Por Amanda Fievet Marques
 |
Nelson Rodrigues. Arquivo Nacional. |
Publicada na Manchete Esportiva, em 4 de fevereiro de 1956, a
crônica “Rigoletto de lança-perfume” sintetiza em seis parágrafos os motivos
pelos quais se pode afirmar que Nelson Rodrigues é um grande autor em língua
portuguesa, ou em “brasileirês”, ou ainda, em “carioquês”. A inserção de
gírias, termos e expressões populares aliados a estruturas literárias como a da
máxima moral, e a procedimentos literários como a metáfora, a antítese, a
sinestesia, a paranomásia, concorre à afirmação de que a idiossincrasia, a
especificidade do estilo literário de Nelson Rodrigues reside justamente no
hibridismo entre registros da língua portuguesa, com destaque para as variações
do português falado no Rio de Janeiro, e para a mobilização de elementos
visuais e táteis, o que torna sua linguagem extremamente sensorial.
No primeiro parágrafo dessa crônica, Nelson relata uma cena que ele
teria assistido no dia anterior, no coração do Rio de Janeiro. Na esquina entre
a Carioca e a Uruguaiana: um rapa. Rapa, que é uma gíria registrada no Dicionário
da Gíria Brasileira de Manuel Viotti, que a define como o “fiscal da
prefeitura do Distrito Federal para agir contra ambulantes clandestinos” (Viotti,
1945, p. 359). Essa noção se amplia, alguns anos depois, à ação direta e súbita
dos policiais contra os ambulantes nas ruas.
Essa mesma cena — que assume a força e os contornos dramáticos do Nelson
Rodrigues dramaturgo em plena crônica —, teria causado na rua um espasmo
coletivo, e ela é alçada pelo cronista ao estatuto de uma “pequena, incisiva e
inefável lição de vida” (Rodrigues, 1993, p. 22). Por meio desse tom
existencial aliado à enumeração adjetiva (são três adjetivos encadeados), junto
de uma alusão posterior ao Tolstói de Guerra e paz, Nelson dá ênfase,
ritmo e força a essa cena do rapa que, no ano seguinte, em 1957, comporá,
efetivamente, o último ato da peça Viúva porém honesta.
No segundo parágrafo, percebe-se todo o talento do frasista. Ele
escreve, aqui, uma máxima sobre o medo, que guarda com a tradição clássica dos
moralistas franceses do século XVII e XVIII, em especial com La Rochefoucauld e
sua investigação dos vícios e virtudes, a semelhança de observarem a conduta
humana. A proposição de Nelson, aqui, é que “o medo é um grande e eficaz
nivelador” (idem). Ao contrário dos moralistas clássicos, que utilizam a
concisão racional, Nelson Rodrigues mobiliza imagens e sensações. Então, na
máxima sobre o medo, ao seu modo sensorial, digamos, ele conclui: “Sob o
estímulo da pusilanimidade, tubarões e pé-rapados largam a mesma baba, elástica
e bovina” (idem).
Para explicitar a noção de que o medo iguala a todos, independente de status
e classe social, Nelson recolhe na língua oral, os termos populares “tubarões”
e “pé-rapados”. Em seguida, para transmitir a noção de submissão e rendição
absoluta ao que nos assusta a todos enquanto seres humanos, ao que causa medo,
ele utiliza uma metáfora animalesca “largam a mesma baba”, e conclui por uma
sinestesia ao qualificar a baba como “elástica e bovina”.
Essa combinação sensorial inusitada, com a mistura de elementos de
diferentes ordens (visão, tato etc.) acaba por intensificar a imagem. Ainda
nesse parágrafo, Nelson Rodrigues descreve que tudo não passava de alarme
falso, e para dar a ver o contraste entre o estado inicial de medo, que foi
“lavado” das expressões, das caras das pessoas, e a euforia subsequente, que é
“deslavada”, ou seja, excessiva e imoral, Nelson utiliza essa paranomásia (isto
é, a semelhança sonora entre palavras que possuem significados diferentes),
“lavadas de medo/deslavada euforia”. Esse jogo de palavras, além de
intensificar o contraste, retoma um dualismo muito presente no teatro rodrigueano,
entre a pureza e a impureza. “Lavadas de medo” sugere uma imagem de limpeza,
como se o medo fosse algo físico que pudesse ser removido, lavado das pessoas,
o que cria uma sensação tátil de purificação. Enquanto “numa deslavada euforia”
pode sugerir algo sem vergonha ou escrúpulos, que contrasta com a noção de
pureza de “lavadas”, evocando a imagem de algo que perdeu a integridade,
desnudando o cinismo das pessoas, todas elas.
No terceiro parágrafo, o Nelson frasista ataca novamente, agora ele
escreve sobre o “problema vital” do ser humano. Ele abre com um “pois bem” que
embala o leitor com um tom coloquial, prosaico e despreocupado, que logo é
surpreendido com uma revelação sobre a consciência humana é [ser] o medo do
rapa. A máxima é a seguinte, diz Nelson: “Pois bem. Diante do paroxismo geral e
do meu próprio, descobri o seguinte: o nosso mais agudo, o nosso mais
exasperado problema vital é o rapa.” (idem).
Essa máxima opera por uma subversão de expectativas, que tem a ver com a
natureza do cômico. A construção da frase leva o leitor a esperar uma análise
profunda de questões existenciais ou sociais, mas o resultado é a identificação
do “rapa” como o problema central. A subversão provoca um riso involuntário,
pois o leitor se espanta ao descobrir que o anunciado “problema vital” é uma
questão tão mundana, mas que descortina a hipocrisia e a vaidade.
Ao englobar todos os tipos humanos e camadas sociais, “Do psicanalista
nababesco ao pobre-diabo dostoievskiano, da senhora mais excelsa ao vigarista
mais frenético — cada um de nós vive esperando que o rapa o lace, o recolha, na
primeira esquina” (ibid., p. 22-3), Nelson também exprime uma visão
cômica e teatral do mundo, como se a vida fosse uma comédia de erros onde todos
estão em constante estado de alerta, à espera de que um fenômeno tão específico
venha subitamente despi-los da imagem social que os protege.
No quarto parágrafo, o narrador propõe uma antítese em relação ao que
foi afirmado anteriormente: todos reagem com medo, “com esse pânico municipal”,
com exceção do juiz de futebol: “Repito: — é o único ser inamovível,
inexpugnável” (ibid., p. 23). Nelson utiliza um epíteto de intensidade
para enfatizar a resistência absoluta do árbitro: os adjetivos “inamovível,
inexpugnável”, que evocam, além disso, um registro mais literário.
No quinto parágrafo, ele exemplifica a antítese anterior por meio de uma
hipérbole, “o indivíduo que, sozinho, resiste a 200 mil pessoas” (idem); e de
uma metáfora para superar os obstáculos, “pode quebrar o chifre de qualquer
rapa” (idem). Há uma ironia também na sugestão de que um simples
árbitro, ao resistir à multidão, é mais poderoso que a própria autoridade
organizada (o “rapa”). Isso subverte a expectativa de fragilidade do juiz
diante de situações caóticas e brinca com a ideia de que ele, sozinho, pode
vencer qualquer força de repressão.
No sexto e último parágrafo, Nelson propõe uma antítese da antítese, ou
a negação da negação de sua primeira tese: o caso de um juiz que sucumbe. Ele
propõe por meio de uma metáfora do cultivo, que num passado não muito distante,
o árbitro “lavrava o suborno” (idem). Também utiliza duas gírias. Primeiro,
“amolecer a arbitragem”, que, para Viottti é gíria para “subornar” no âmbito do
futebol (cf., Viotti, 1945, p. 39). E, em segundo lugar, “caçar”. Nelson diz:
“Na época, caçava-se louco no meio da rua, a pauladas” (Rodrigues, 1993, p.
23). “Caçar”, aqui, é uma gíria para “procurar, buscar” (Viotti, 1945, p. 87).
Enfim, a crônica se encerra pela imagem de um árbitro desonesto que
enlouquece após um esgar de pudor. E, o que também é um ritornelo que reaparece
muitas vezes na obra do Nelson, a imagem da loucura. Aqui, a imagem do árbitro
que se deixa levar pela carrocinha “feliz e jucundo como um Rigoletto de
lança-perfume” (Rodrigues, 1993, p. 23), reúne o grotesco do doido ao bobo da
corte da ópera bufa, em contraposição à imagem anterior da rigidez de um juiz
inamovível.
Referências
RODRIGUES, Nelson. À Sombra das Chuteiras Imortais – Crônicas de
Futebol. Seleção e notas: Ruy Castro. São Paulo: Companhia das Letras,
1993.
VIOTTI, Manuel. Dicionário da Gíria Brasileira. São Paulo: Editora Universitária, 1945.
Comentários