Última noite e outros contos, de James Salter

Por Rodrigo Fresán

James Salter. Foto: Pascal Perich


 
Em uma conversa com o escritor Dan Pope publicada pela primeira vez na revista The Believer e posteriormente incluída no imprescindível Believer Book of Writers Talking to Writers (2005), James Salter (1925-2015) discute o que considera os melhores e os piores aspectos do ofício de escritor.
 
O pior é “ter que fazê-lo. Qualquer um lhe dirá a mesma coisa. Ou ter feito e fracassado”. O melhor é “a grandiosidade desse mundo e sentir-se parte dele. Há uma realidade no mundo da escrita que é muito maior do que outras realidades, mesmo que não possa substituí-las. Quando você lê algo que parece maravilhoso, não há a sensação desconfortável de ter esgotado algo. Aquilo estará sempre lá, esperando que você regresse. A emoção jamais desaparece.”
 
Dito isso, vale a pena comemorar que Salter tenha feito isso algumas vezes (o mais difícil e exaustivo) para que nós (a coisa mais simples e gratificante) possamos experimentar repetidamente a maravilha da precisão e do lirismo de cada um dos contos reunidos em Última noite (2005).
 
Uma continuação natural de Dusk and Other Stories (sua única coletânea de contos até então publicada, em 1988), pode-se dizer que o tema mais ou menos comum que conecta as dez histórias de Última noite é a revelação repentina de um segredo, a admissão dolorosa de uma oportunidade perdida ou uma guinada repentina para o caminho errado, a iluminação de uma região mais ou menos escura que, uma vez iluminada, mesmo à luz de um fósforo, nunca mais será a mesma.
 
Ou — melhor ainda — nas palavras de Salter, na conversa mencionada: “Passamos por situações de descoberta o tempo todo ao longo de nossas vidas. De repente, sabemos mais de alguém ou algo sobre nós mesmos.” Última noite — seus “heróis”, não vencidos, mas resignados — também dá conta, segundo o escritor, “não da queda dos ídolos, mas o desaparecimento de um mundo, quando tudo o que você conhece é velho... É como ter atravessado uma galáxia inteira. Depois de um tempo, você começa a entender do que se trata...”
 
Mas essas súbitas percepções salterianas têm pouco ou nada a ver com os maneirismos do satori zen, do esplendor tchekhoviano ou da epifania joyciana. Também estão longe das explosões quase místicas com que John Cheever costumava encerrar seus contos ou dos terminais começos com que Raymond Carver abria a porta para um momento de uma narrativa. A obra de Salter — talvez, juntamente com as de Norman Mailer e William Styron, o último expoente de um “modelo” de escritor Made in USA, vitalista, bon vivant, endurecido pela experiência, mas sem nunca perder a elegância — é algo estranha, imprecisa, e que parece começar e terminar com ela mesma.
 
Certa vez, afirmei que “enquanto Hemingway é um artista do tipo ‘macho’ e Fitzgerald do ‘masculino’, Salter, por outro lado, é um artista da ‘masculinidade’. O mesmo, mas diferente e — digamos de forma rápida e discreta — talvez melhor escrito”. Não vou recuar agora. Também continuo a pensar que Salter funciona como uma mutação avançada dos anteriores, ao mesmo tempo que se apresenta, talvez involuntariamente, como um elo virtualmente perdido entre a Geração Perdida e o Realismo Sujo. A sua é uma delicadeza rude que também se encontra nos livros inspirados por suas missões como soldado voador na Guerra da Coreia (The Hunters, 1955; The Arm of Flesh, 1961, reescrito em 2001; e a autoantologia Gods of Tin, 2004) e, de forma ainda mais admirável e misteriosa, nos romances “civis” que podem lidar com o olhar pouco confiável de uma testemunha mais ou menos íntima teorizando sobre o amor de um casal de desconhecidos (o magistral A Sport and a Pastime, 1967), o fim inexorável de um casamento (Light Years, 1975), ou as ascensões quase existencialistas de dois alpinistas (Solo Faces, 1979) e que volta a desfrutar da certeza de que Salter sabe o que está fazendo e o faz como ninguém.



Companheiro de bebida e irmão de armas de nomes como Irwin Shaw, James Jones e George The Paris Review Plimpton, a quem a dedicou Última noite, elogiado por nomes e estilos tão diversos e admiráveis ​​quanto Susan Sontag, John Irving, Richard Ford, Michael Herr e Harold Bloom, comparado a Albert Camus e Claude Monet, basta ler o conto que dá título a este livro, o último dos dez, para compreender a incompreensibilidade do gênio de Salter. Uma pequena, terrível e crepuscular anedota que outros narrariam com humor negro ou como uma lenda urbana e doméstica bestial.
 
James Salter, por sua vez, opta pelo caminho aparentemente mais simples, mas na verdade mais difícil: contar a história com as palavras certas, um tom equilibrado e sereno, a calma de quem voa acima das nuvens de tempestade, mas que também sabe que terá que atravessá-las para aterrissar. Bons reflexos e classe, ou, segundo Salter, “o que chamam de meu estilo, que nada mais é do que a insistência, geralmente inconsciente, em umas dez mil palavras que acabam formando uma espécie de impressão digital e que determinam a natureza do que faço”.
 
O fato de o leitor sentir, com este último conto, o mesmo que sentiu com os nove anteriores não deixa margem para dúvidas nem nos permite pensar em milagres esporádicos: Salter — que declarou  “Meu piano ainda está afinado, e eu gostaria de tocar uma última nota. Já sabem, os escritores nunca se aposentam. A única maneira de detê-los é arrastá-los para fora e matá-los” — tem uma pontaria muito boa.
 
Principalmente, quando se trata de escrever “sobre certas pessoas e coisas porque sabe algo sobre elas e quer contá-las. Escrever é consequência do desejo de contar. E eu não sou um desses escritores que dizem estar à mercê de seus personagens. Tenho clareza sobre o que aconteceu com eles e sei mais ou menos como aconteceu; não há surpresas para mim. Sempre acreditei que as probabilidades na vida estão contra você, e é por isso que gosto de pessoas que partem em busca de algo grandioso, mesmo que essa grandeza não exista de fato. Suponho que o estoicismo também tenha algo a ver com isso. Não é algo que tento analisar com muita frequência, mas nada funciona tão bem para mim quanto encontrar exemplos e colocá-los no papel. Sim, tudo se resume a chegar ao topo”.
 
Feito então. O ápice da grandeza mundana, no extremo oposto da galáxia. Lá, aqui em cima, onde ninguém jamais esteve além dele, James Salter plantou — retornou e plantou novamente — a marca de sua bandeira inconfundível e inimitável. 


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Última noite e outros contos
James Salter
Samuel Titan Jr. (Trad.)
Companhia das Letras, 2008
176 p.



* Este texto é a tradução livre de “La última noche, de James Salter”, publicado aqui, em Letras Libres.

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