduardo Galeno Pois nenhuma relação se forma se o pensamento não a produz. — Simone Weil Safo, 470 a.C. Prescrever   Na seção XV do Peri hypsous , de pseudo-Longino, se introduz, pelas citações que o acompanha, o juízo da aparição ( phantasia ). Ali ele apresenta as condições mínimas para o estabelecimento do que poderíamos chamar de “presença ausente”. Claro que, em outros termos, isso significaria um modo de traduzirmos o distanciamento no vão da percepção e do objeto. Ou: a estrutura residente na transferência entre a poesia e o evento. No caso, há a explicação, sob o exato da efusividade do crítico literário — para usarmos um anacronismo —, de toda uma esfera de se fazer sublime . Demonstrações espertas e fincadas, modelos delimitados (uma pitada de Eurípides, outra de Ésquilo), alguns reparos, algumas notações. O tratado escolheu esse tipo de polêmica por um simples motivo. Certamente, a astúcia do seu autor estava na tentativa de deslocar a mimesis , ou imitação, do âmbi...

O não-dito no romance Asfalto selvagem

Imagem
Por Amanda Fievet Marques Nelson Rodrigues Foto: Adalberto Diniz As personagens de Nelson Rodrigues, que encontramos sempre arremessando-se umas sobre as outras, crispadas, hirtas de medo ou de fé, trôpegas, sôfregas, são frequentemente tomadas por paixões. Paixões terríveis, capazes de levar à ruína e à loucura; paixões nostálgicas, em que se rompem os diques do passado e o presente é súbito inundado de desejo; paixões de domínio, paixões religiosas, paixões incestuosas, pervertidas, obsessivas, transgressoras. No romance Asfalto selvagem , publicado inicialmente como folhetim no jornal Última hora , e depois em dois volumes, em 1961, pela editora J. Ozon, há toda uma proliferação e dramatização das paixões humanas, essas comoções que tocam “até as raízes do ser” (Rodrigues, 1994, p. 43), em seu longo e variado espectro.* O notável, no entanto, é que, o mais das vezes, a consumação dessas paixões se exprime por um não dito, uma elipse, uma nomeação indireta.  Na primeira parte,...

Cinco poemas de “Altitudes e Extensões (1980 – 1984)”, de Robert Penn Warren

Imagem
Por Pedro Belo Clara  (Seleção e versões)* Robert Penn Warren. Foto: Bettmann LIMITE MORTAL Vi o falcão subir o vento no ocaso sobre o Wyoming.  Ergueu-se da escuridão das coníferas, passando impiedosas Cristas cinzentas, passando a faixa branca, entrando no crepúsculo  De luz onírica e espectral acima da última pureza dos farrapos de neve. A oeste, a cordilheira Teton. Picos nevados terão em breve Um perfil escuro a quebrar constelações. Para lá de que altitude Paira agora o negro ponto? Para lá de que distância olhos doirados Verão novas lonjuras erguerem-se, para marcar um último rabisco de luz?   Ou, tendo provado a finura da atmosfera, será que  Plana sem se mover, numa visão que falece antes De saber que aceitará o limite mortal, E deixar-se ao grande círculo descendente que restaurará A respiração da terra? Da rocha? Da podridão? De outras Coisas tais, e o negrume dum qualquer sonho que agarramos? ESPERANÇA Na orquidácea luz do entardecer, Observa como, d...