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Lorenzo Lippi, Alegoria da simulação, 1640 |
As leis da conversação da literatura de corte são
maximizadas por uma aderência ao oculto. Torquato Accetto, secretário do seu
Senhorio, ponte entre verdades secretas e a via pública, corresponde a um tipo
de travessa literária pouco ou nada analisada pelos bolsões críticos dos dois
últimos séculos. Resumidamente, a razão se dá pelo fato da trela kantiana em
nome da verdade-sem-artifício.
Contexto histórico: o fato sobrepujou a dinâmica operacional
do resto dos textos que seguiram a derrubada do clero e do Rei pelas
democracias, aqui conectados com o
fator psicológico que o sujeito das
ciências liberais fincou. Mas voltemos ao centro.
Dizíamos que Accetto trabalhava com a ideia de ocultação,
mas o que significa? À risca, explicita certa racionalidade na relação entre
ser e parecer. O secretário é aquele que dispõe do vínculo essencial com as
partes de cima da estrutura de poder. Não sendo nada mais que um emissário da
voz do príncipe, ele assume a posição tática que o condiciona a falar e a dar
conselho na predisposição da auctoritas. Daí a extrema cautela, ponte da
prudência, ao avaliar os contornos dos eventos: o rito de passagem se encontra
justo no limite. Quem transborda, como no choro, não pode alcançar a suma
dissimulação, “a habilidade de não fazer ver as coisas como são” (capítulo
VIII).
Mantenha os cílios enxutos quando o coração pulsa forte. Eis
a recomendação do tratado: pareça o que não é. Nisso, uma das coisas que mais
me surpreende é que a dissimulação accettiana é metateórica. Ela, na verdade,
alimenta a neurose maquiavélica da mentira útil. Se alimenta não da maneira
apologética, afirmando, mas ao superar a mentira pela própria simulação da
mentira. O slogan “dissimule sempre honestamente” não trai a consciência mesmo
sendo eficiente na defesa política. Accetto reduz a mentira à razão da verdade.
O mundo precisa do temperado, da harmonia somática
galeniana, tal qual o indivíduo, frente a
res publica, necessita da
dissimulação para melhor produzir. Ela não é necessariamente boa (provável que
Accetto a tenha configurado num modelo teológico próximo do infortúnio humano
em relação ao pecado original, à filiação adâmica); existe como função
negativo-positiva, como, se vê, função moral.
O suposto aí encaminhará o acabamento das figuras do Céu na
terra. Como ele é ausente em carne, a presença se move diante da fortuna do
senhor com seus cúmplices. Em outras palavras, o secretário é um anjo (ou, para
ser mais analógico, cumpre as mesmas oportunidades e encaminhamentos de um).
O barroco sabia que crescia rapidamente nos poderes
temporais a ideia de desvencilhar o século do
religare. Por isso mesmo
uma espécie de ateísmo purificador (Seiscentos e suas obsessões pelas
alegorias?), trato entre a prescrição da arte e a tal proficiência do virtuoso.
Relativa à esfera dos sinais, a eloquência da dissimulação propõe a fuga na
rigidez da totalidade. No caso, funda uma semiótica do corpo flagelado, exemplo
de aplicação de si mesma. Praticamente, a linha de seu desenvolvimento é o
corte, a pausa do silêncio e o discurso suspenso: nada porque tenha sido um
tipo beckettiano em pleno XVII, mas por sua esperança na salvação da alma.
O que é de bom tom a ser falado aqui é que, além de tratado
ético,
Della dissimulazione onesta ostenta também a ser um estudo sobre
a
ousia. Longe de atuar num mero compósito limítrofe, o tratado replica
a tentativa de revelar alguns mecanismos de gerência do tempo, que, querendo ou
não, surgem sob novas formas na modernidade tardia. Dissimulação é uma
tecnologia de vida que depende do alinhamento agudo do homem em relação à
criação divina.
Parafraseando Foucault, entre Deus — que cria a ordem da
orbe,
suas casualidades — e eu, que decifro tudo, se trata de mim. A causa infligida
na cosmologia a partir da Renascença é trazida por reações condizentes ao
esquema antigo da máscara romana: movidas pela teatralização, cada cena
cumpriria seu sentido (os infortúnios, provas e exercícios).
Confundir, porém, seu verdadeiro eu com a identidade
artificial é perigoso. Accetto alerta, no capítulo XII, que dissimular consigo
mesmo, sob o “sono dos pensamentos cansados”, facilmente se metamorfoseia em
letargia. Para combater o problema, o
nosce te ipsum (conhece-te a ti
mesmo) deverá estar ali à espreita, senão, pelo contrário, estará aberto o
causo de não reconhecimento, principal motivo da fragmentada identidade da
psicose moderna.
Basta lembrarmos do par nudez-veste, talvez central palco da
biopolítica milenar da teologia cristã, para fazermos certas ligações de
contexto. A imagem, principalmente a da noção do
moi lacaniano, é
sensível. No que diz respeito à tecnologia da vestimenta, ela contribui para a
exteriorização da pessoa que se veste. A moda (técnica, ou seja, arte) ratifica
a ambiguidade de sermos seduzidos tanto pela máscara quanto pelo nu. Essa
contradição inerente só poderia esclarecer por que, na interpretação
psicológica de Croce que reviveu o tratado, Accetto pareça angustiado.
A delimitação, no entanto, corresponde mais a um decoro
sustentado por um obstáculo grandioso e que, por isso, tinha esse estilo
truncado na assunção de temas. Flutua, assim, a sua legibilidade na escritura
(que Barthes apelidou de
filigrana). As citações, as imagens e a
brevidade que consistem o rumor do texto se abrem num refinamento que ampliam e
embelezam o sentido. Assim, a capacidade de persuasão de Accetto é redigida em
escrever pois, afinal, escrever dissimula.
A escrita, da prosa à poesia (não esqueçamos que o nosso
autor também foi poeta), faz desaparecer tantas e tantas propriedades que só
poderia dar ênfase ao modo oratório de deslocar frase por frase, palavra por
palavra, em suma, indo da linguagem à ideia. Os termos que possuem um valor de
verdade mais concreto são, de um lado, a ojeriza pela corrupção e, por outro, a
renovação do que possivelmente desemboca em falso. E aí denotamos as elipses
voluntárias com que preenche as partes do livro: ocultando o
Evangelho
de Mateus ou a pena de Dante, não se oculta a virtude de ambos; a infla num
posicionamento mais adequado.
O grande ato de um dissimulador está em adiar a verdade.
Isso, no círculo de fogo que traduz a aproximação do que um falante deseja,
responderia a questão da sedução como objeto fundamental. A dissimulação recua
o máximo que pode, dilata até sombrear. As próprias precariedades do que não é
eterno — tudo que não é Deus — já legitimam: catolicamente falando, o
dissimulado é uma defesa. Claro: o ponto de partida, em qualquer ocasião, deve
advogar sempre pelo imutável, pela Parada: “é necessário pois volver os olhos
para a luz da verdade antes de mover a língua para as palavras” (capítulo III).
O núcleo do estilo, bipartido, amplexo e periódico ao mesmo
tempo, naturaliza a complexidade da vida social. Quer dizer, o ponto de partida
de Accetto está na tentativa de transfigurar o estilema do fácil e do simples
em meio aos turvos caminhos das figuras e tropos, o que leva por si só à
identificação com as mazelas imorais do homem. Sintoma, a corruptela não pode
passar batida. Ela precisa ser desvirtuada textualmente. Por esse motivo os
barrocos amavam tanto os tratados: eram práticas, ordenações de segurança do
senso.
O fato da escrita accettiana ter no fim a concórdia, a paz
do reino sob o auspício da Trindade e também do papa, no contra-ataque à
revolução protestante na Europa, apenas manteve a esperança do
ethos
religioso. Na tarefa de ascender a linguagem ao pensamento, o domínio do rigor
da letra é tão importante quanto o domínio de fingir.
Fala Aristóteles no capítulo III do segundo livro da
Arte
retórica que o contrário de colérico é o manso. Em que pese a diferença de
sentido entre ambos, o cortesão completaria esses enunciados com a aceitação da
calma no elemento de disposição afetiva do seu quadro. Ali, aliás, demonstra
apoio à piedade, à serenidade na ardência amorosa, à inocência do perdão e à
indiferença diante do injusto, tudo contemplado, enfim, à medicação do
dissimular honestamente.
Enquanto aquele momento em que as máscaras e o oculto caindo
não chega, enquanto o lugar da felicidade sem véu e o da danação sem verniz não
nos trespassam, resta esperarmos. Segundo a dica de Accetto, não há outro
destino. Ele finaliza sinalizando a obra da arte de viver, a maior de todas: “no
bom e no mau tempo são necessárias tuas vestes, e à noite não menos que ao dia,
e não mais fora que em casa” (capítulo XXV).
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