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Mostrando postagens de agosto, 2025

Oito poemas de “O orvalho numa folha de lótus”, de Ryokan

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Por Pedro Belo Clara (Seleção e versões)* I. regresso à aldeia onde nasci após vários anos de ausência: doente, entro na estalagem e fico a ouvir o cair da chuva um hábito, uma taça de pedinte –– é tudo o que tenho acendo incenso e esforço-me por meditar  toda a noite um som constante além da janela escura dentro de mim, pungentes memórias dos longos anos de peregrinação II. quando jovem, deixei os estudos e aspirei a ser santo vivendo como monge mendicante por muitas primaveras vagueei, aqui e acolá enfim retorno a casa, instalo-me debaixo dum pico rochoso vivo em paz numa cabana de palha escutando as canções dos pássaros as nuvens são os meus vizinhos em baixo, uma nascente pura onde refresco corpo e mente por cima, picos altaneiros e carvalhos que dão sombra e lenha livre, tão livre, dia após dia –– não mais desejo partir III.  o que é esta minha vida? errante, confio-me às mãos do destino por vezes sorrisos, por vezes lágrimas nem um leigo, nem um monge uma chuva primaveri...

Boletim Letras 360º #654

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DO EDITOR Na aquisição de qualquer um dos livros pelos links ofertados neste boletim, você tem desconto e ainda ajuda a manter o Letras. Milton Hatoum. Foto: Wanezza Soares LANÇAMENTOS Neste último e extraordinário capítulo da trilogia O lugar mais sombrio , o autor dos premiados  Dois irmãos e  Cinzas do Norte acrescenta uma perspectiva nova à história, que faz com que a saga de Martim ganhe sentidos e lances imprevistos . Neste drama familiar, com forte pano de fundo histórico e político, estilo que consagrou Milton Hatoum, o tempo do amor, das perdas e dos enganos é o próprio tempo da ficção, que aqui surge em máxima potência através da voz trágica de uma personagem assombrosamente resiliente ― e absolutamente inesquecível. “É possível explicar ou entender certos sentimentos? [...] É preciso dar tempo ao passado.” Estamos no fim dos anos 1960. É Lina, mãe de Martim, quem nos conduz pelos desvãos da época. A distância em relação ao filho cresce no turbulento contexto d...

Teresina etc. — algumas lições de vida breve

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Por Lucas Paolillo “Para Dona Teresina a igualdade era uma religião [...]. Isso é o que ela chamava de afetividade socialista. Ela vivia de dentro a igualdade, eu aprendi muito com ela essas coisas. E depois era uma pessoa que mostrava que socialista não pode ser vaidoso, o socialista não pode ser egocêntrico, de modo que o que eu aprendi com ela foi muito essa coisa ética. Eu, quando vejo socialista pavão, fico apavorado” — Antonio Candido, excerto de Antonio Candido, o observador literário (1995). Antonio Candido. Foto: Versátil Home Video Quando retomamos os livros escritos por Antonio Candido, Teresina etc. (1980) possivelmente se situa entre os menos comentados como unidade fechada. O que não quer dizer que em seu interior não figurem ensaios célebres. Fora de dúvida, seu texto mais conhecido é também o mais antigo: “Raízes do Brasil” (1969), publicado originalmente como prefácio à quinta edição do livro de Sérgio Buarque de Holanda — admiração cultivada ao ponto de Can...

Memórias de Lázaro, de Adonias Filho

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Por Pedro Fernandes Adonias Filho. Foto: Brigitte Friedrich Memórias de Lázaro marca a estreia de Adonias Filho no romance. Antes do livro, o autor era conhecido por sua presença na crítica literária, outro ramo da sua obra que se desenvolveu amplamente e nos legou publicações dedicadas à obra de Cornélio Pena, Tasso da Silveira, o romance brasileiro de 30 e outros temas indispensáveis para pensar seu lugar e seu tempo. A vertente crítica e ensaística, aliás, ultrapassa a do romancista — em quantidade de obras, porque em qualidade, o escritor se revela, a julgar por este livro de 1952, primoroso. Trata-se de um romance que, se os conterrâneos do romancista ou não, nossos contemporâneos, conseguissem o milagre da humildade de reconhecê-lo não cairiam em erros tão grosseiros nas suas produções que só por escuso interesse, excesso de camaradagem e claro desconhecimento de obras como Memórias de Lázaro são designadas excepcionais e aceitas como tal por um público quase sempre alienad...

Eddington, de Ari Aster

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Por Naief Yehya A era da pandemia de Covid oferece uma ambientação ideal para inúmeras distopias e pesadelos apocalípticos, bem como uma excelente metáfora para uma variedade de catástrofes. O isolamento, os contágios, as máscaras, o vírus, a pausa na vida social e econômica, os embates ideológicos e a politização das medidas de controle e mitigação deixaram cicatrizes profundas nas sociedades, que ainda não se revelaram completamente.  Ari Aster lançou sua carreira com os perturbadores Hereditário (2018) e Midsommar: o mal não espera a noite (2019), que o consolidaram como um jovem mestre do terror. Depois desses vieram a frenética e edipiana “odisseia neurótica” (Aster dixit ) Beau tem medo (2023), com a qual se lança ao humor negro mais volátil. Seu terceiro longa-metragem, Eddington, retoma a ironia brutal do anterior, mas se concentra na disfunção cataclísmica da política e da cultura estadunidense, particularmente após as fraturas no tecido social intensificadas pelo trauma...

O filho do cometa Halley

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Por José de la Colina Mark Twain. Arquivo Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos.   1 As datas existem para serem esquecidas, escreveu Jorge Luis Borges, e talvez ele tivesse razão, porque na maioria das vezes minúcias cronológicas apontam para eventos triviais que servem apenas para entreter o leitor habitual de jornais com aniversários, horóscopos, palavras cruzadas e histórias em quadrinhos. Mas às vezes pode-se dizer que coincidências na fluidez do tempo buscam moldar ou definir um destino humano. É o caso das datas inicial e final entre as quais transcorreu a vida do apreciável escritor estadunidense Mark Twain. Em 30 de novembro de 1835, na Flórida, Missouri, um certo Samuel Langhorne Clemens, a quem a imortalidade literária só reconheceria pelo pseudônimo de Mark Twain, nasceu na exata coincidência do aparecimento do Cometa Halley. Isso lhe permitiria dizer mais tarde, meio sinceridade e brincadeiras, que era “um visitante misterioso e talvez sobrenatural vindo de outros...