A grande arte de Rubem Fonseca

Por Javier Aparicio Maydeu




Que em seus contos se cometam assassinatos? Isso por si só não condena sua literatura ao gênero noir. Que seus personagens favoritos são detetives? Na verdade, todo grande personagem de ficção o é um de uma forma ou de outra, não? Marcel é um detetive de aparências, Hans Castorp é um detetive de consciências, o Leopardo é um detetive de conflitos sociais, Charles Kinbote é um detetive de textos e imposturas e Nathan Zuckerman é um detetive de identidades. Todos são detetives porque servem a uma missão que chamamos de literatura. E o fato de policiais aparecerem em suas páginas não significa necessariamente que sua obra se prenda à ficção policial.
 
Por ela, também transitam escritores neuróticos, prostitutas de filmes noir, loiras deslumbrantes com lábios carnudos e vermelhos, saídas diretamente de uma pintura pop de Tom Wesselman ou das letras ardentes de uma bossa nova, pedófilos, desajustados e don juans, funcionários públicos corruptos, detetives erotomaníacos e eruditos como o cínico e inestimável Mandrake, que é Bogart, mas também Philip Marlowe e Russ Meyer, e mais escritores, escritores por vocação, perdidos na página em branco, diletantes incorrigíveis e sabichões, fantasistas que entrelaçam realidades alternativas, esquizofrênicos, pornógrafos e escatologistas, escritores compulsivos, esnobes livrescos ou repulsivos e todos eles, sim, detetives literários de palavras e ideias, investigadores sui generis do processo de criação literária da vida.
 
Para fazer verdadeira justiça ao talento inesgotável de Rubem Fonseca, bastaria retirar a palavra “policial” da referência apática e comum empregada Luisa Trias Folch no até agora único manual de literatura brasileira em espanhol — Literatura brasiliana (Síntesis: Madri, 2006): “A literatura policial está representada por Rubem Fonseca”. O que deveríamos ler é: “A literatura é representada por Rubem Fonseca”. Literatura sem rótulos genéricos, literatura verdadeira, Literatura com L maiúsculo é representada por Rubem Fonseca, um dos maiores narradores contemporâneos, que, embora se apresente como escritor de romances policiais servem bem aos propósitos da crítica social, das invectivas contra o sistema pós-capitalista e da denúncia acerca da alienação e do desregramento do indivíduo contemporâneo nos grandes centros urbanos; representa sobretudo os valores da verdadeira literatura, tais como, o senso crítico, o método de conhecimento e reflexão e, em última análise, sobre a própria literatura.
 
Candidato reiterado e sólido entre a crítica ao Prêmio Nobel, traduzido para as principais línguas, leitor de Joyce, Steinbeck, Genet, Kafka e do que não está escrito, adorado na Alemanha e autor-estrela do prestigioso catálogo da Piper Verlag, teimoso numa doentia atitude antissocial, como seu contemporâneo Thomas Pynchon, Rubem Fonseca dirige, junto com Machado de Assis, João Guimarães Rosa, Jorge Amado e Clarice Lispector, a sede da ficção brasileira contemporânea, a partir de sua literatura ácida, crítica, obscena, solipsista e metaficcional.
 
Assim como Dalton Trevisan, autor de Cemitério de elefantes (1964) e O Vampiro de Curitiba (1965), com cujas histórias grotescas, expressionistas e sádicas, reflexo de obsessões e misérias morais, obra com a qual mantém estreita relação, Rubem Fonseca forjou seu estilo no campo do conto, publicando Os prisioneiros (1963), Lúcia McCartney (1967), o polêmico Feliz Ano Novo (1975) e O cobrador (1979), entre outros volumes de menor repercussão; são livros que constroem um universo literário potente e altamente original, baseado na marginalidade urbana, no sexo, na violência lúdica e num discurso crítico que condena a tensão de nossas sociedades despersonalizadoras, massificadas e inquietantes, que geram placebos como a televisão ou o McDonald’s quando, na realidade, atrofiam e pervertem o indivíduo, perdido em um cotidiano frustrante, condenado à violência do crime, a todo tipo de psicopatias metafísicas e, com efeito, transformado em um psicopata, abandonado à misantropia.
 
Suas leituras dos romances policiais de Raymond Chandler e Dashiell Hammet, o modelo de narrador não-confiável, do escritor paranoico e detetive obcecado que Nabokov lhe legou com Fogo pálido (cuja ambiguidade e artimanhas autobiográficas e metaficcionais estão muito presentes em O caso Morel, de 1973), e algumas influências da ficção norte-americana contemporânea — das fábulas paranoicas de Pynchon aos discursos metanarrativos de Barth, Barthelme e outros pós-modernistas made in U.S.A. ou aos personagens grotescos, egoístas e desvairados de Saul Bellow e Harry ‘Rabbit’, o herói excêntrico de John Updike — dão ao universo fonsequiano um molde narrativo, algumas convenções que servem de arcabouço cúmplice para o leitor e que o próprio escritor e suas instâncias narrativas manipulam à vontade, brincando com elas como bem entende e como fizeram, de forma diferente, mas compartilhando o gênero paródia e humor, Boris Vian em Morte aos feios (1964), romance que escreveu sob o pseudônimo de Vernon Sullivan figurando o escritor como um tradutor, e Fred Vargas em O homem dos círculos azuis (1996), série noir com humor, teorias paranoicas e detetives que deixam sua marca, como o comissário Jean Baptiste Adamsberg refletido em Mandrake.
 
O virtuosismo técnico de Rubem Fonseca deve muito, porém, aos monólogos interiores e à prosa íntima de Autran Dourado, autor de obras primorosas como Ópera dos mortos (1967) e O risco do bordado (1970), e ao experimentalismo narrativo de Guimarães Rosa e Clarice Lispector de A paixão segundo G. H. (1964) e Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (1969), que lhe ensinou a complexidade psicológica do discurso e da identidade, da qual nasce o uso obsessivo e intenso da primeira pessoa.
 
Seu primeiro romance, O caso Morel, deu o tom para seus futuros romances com um tratamento muito sedutor da crueldade por meio da paródia do gênero policial; um protagonista que é escritor e que escreve um romance dentro de um romance enquanto reflete, com a ajuda da metaficção, sobre a condição redentora do processo de criação literária e uma investigação completa sobre a arte de escrever; A grande arte (1983), uma de suas obras-primas, retorna à violência gerada pela alienação dos grandes centros urbanos contemporâneos e desenvolve uma espécie de hermenêutica da vida entendida como texto (em metáfora do escritor detetive); Bufo & Spallanzani (1986), outro romance excepcional, insiste em criar um protagonista que é ao mesmo tempo escritor e brinca com as convenções do gênero policial enquanto mil e uma referências literárias desfilam por suas páginas. A lista é generosa. Vastas emoções e pensamentos imperfeitos (1988), cujo protagonista anônimo confessa ser um leitor compulsivo de histórias irônicas e concisas como as do próprio Rubem Fonseca ou Agosto (1990), sobre as circunstâncias que antecederam o suicídio de Getúlio Vargas.
 
A ficção fonsequiana se quer duplamente ficcional, pois transita constantemente entre referências literárias e se confessa fictícia: “A única realidade não é a da imaginação?” pergunta o narrador de O caso Morel. Assim, o leitor pode ler o quinto capítulo de Bufo & Spallanzani como um tratado de narratologia sobre a arte da ficção (com referências a Thomas Mann, Svevo ou Aspectos do romance, de E. M. Forster) em forma de reflexões do bem-sucedido romancista Gustavo Flávio, protagonista do romance — agenciado, aliás, por Carmen Balcells, a agente literária de Fonseca na realidade. Em O caso Morel, os escritores Morel e Vilela travam o seguinte diálogo:
 
“Adianta escrever, se ninguém vai ler?”
“Adianta, sempre.”
“Passo as noites sonhando com a minha carreira literária”.
 
Também em vários dos seus contos mais inspirados, as alusões literárias e metaficcionais são constantes: ao bloqueio criativo diante da máquina de escrever, à estranha condição das musas ou à glória literária (em “Agruras de um jovem escritor”); ao livro brilhante, mas maldito porque o mercado não consagra ou à escrita compulsiva (em “Passeios noturnos”); às ferramentas do romancista, o papel de linho artesanal, a caneta, o silêncio, a solidão (em “Olhar”); ao escritor anônimo, o ghostwriter, como ele o denomina, que se aluga para escrever uma obra imortal para um escritor que não quer escrever mas simplesmente ser escrito (em “Artes e ofícios”); ao assassino que se redime pela arte da poesia (em “O cobrador”); ao escritor Augusto em “A arte de caminhar pelas Ruas do Rio”, que vagueia contemplando a escrita de um romance intitulado “A arte de andar pelas ruas do Rio” (e que nunca terminará, como tantos escritores frustrados temidos por Virginia Woolf, como confessa o protagonista de Bufo & Spallanzani); ao imaginário do escritor e aos estatutos da arte e da criação literária (naquela paródia de entrevista com um autor famoso que é o conto “Intestino grosso”); ou à suposta necessidade de “cultivar o estilo” ou simplesmente de saber o que se quer contar no romance, e à influência da crítica (naquele conto prodigioso que é “Pierrô da caverna”).
 
Ao ler suas frases elétricas, seus diálogos ritmados e seus parágrafos lançados à queima-roupa, como num balão de história em quadrinhos, ao reconhecer em seus textos fontes, fórmulas e códigos da literatura de consumo de massa (telenovelas e seriados, contos gore, pulp fiction), ao ponderar as exortações existenciais e morais de seus excêntricos protagonistas, o leitor acredita ouvir o riso irônico do próprio Fonseca lá dos fundos, sempre pronto para a paródia porque o que ele realmente pretende é convidar a todos nós a questionar o sistema, a declarar rebelião contra a sociedade de consumo que nos silencia e subjuga, contra a grande maquinaria social que nos despersonaliza com sua moral sexófoba e seu discurso unívoco e nos empurra à violência e à promiscuidade.
 
“Um escritor deve ser essencialmente um subversivo […] Escritor tem que ser cético. Tem que ser contra a moral e os bons costumes”, diz o escritor Gustavo Flávio, seu alter ego em Bufo & Spallanzani, e sua Santíssima Trindade não é outra senão a ambiguidade, a paródia e a subversão, lemas dignos da grande arte do mestre Zé Rubem, do indiscutível mestre Fonseca, Prêmio Camões 2003, o único que até hoje conseguiu sair ileso das tentações de uma literatura ao mesmo tempo endogâmica e desbocada, das entranhas do poder e das leis perversas do desejo. 


* Este texto é a tradução de “El gran arte de Rubem Fonseca”, publicado em Letras Libres.

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