“Entre o meu ser e o ser alheio”: metamorfoses contra o fascismo cultural

Por Afonso Junior

Ilustração: Daniel Arce Lopez (Reprodução)


 
Roberto Bolaño no seu livro Literatura nazista na América imagina uma galeria de mediocridades literárias reacionárias, algumas delas buscando referências em Philip K. Dick e Borges... Seria apenas uma piada artística genial, se a América não estivesse provando que o fascismo cultural não morreu e gerou novos produtos na era da internet. Porque é impossível não perceber que o neofascismo voltou a mobilizar as massas depois das “redes sociais”.
 
“Os alemães piraram de tanto ler, não foi?”, alguém me diz no contexto da caça às bruxas. Por exemplo, os nazistas tentaram atribuir exclusivamente à Igreja essa perseguição que teria como objetivo “destruir a verdadeira raça germânica” (DW – Helmstaedt, maio de 2023). Se imagina que em torno de 60 mil pessoas foram assassinadas por bruxaria, 25 mil delas no território da atual Alemanha. Lutero morrerá em 1546; em 1532, já temos o Constitutio Criminalis Carolina, código penal que legitima as perseguições. Depois da rebelião do Sola Scriptura, o país prendeu e raspou a cabeça de mulheres e as torturou por voarem, com a fé de que, se eram cristãs de verdade, seus corpos suportariam a tortura.
 
No Uruguai conheci um jovem que me jurava que seu pai havia lido livros que provavam que o Holocausto nunca existiu. Não se tratava, entretanto, de alguém já fanatizado e disposto a propagar o ódio, mas de alguém certo de que seus pais não mentiriam... Usei todas as minhas metamorfoses para tentar provar o contrário, suando bastante.
 
Nossas informações moldam nossa percepção, como os algoritmos sabem. No limite, depende da autoridade a força da persuasão para — a partir do cotidiano tão diverso – tornar aceitável uma verdade já desaparecida. Ou seja, além da relativa autonomia da verdade frente à produção de ideologias do poder, do carisma. É por isso que vemos a perseguição a jornalistas, escritores e professores. É por isso que Trump chama de “inimigo do povo” a Jim Acosta da CNN.
 
Em torno de 4 mil livros já foram banidos nos últimos anos nos Estados Unidos em lugares como a Flórida e o Texas. As escolas, que foram pensadas como uma forma de abrir espaço para a diversidade de pensamento, são acusadas de serem “políticas”. Supostamente os adolescentes são livres de sexo e são os professores que querem sexualizá-los. Evidentemente, a epidemia de gravidez na adolescência e homofobia segue. O prefeito de São Paulo foi eleito nessa companha de “banimento do gênero” das escolas.
 
Na Argentina, Dolores Reys, autora de Cometierra, que trabalha o feminicídio nas periferias através da narrativa estranha, recebeu um tuíte da vice-presidenta acusando o livro de "degradante e imoral". Associado falsamente ao programa de Educação Sexual Integral (ESI), o livro gerou uma paranoia de massa nas redes sociais. Na Argentina, existe um verdadeiro culto ao livro, com a Feira na Avenida Corrientes atraindo multidões, com os escritores na pista dando “charlas”.
 
Vivemos o tempo da “Literatura Nazista na América”.
 
Agora já posso revelar que a frase sobre os alemães e os livros eu ouvi num sonho. As bruxas aparecem na minha pesquisa atual, e foram romancizadas no “outro mundo”. Ele me fez mudar de tema. Conto isso porque, por outro lado, como nos diz o neurocientista Sidarta Ribeiro, a privação de sono no capitalismo desagrega a sociedade, porque sonhar é essencial para criar empatia. Supostamente, num mundo dominado por dinossauros, tínhamos muito “tempo livre” para imaginar futuros possíveis e criar as bases do que chamamos de cultura humana. “Tempo livre”, parar o tempo e narrar-se são saúde.
 
Por acaso, leio que “1 em cada 7 adolescentes, entre 10 e 19 anos, sofre com problemas de saúde mental” (Vida Simples – Bueno, janeiro de 2025). Como propostas de superação do quadro, determinar limites no uso da tecnologia, a prática de exercício físico e o incentivo à leitura de livros.
 
No meu mestrado na Filosofia, há 20 anos, chamava a atenção para o biopoder corporativo-midiático, a formação da subjetividade pelas empresas. Hoje, assustado com o tempo que o cuidado com o corpo e a sexualidade tomou em nossa sociedade, ouço um sujeito-produto. (E relações-produto nos aplicativos de orgasmo).
 
Recentemente, divulgando no Facebook uma manifestação em frente ao extinto Destacamento de Operações de Informações/ Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) do Rio (onde foi assassinado Rubens Paiva), recebi um comentário dizendo: “Será isso narrativa ou verdade?”. A cultura que não ventila recria monstros.
 
Nesses momentos, lembro de Beckett. No seu livro Gratidão, Oliver Sacks conta que um amigo, caminhando com o escritor numa linda manhã de primavera lhe pergunta: “Um dia assim não lhe deixa feliz?”, ao que Beckett respondeu: “Eu não iria tão longe”. Apesar da brincadeira, o irlandês tornou sua melancolia produtiva. Sua lentidão é movimento, e foi o que o salvou.
 
Agora que nossos pesadelos distópicos saem das páginas dos livros (está chovendo agrotóxico, por exemplo) teremos de usar nosso sonho de mamíferos para roubar tempo de elaboração. Então, por um lado, lemos menos porque passamos mais tempo no espaço virtual; por outro, a hegemonia digital dos bilionários cria monopólio de fala e pensamento. Parece que o planeta se tornou um playground de grandes fortunas que só sonham em aumentar seus lucros.
 
No Brasil, os “representantes do povo” no Parlamento trabalham para o mercado de carnes e soja, o mercado de armas ou o mercado da Bíblia. O discurso reacionário industrial inverte todas as demandas por liberdade causando confusão cognitiva e direcionando o ódio para falsos causadores — a teoria da conspiração woke, por exemplo. Na era do colapso, a indústria da morte parece decidida a eliminar a “sobra” com o genocídio étnico ou o genocídio da periferia.
 
Não tenho uma solução, mas tenho livros. Somos mamíferos. Somos da mesma substância da diversidade. Nossa adaptação são as metamorfoses. O sonho me fez mudar de tema. Sobrevivência do mais belo. Sonhar, narrar, ter empatia. Waly Salomão: “...agora, entre o meu ser e o ser alheio/ a linha de fronteira se rompeu”.

 

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