Entre a cruz e a foice: estudo do ensaio “Sonhos e fantasias”, de Dostoiévski

Por Rafael Bonavina




 
Como se sabe, Fiódor Dostoiévski manteve uma coluna chamada Diário do escritor de 1876 até a sua morte em 1881, e alguns textos ainda foram publicados postumamente. Nessa seção, o escritor publicava diversos tipos de textos, como ensaios, críticas literárias, comentários políticos e filosóficos, respondia às cartas dos leitores (reais ou fictícios) e polemizava com os escritores de outros jornais, tanto conservadores quanto liberais. Também é no Diário do escritor que alguns dos seus contos mais conhecidos são publicados pela primeira vez, como o célebre “Sonho de um homem ridículo”.
 
Os textos não-ficcionais apresentam uma característica que nos será muito interessante, pois contrariam uma lógica fragmentária ao lidarem com as questões candentes do seu tempo. Ou seja, o autor de Crime e castigo não se detinha sobre um único assunto sem se desviar dele, tratando-o como um objeto isolado; pelo contrário, Dostoiévski tece reflexões sólidas que transitam entre diversos elementos da realidade, integrando-os às condições sociais, econômicas e históricas em que estão inseridos. Nesse aspecto de seu pensamento nota-se sua capacidade de análise conjuntural, o que vai de encontro às leituras que veem nesse intelectual um religioso em processo de crescente alienamento depois da sua experiência prisional.
 
Um dos principais procedimentos utilizados por Dostoiévski para os seus ensaios é o que poderíamos chamar de interconexão ou extrapolação:  o escritor parte de um evento ou questão de aparente pouca importância e chega a um vislumbre da totalidade da experiência russa. Isso pode ocorrer por meio da exposição de como diversos elementos que não parecem relacionados podem ser compreendidos como partes de uma complexa articulação conjuntural ou mesmo pelo desnovelamento de algum nó conceitual. Dessa forma, os textos de Diário do escritor conseguem transformar um acontecimento banal em obra de arte (por exemplo, “A dócil”) ou fazer da discussão de algum lugar-comum, como o problema social do alcoolismo, uma crítica profunda à realidade russa, às ideias de algum intelectual ou às políticas públicas de seu tempo.
 
Um bom exemplo é o ensaio “Por ocasião de uma exposição” (Dostoiévski, 2016),1 em que o escritor aproveita a ocasião de um evento cultural para discutir um problema candente do debate russo da época — e ainda muito relevante, diga-se de passagem — a respeito de uma possível europeidade dos russos. Dostoiévski afirma que grande parte do problema se dá porque a Europa não reconhece a Rússia como parte dela, ou seja, relega esse país à categoria de “outro”, de “não nosso”. Essa rejeição, por sua vez, deixa um gosto amargo na boca dos russos: “nós, é claro, nos ofendemos e tentamos demonstrar com todas as forças que somos europeus…” (Dostoiévski, 2016, p. 89).
 
O uso da expressão “é claro” (razuméietsia) transparece a compreensão do autor quanto ao que seria a reação mais provável do povo russo diante da negação de sua europeidade. À luz disso, e para além de uma discussão abstrata a respeito do embate entre eslavofilia e ocidentalismo, gostaríamos de levantar a seguinte questão: será que essa dúvida de fato assombraria um camponês russo, em sua absoluta maioria analfabeto e, até 1861, preso à terra do seu senhor? A nosso ver, essa não seria uma das principais questões da grande massa popular da Rússia, que era, à época, um país majoritariamente agrário. Isso nos leva a crer que se esconde por trás desse “nós” uma concepção muito ligada à camada urbana e, principalmente, à intelectualidade russa, que consumia os escritos de Dostoiévski. Em suma, os intelectuais e as camadas mais abastadas da sociedade consumiam cotidianamente a cultura europeia, conheciam as cidades do Ocidente, vestiam-se segundo as modas da época (inclusive adotando rapidamente a guinada à inglesa posterior à Revolução Francesa, passando dos típicos culottes para os ternos e cartolas) e falavam a língua franca europeia fluentemente, por vezes até melhor que o próprio russo.
 
Diante disso, consideramos que tomar o uso da primeira pessoa do plural (nós nos ofendemos e tentamos provar que somos europeus) como mero recurso retórico não seria a interpretação mais produtiva desse importante elemento, pois não permite a análise dessa importante contradição da Rússia no século XIX. Seria mais interessante, a nosso ver, tomar essa escolha como decorrência da paratopia do próprio Dostoiévski, isso é, da tensão entre a obrigatória inserção social — afinal nenhuma figura pública está de fato fora da sociedade — e a falta de lugar confortável para o intelectual na estrutura social russa daquele momento. Dessa maneira, podemos depreender dessa frase, e de outras tantas no ensaio em questão, uma síntese simbólica do descompasso entre a concepção de povo da parcela intelectualizada e as camadas populares.
 
Essa contradição se encontra estetizada em uma passagem do capítulo “A última viagem de Stiepán Trofímovitch”, de Os demônios. Para contextualizar o leitor, é preciso lembrar que nesse momento, o intelectual decadente Stiepán Trofímovitch abandona a cidade provinciana em que se passa a narrativa e decide viajar a pé em uma espécie de peregrinação. Pouco depois de começar o trajeto, ele é pego por uma forte chuva e percebe que sua jornada seria muito mais difícil do que ele havia pensado inicialmente. Stiepán Trofímovitch senta-se ao pé de uma árvore e mergulha em profunda reflexão sobre sua vida, suas escolhas e o trajeto que o levara até ali. De repente, ele é tirado de suas meditações por um casal de camponeses, que lhe oferecem ajuda e perguntam a qual classe social ele pertenceria, considerando-o a princípio um comerciante pela quantidade de objetos que o viajante trazia consigo.
 
“— Não, não sou propriamente comerciante, eu… eu… moi c’est autre chose — respondeu Stepan Trofímovitch, titubeando e, para o que desse e viesse, deixou-se atrasar um poucochinho, até à traseira da carroça, pelo que passou a andar ao lado da vaca.
— Dos fidalgos, é bom de ver — concluiu o mujique ao ouvir palavras não russas, e puxou a rédea.” (Dostoiévski, 2023, p. 1000).
 
Mesmo em meio à confusão e à adversidade, Stiepán Trofímovitch utiliza uma expressão em francês em seu discurso, característica típica da sua linguagem em todo o romance, o que demonstra sua naturalidade com esse idioma. É claro que o camponês não compreende uma sílaba do francês, que não faz parte de sua realidade, mas é capaz de reconhecer nessas “palavras não russas” (nerusskie slova, para usar a expressão do romance) um discurso que lhe é inacessível e usado apenas por pessoas de nobre estirpe. Se levarmos em conta o princípio estético do Realismo, que dominava a literatura da época e é importante elemento da produção de Dostoiévski, podemos facilmente depreender que a cena ilustra a questão de que falávamos anteriormente. Isso é, o camponês não tem relação com a Europa, não é capaz de penetrar nesse universo, nem mesmo no seu nível mais básico: o idioma. Já Stiepán Trofímovitch representa muito bem aquele “nós” que busca provar sua europeidade por meio de um afetado requinte.
 
Contudo Stiepán Trofímovitch não é de fato um aristocrata, sua caracterização seria mais próxima de um agregado; por isso, o desconforto com essa rotulação permanece ao longo de mais algumas páginas, enquanto os camponeses tentam encaixá-lo em alguma categoria que lhes seja compreensível: comerciante, aristocrata, viajante, militar… Por fim, abandonam a empreitada de compreender a posição desse intelectual nas castas da sociedade russa e seguem a vida como se nada tivesse acontecido. E não seria essa também uma representação estética do que falávamos acerca da falta de um lugar claro para os intelectuais? Diga-se de passagem, grande parte do conflito interno de Stiepán em Os demônios decorre justamente de não encontrar uma inserção confortável na estrutura social provinciana, o que o empurra à condição de agregado ou de dependente de sua benfeitora Varvara Petrovna.
 
 
Retomando, então, o ensaio “Por ocasião de uma exposição”, nota-se uma possível síntese para essa tensão: a recusa de se afirmar o pertencimento à Europa, por mais que um russo não se sinta confortável com sua inserção na família dos povos europeus. Para Dostoiévski, o problema talvez não fosse que se tentasse reproduzir o comportamento europeu em solo russo, esse seria um sintoma da real doença: a necessidade de provar que o russo é europeu. Afinal, se um alemão ou um francês não precisam dessa autoafirmação, por que um russo, a princípio tão europeu quanto os demais, precisaria prová-lo? Bastaria que fossem o que são e seriam, assim, europeus.
 
Essa pergunta retórica poderia ser deixada sem uma resposta, apenas pairando sobre a indecisão cultural da Rússia, que anda na corda bamba entre o Ocidente e Oriente até hoje. Se levarmos em conta que a dor sentida na superestrutura vem de uma ferida infraestrutural, como indica Jameson (2002), poderíamos deixar de lado esse milenar dilema russo — cuja solução certamente não caberia a nós — para tentar encontrar indícios de uma raiz infraestrutural que sustenta esse ramo de reflexões.
 
E, em meio a essa busca, chegamos a “Sonhos e devaneios”, publicado em 1873 no Diário do escritor. Assim como “Por ocasião de uma exposição”, o ensaio se estrutura ao redor do procedimento da interconexão: Dostoiévski parte de uma questão de saúde pública (o alcoolismo) para a discussão da inserção da Rússia na ordem capitalista, como se nota pela passagem a seguir:
 
“Tome como outro exemplo as nossas estradas de ferro, considere o nosso espaço e a nossa pobreza; compare o nosso capital com os capitais de outras grandes potências e conclua: quanto percorre a nossa malha férrea, que nos é necessária enquanto grande potência? E note: nos países deles essas malhas foram construídas há muito tempo e o fizeram aos poucos, mas aqui é preciso correr atrás do prejuízo, e fazê-lo rápido; lá as distâncias são curtas, mas aqui na Rússia são continentais. Nós mesmo agora sentimos a dor que nos causou o começo da nossa malha; o peso que a alocação do capital em uma única direção significou, em detrimento ao menos da nossa pobre agricultura ou de qualquer outro setor.”
 
A estrada de ferro é um elemento extremamente presente no cotidiano russo do século XIX a ponto de ser possível elencar dezenas de trabalhos que exploram a sua importância e influência na literatura da época (como Jahn, 1981; Ivanov, Sorokina, 2011). Em geral o trem é tido ou como uma espécie de lugar de encontro de diversas classes, a exemplo do primeiro capítulo de O idiota, em que Rogójin e Mýchkin se encontram pela primeira vez; ou como um símbolo da modernidade, do deslocamento rápido e da velocidade. Porém, nesse ensaio, Dostoiévski subverte essa representação clássica e o apresenta como seu oposto, isso é, a malha férrea russa escancara o descompasso entre as grandes potências capitalistas e a Rússia.
 
Segundo Fiódor Mikhailovitch, há duas dimensões que separam seu país do centro do capitalismo: o tempo e espaço. Quanto ao primeiro, o Império Russo não teve a possibilidade de um desenvolvimento econômico gradual e secular em ritmo parecido com, digamos, o da Inglaterra. Além disso, as proporções continentais da Rússia adensam o problema, isso é, para conectar as duas pontas do território seria preciso um investimento dezenas de vezes superior ao feito por esses países, cujas áreas são uma fração do território russo. Por essas razões, adverte Dostoiévski, ainda que fosse feito um esforço para que a ferrovia russa alcançasse a capilaridade encontrada nos países centrais do capitalismo, isso se daria às custas do desenvolvimento das demais indústrias, por exemplo a agricultura, o que teria um grande impacto a longo prazo.
 
Em síntese, então, Fiódor Mikhailovitch tenta explicar com os instrumentos teóricos que tinha à sua disposição naquele momento que a Rússia não era — e não poderia se tornar do dia para a noite — uma grande potência, porque sua infraestrutura não comportava essa condição. Uma mudança nesse plano basilar do país significaria um processo de longuíssimo prazo, algo que não seria possível dentro de duas ou três gerações. Por outro lado, a tentativa de fazer com que a Rússia parecesse pertencer a essa categoria acabaria por intensificar o problema, pois os gastos para se criar essa ilusão devorariam os fundos que deveriam ser usados para a adoção de medidas que de fato melhorariam as condições de vida no país.
 
Dostoiévski adensa sua argumentação por meio de mais um exemplo: a indústria bélica. O tópico é um dos mais sensíveis para a Rússia daquele momento, pois o país havia se tornado uma renomada potência militar desde a vitória sobre Napoleão, e boa parte do público leitor — como vimos, composto por pessoas do ambiente urbano e das classes médias e abastadas — tinha uma relação próxima com a classe militar, seja profissional, familiar ou de convívio próximo. Porém em meados do século XIX, o fracasso militar na Guerra da Crimeia escancara o descompasso do exército russo em relação aos das grandes potências daquele momento, o que em última análise leva a Rússia a sofrer uma importante derrota. Por esses motivos, ao tocar no assunto de um possível atraso bélico russo, Dostoiévski se coloca em uma posição bastante delicada, porém, como se nota pelo desenvolvimento argumentativo, de grande potencial argumentativo.  
 
O autor, então, afirma que o exército russo não estaria apto a resistir possíveis invectivas das grandes potências, se um dia surgisse essa necessidade, pois a arte da guerra não se resumiria apenas ao número de soldados empregados; são igualmente importantes a inteligência, as táticas e armamentos empregados, pontos em que a Rússia estaria, segundo o escritor de Crime e castigo, em flagrante desvantagem, mais uma vez, por sua infraestrutura precária.
 
“Agora, quase a cada década trocam de armamento, até com mais frequência. Dentro de uns quinze anos, talvez, serão disparados raios, e não tiros, usando algum tipo de máquina que dispara uma corrente elétrica que a tudo incendeia. Diga o que poderíamos inventar nessa linha a fim de surpreender nossos vizinhos? Se em cerca de quinze anos cada grande potência tivesse algo do gênero escondido, o que teríamos guardado só para o caso de surpresa desse tipo?”
 
Ao imaginar uma máquina que dispara raios incendiários — quem sabe um lança-chamas? —, Dostoiévski lança mão de um procedimento literário típico da ficção científica a fim de evidenciar a diferença entre a capacidade de desenvolvimento das grandes potências capitalistas e a impossibilidade de a Rússia acompanhá-las. Isso é, o que parece uma impossibilidade prática para a Rússia, uma arma de raios, logo poderá ser uma realidade para uma grande potência, posto que eles desenvolvem sua ciência em ritmo acelerado. Isso se daria, em parte, pelo dinheiro gasto pelo país tsarista na compra dos armamentos antigos desses países centrais ao invés de se empregar esse mesmo montante no desenvolvimento da ciência bélica interna, o que permitiria a invenção de novos armamentos. Mesmo que julgássemos pelos olhos de hoje, nota-se que o pensamento de Dostoiévski nesse aspecto era bastante progressista para o seu tempo.
 
A consciência de Dostoiévski a respeito dessa incompatibilidade entre a infraestrutura russa e a superestrutura trazida do centro do capitalismo se torna mais evidente na passagem em que ele defende a necessidade da Educação.
 
“Infelizmente nós só podemos imitar e comprar os armamentos dos outros e, quando muito, conseguimos consertá-los nós mesmos. Para inventar máquinas como essa é preciso uma ciência autônoma, e não comprada; uma ciência própria, e não copiada; ao mesmo tempo enraizada e livre. Nós ainda não temos uma ciência desse tipo, e sequer temos uma comprada.”
 
A conclusão é que a Rússia não pode ser uma grande potência europeia por falta de desejo ou incapacidade moral de seu povo, mas pela incompatibilidade fundamental entre as duas realidades, e diríamos que isso é fruto de papéis históricos muito diferentes desempenhados pelos países no processo de desenvolvimento do capitalismo burguês. Dessa forma, a Rússia se torna um ambiente pouquíssimo favorável à introdução de elementos da superestrutura europeia, inclusive nas esferas cultural e política. Podemos depreender, portanto, que essa consciência de que vínhamos falando é parte dos motivos que levaram Dostoiévski a considerar a perspectiva ocidentalista de desenvolvimento — isso é, aquele que buscava um caminho nos moldes políticos e econômicos europeus — como um caminho destituído de fundamento na própria realidade russa.
 
Muitos críticos tomam, talvez apressadamente, essa recusa como prova da eslavofilia de Dostoiévski, mas à luz da nossa discussão e do ensaio “Sonhos e fantasias” podemos notar que mesmo essa categoria não é totalmente adequada a um pensamento tão complexo quanto o desse autor. Por exemplo, quando comenta os custos sociais da manutenção de uma aparência de superpotência internacional, o ensaísta deixa clara sua ressalva também à eslavofilia.
 
“Outra coisa é a perspectiva nacional e, por assim dizer, meio eslavófila; nela, como se sabe, há uma fé em um tipo de força interior e original do povo, em um tipo de princípio popular, completamente pessoal e original, que é inerente ao nosso povo, que o salva e o sustenta. Mas a partir da leitura do senhor Pypin, eu acordei. É claro que mantenho o desejo, e o faço com todas as minhas forças, que os princípios valiosos, rígidos e autônomos, inerentes ao nosso povo russo, realmente existissem; mas o leitor há de convir também que esses são princípios que nem mesmo o próprio sr. Pypin vê, ouve ou nota; princípios que estão obscuros, que se esconderam e não querem vir à tona de jeito nenhum? E por isso me resta descartar, involuntariamente, esses princípios que confortam a alma.”
 
Diante dessas afirmações, a nosso ver, fica evidente que Dostoiévski também ironiza esse quê unicamente russo que viria a salvar a Rússia de sua condição periférica no capitalismo. Talvez não tanto por ser incapaz de percebê-los, mas pela sua consciência da rigidez da infraestrutura, tema que vínhamos discutindo até aqui.
 
Embora Dostoiévski admita que sua visão de mundo esteja mais próxima da eslavofilia, ele não se reconhece como um membro convicto dessa vertente, mas certamente flerta com ela. Essa relação mais complexa do que uma filiação unilateral transparece no seguinte excerto do ensaio “Confissão de um eslavófilo”, publicado em 1877: “em muitas das minhas convicções sou puramente eslavófilo, embora talvez não seja completamente eslavófilo” (Dostoiévski apud Zakharov, 2012, p. 15, tradução nossa). Essa relação ambígua com a eslavofilia, e que também se aplica em certa medida a outras linhas de pensamento, não surge com a publicação desses ensaios; pelo contrário, já vinha de muito antes, pelo menos desde a década de 1850, como demonstra Zakhárov (2012).
 
A falta de adesão completa a uma ideologia e a consciência social de Dostoiévski foram fatores que permitiram sua busca por alternativas próprias às propostas pela eslavofilia e pelo ocidentalismo. Essa busca acaba por aproximá-lo do movimento pótchvennitchestvo, tendência nascida a partir do termo potchva que significa ao mesmo tempo solo e fundamento. Contudo é preciso levar em consideração que “Dostoiévski e seus coetâneos não utilizavam essa palavra, declarando-se potchevnniki, mas às vezes se chamavam de eslavófilos, apesar de ressaltarem a diferença dos seus pontos de vista sobre questões-chave” (Zakhárov, 2012, p. 11-12, tradução nossa).
 
Em suma, portanto, precisamos levar em consideração que o pensamento político do autor de Crime e castigo é extremamente refinado, muito consciente das questões de seu tempo. Encerrá-lo em uma categoria, qualquer que seja, é apagar as interessantes nuances que o tornam uma figura tão cativante, recuperada tantas vezes até os dias de hoje. Além disso, essa liberdade intelectual reivindicada por Dostoiévski dá ao seu pensamento uma estrutura de processo, de continuidade, que difere muito das leituras que veem nele uma linha cortada em dois segmentos pelo exílio na Sibéria. A nosso ver, Dostoiévski segue um caminho de individualização — que significou também o ceticismo e a ruptura com diversos grupos de intelectuais, e a polemização com muitos deles — e de crescente tomada de consciência em relação às contradições internas da realidade russa.
 
Notas
1 O texto foi publicado originalmente em 1873, mas seguiremos a tradução de Daniela Mountian, publicada pela editora Hedra (Dostoiévski, 2016).
 
Referências
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Dnévnik pissátelia / Дневник писателя (Diário de um escritor). Moskva: Éksmo, 2024
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Diário de um escritor (1873): meia carta de um sujeito. Trad. Daniela Mountian. São Paulo: Hedra, 2016.
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Dnévnik pissátelia. 1873. IX. Po póvodu výstavki. In. Sobranie sochinénii v 15 tomákh. São Petersburgo: Nauka, 1994. v. 12, p. 81–92.
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Slavianofily, tchernogortsy i zapadniki. Samaia posledniaia pierepalka. Disponível aqui. Acesso em: 30/12/2024.
FRANK, Joseph. Pelo prisma russo. Trad. Paula C. Rolim e Francisco Achcar. São Paulo, Edusp, 1992.
JAMESON, Frederic. The political unconscious: narrative as a symbolic act. London: Routhledge, 2002.
MOSER, Charles. Antinihilism in the Russian Novel of the 1860’s. Hague: Mouton & co., 1964.
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IVANOV, Anatolii Ivanovich; SOROKINA, Natalia Vladimirovna. Jeliéznaya doróga v rússkoi khudózhestvennoi kulture XIX–XX vv. Gumanitárniie naúki. Probliémy sovreménnoi filológii, Tambov, v. 12, n. 124, p. 670-679, 2011.
ZAKHAROV, V. N. Pótchvennichestvo v rússkoi literatúre: metáfora kak ideologuema. Problémy istorítcheskoi poétiki (Evanguélskii tekst v rússkoi literature XVIII–XX vv. Výpusk 7), Petrozavodsk: PetrGU, v. 10, p. 14–24, 2012.
 

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