Do modo honesto de fingir

Por Eduardo Galeno

Lorenzo Lippi, Alegoria da simulação, 1640 


 
As leis da conversação da literatura de corte são maximizadas por uma aderência ao oculto. Torquato Accetto, secretário do seu Senhorio, ponte entre verdades secretas e a via pública, corresponde a um tipo de travessa literária pouco ou nada analisada pelos bolsões críticos dos dois últimos séculos. Resumidamente, a razão se dá pelo fato da trela kantiana em nome da verdade-sem-artifício.
 
Contexto histórico: o fato sobrepujou a dinâmica operacional do resto dos textos que seguiram a derrubada do clero e do Rei pelas democracias, aqui conectados com o fator psicológico que o sujeito das ciências liberais fincou. Mas voltemos ao centro.
 
Dizíamos que Accetto trabalhava com a ideia de ocultação, mas o que significa? À risca, explicita certa racionalidade na relação entre ser e parecer. O secretário é aquele que dispõe do vínculo essencial com as partes de cima da estrutura de poder. Não sendo nada mais que um emissário da voz do príncipe, ele assume a posição tática que o condiciona a falar e a dar conselho na predisposição da auctoritas. Daí a extrema cautela, ponte da prudência, ao avaliar os contornos dos eventos: o rito de passagem se encontra justo no limite. Quem transborda, como no choro, não pode alcançar a suma dissimulação, “a habilidade de não fazer ver as coisas como são” (capítulo VIII).
 
Mantenha os cílios enxutos quando o coração pulsa forte. Eis a recomendação do tratado: pareça o que não é. Nisso, uma das coisas que mais me surpreende é que a dissimulação accettiana é metateórica. Ela, na verdade, alimenta a neurose maquiavélica da mentira útil. Se alimenta não da maneira apologética, afirmando, mas ao superar a mentira pela própria simulação da mentira. O slogan “dissimule sempre honestamente” não trai a consciência mesmo sendo eficiente na defesa política. Accetto reduz a mentira à razão da verdade.
 
O mundo precisa do temperado, da harmonia somática galeniana, tal qual o indivíduo, frente a res publica, necessita da dissimulação para melhor produzir. Ela não é necessariamente boa (provável que Accetto a tenha configurado num modelo teológico próximo do infortúnio humano em relação ao pecado original, à filiação adâmica); existe como função negativo-positiva, como, se vê, função moral.
 
O suposto aí encaminhará o acabamento das figuras do Céu na terra. Como ele é ausente em carne, a presença se move diante da fortuna do senhor com seus cúmplices. Em outras palavras, o secretário é um anjo (ou, para ser mais analógico, cumpre as mesmas oportunidades e encaminhamentos de um).
 
O barroco sabia que crescia rapidamente nos poderes temporais a ideia de desvencilhar o século do religare. Por isso mesmo uma espécie de ateísmo purificador (Seiscentos e suas obsessões pelas alegorias?), trato entre a prescrição da arte e a tal proficiência do virtuoso. Relativa à esfera dos sinais, a eloquência da dissimulação propõe a fuga na rigidez da totalidade. No caso, funda uma semiótica do corpo flagelado, exemplo de aplicação de si mesma. Praticamente, a linha de seu desenvolvimento é o corte, a pausa do silêncio e o discurso suspenso: nada porque tenha sido um tipo beckettiano em pleno XVII, mas por sua esperança na salvação da alma.
 
O que é de bom tom a ser falado aqui é que, além de tratado ético, Della dissimulazione onesta ostenta também a ser um estudo sobre a ousia. Longe de atuar num mero compósito limítrofe, o tratado replica a tentativa de revelar alguns mecanismos de gerência do tempo, que, querendo ou não, surgem sob novas formas na modernidade tardia. Dissimulação é uma tecnologia de vida que depende do alinhamento agudo do homem em relação à criação divina.
 
Parafraseando Foucault, entre Deus — que cria a ordem da orbe, suas casualidades — e eu, que decifro tudo, se trata de mim. A causa infligida na cosmologia a partir da Renascença é trazida por reações condizentes ao esquema antigo da máscara romana: movidas pela teatralização, cada cena cumpriria seu sentido (os infortúnios, provas e exercícios).
 
Confundir, porém, seu verdadeiro eu com a identidade artificial é perigoso. Accetto alerta, no capítulo XII, que dissimular consigo mesmo, sob o “sono dos pensamentos cansados”, facilmente se metamorfoseia em letargia. Para combater o problema, o nosce te ipsum (conhece-te a ti mesmo) deverá estar ali à espreita, senão, pelo contrário, estará aberto o causo de não reconhecimento, principal motivo da fragmentada identidade da psicose moderna.
 
Basta lembrarmos do par nudez-veste, talvez central palco da biopolítica milenar da teologia cristã, para fazermos certas ligações de contexto. A imagem, principalmente a da noção do moi lacaniano, é sensível. No que diz respeito à tecnologia da vestimenta, ela contribui para a exteriorização da pessoa que se veste. A moda (técnica, ou seja, arte) ratifica a ambiguidade de sermos seduzidos tanto pela máscara quanto pelo nu. Essa contradição inerente só poderia esclarecer por que, na interpretação psicológica de Croce que reviveu o tratado, Accetto pareça angustiado.
 
A delimitação, no entanto, corresponde mais a um decoro sustentado por um obstáculo grandioso e que, por isso, tinha esse estilo truncado na assunção de temas. Flutua, assim, a sua legibilidade na escritura (que Barthes apelidou de filigrana). As citações, as imagens e a brevidade que consistem o rumor do texto se abrem num refinamento que ampliam e embelezam o sentido. Assim, a capacidade de persuasão de Accetto é redigida em escrever pois, afinal, escrever dissimula.
 
A escrita, da prosa à poesia (não esqueçamos que o nosso autor também foi poeta), faz desaparecer tantas e tantas propriedades que só poderia dar ênfase ao modo oratório de deslocar frase por frase, palavra por palavra, em suma, indo da linguagem à ideia. Os termos que possuem um valor de verdade mais concreto são, de um lado, a ojeriza pela corrupção e, por outro, a renovação do que possivelmente desemboca em falso. E aí denotamos as elipses voluntárias com que preenche as partes do livro: ocultando o Evangelho de Mateus ou a pena de Dante, não se oculta a virtude de ambos; a infla num posicionamento mais adequado.
 
O grande ato de um dissimulador está em adiar a verdade. Isso, no círculo de fogo que traduz a aproximação do que um falante deseja, responderia a questão da sedução como objeto fundamental. A dissimulação recua o máximo que pode, dilata até sombrear. As próprias precariedades do que não é eterno — tudo que não é Deus — já legitimam: catolicamente falando, o dissimulado é uma defesa. Claro: o ponto de partida, em qualquer ocasião, deve advogar sempre pelo imutável, pela Parada: “é necessário pois volver os olhos para a luz da verdade antes de mover a língua para as palavras” (capítulo III).
 
O núcleo do estilo, bipartido, amplexo e periódico ao mesmo tempo, naturaliza a complexidade da vida social. Quer dizer, o ponto de partida de Accetto está na tentativa de transfigurar o estilema do fácil e do simples em meio aos turvos caminhos das figuras e tropos, o que leva por si só à identificação com as mazelas imorais do homem. Sintoma, a corruptela não pode passar batida. Ela precisa ser desvirtuada textualmente. Por esse motivo os barrocos amavam tanto os tratados: eram práticas, ordenações de segurança do senso.
 
O fato da escrita accettiana ter no fim a concórdia, a paz do reino sob o auspício da Trindade e também do papa, no contra-ataque à revolução protestante na Europa, apenas manteve a esperança do ethos religioso. Na tarefa de ascender a linguagem ao pensamento, o domínio do rigor da letra é tão importante quanto o domínio de fingir.
 
Fala Aristóteles no capítulo III do segundo livro da Arte retórica que o contrário de colérico é o manso. Em que pese a diferença de sentido entre ambos, o cortesão completaria esses enunciados com a aceitação da calma no elemento de disposição afetiva do seu quadro. Ali, aliás, demonstra apoio à piedade, à serenidade na ardência amorosa, à inocência do perdão e à indiferença diante do injusto, tudo contemplado, enfim, à medicação do dissimular honestamente.
 
Enquanto aquele momento em que as máscaras e o oculto caindo não chega, enquanto o lugar da felicidade sem véu e o da danação sem verniz não nos trespassam, resta esperarmos. Segundo a dica de Accetto, não há outro destino. Ele finaliza sinalizando a obra da arte de viver, a maior de todas: “no bom e no mau tempo são necessárias tuas vestes, e à noite não menos que ao dia, e não mais fora que em casa” (capítulo XXV).
 
 

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