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Mostrando postagens de setembro, 2025

Planvs ad coeli lilia

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Por Eduardo Galeno  A segunda freira. Chaucer. MeisterDrucke. A hagiografia nem seria um gênero. (Às vezes, pensando no nome pelo qual ela insere sua estrutura, seu discurso e sua prática, sinto que seja.) O que me dá, certamente, uma conclusão, e prefiro começar o texto assim, é que a forma hagiográfica não pode ser exposta à penúria da biografia (ver o ensaio de Flora Süssekind que exagera a proposição referida). O viés do elogio, isto é, da sutileza em resguardar a autoridade, mas ao mesmo tempo a humildade, é o que reparte. Ao contar a história dos santos, não se conta nada além da ascensão (mesmo, por exemplo, que eles tenham vivido uma vida de pecado anteriormente). Tudo é sobre o Amor, a clausura da revelação e do domínio sagrado, tudo é sobre como um santo pode salvar os outros fiéis (e, quem sabe, os gentios). Hegel cita que o saber não subtrai a substância divina, já que ela própria se designa a se mostrar conhecimento. Essa é a tese que a dialética hegeliana interpõe. O...

Arisca e frágil: assim era Virginia Woolf segundo Victoria Ocampo

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Por Andrea Calamari Virginia Woolf e Victoria Ocampo fotografadas por Gisèle Freund Victoria está em seu quarto de hotel, onde se hospeda sempre que vem a Londres. Ela calça as meias e os sapatos, arruma o vestido, pega um casaco porque o tempo nunca está bom na cidade, olha seu reflexo no espelho e se sente confortável com o que vê. Já não é mais jovem, mas tudo está em seu devido lugar. Ela emerge desse silêncio quando alguém anuncia da recepção que o Sr. Huxley chegou. Aldous Huxley está no saguão do hotel esperando a amiga argentina, que, no andar de cima, está terminando de ajustar os ganchos do chapéu que comprou em Paris — os únicos que gosta de comprar — e logo desce as escadas ou talvez o elevador para o encontrar. É uma tarde agradável, e eles irão ver uma exposição de fotos do incrivelmente famoso e eclético Man Ray. Se tiverem alguma sorte, se Victoria Ocampo tiver sorte, Virginia Woolf estará na exposição, e Huxley os apresentará. Virginia Woolf publica romances, ensaios, ...

Seis poemas de “Corvo”, de Ted Hughes (1970)

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Por Pedro Belo Clara   Ted Hughes. Foto: Noel Chanan A PORTA Debaixo do sol, um corpo. É o crescimento do mundo sólido. É parte do muro terreno do mundo. As plantas da terra — como os genitais E o umbigo sem flor Vivem nas suas fendas. E também algumas criaturas da terra — como a traça. Todos enraizados na terra, ou alimentando-se de terra, terrenos, Espessando o muro.  Apenas aí existe uma porta, uma porta no muro —  Uma negra porta: A pupila dum olho. Através dela vem Corvo. Voando de sol em sol, encontrou a sua casa. CORVO COMUNGA “Bem”, disse Corvo, “O que fazer primeiro?” Deus, exausto com a Criação, ressonava. “O que fazer?”, disse Corvo, “O que fazer primeiro?” O ombro de Deus era a montanha em que Corvo se sentava. “Vem”, disse Corvo, “Vamos discutir o assunto.” Deus deitado, boquiaberto, uma enorme carcaça. Corvo arrancou um pedaço e engoliu-o. “Irá o enigma revelar-se à digestão, Por escutar além do entendimento?” (Essa foi a primeira brincadeira.) Sim, é verdad...

Boletim Letras 360º #658

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DO EDITOR Na aquisição de qualquer um dos livros pelos links ofertados neste boletim, você tem desconto e ainda ajuda a manter o Letras . Georges Perec. Foto: Louis Monier LANÇAMENTOS Considerado por Italo Calvino “uma das personalidades literárias mais significativas do mundo”, Georges Perec é o autor de As coisas  (1965), O sumiço  (1969) e A vida modo de usar  (1974), livros que conquistaram o meio literário francês por seu experimentalismo e radicalidade. Também inclassificável, Espécies de espaços  (1974), inédito no Brasil, se situa na fronteira entre o ensaio, o poema e a arte conceitual. Mobilizando conceitos de arquitetura, artes visuais, poesia, cinema, antropologia e geografia, o livro interroga as diversas camadas que informam nossos hábitos e percepções, discorrendo sobre temas como a página, a cama, o quarto, o prédio, a rua, o bairro e a cidade. O presente volume traz um posfácio do pesquisador Jean-Luc Joly e um conjunto de fac-símiles inéditos de Per...

Heliogábalo, a peça inédita de Jean Genet

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Por Amanda Fievet Marques Jean Genet. Foto: Tony Davis Publicada em 4 de abril de 2024 pela Gallimard na Collection Blanche, a peça inédita do escritor francês, Jean Genet, Heliogábalo , escrita em 1942 durante sua prisão em Fresnes, na França, e encontrada recentemente em uma biblioteca de Harvard, acaba de sair no Brasil pela editora Ercolano, com tradução de Régis Mikail e Renato Forin Jr. A peça em quatro atos trabalha fatos históricos urdindo-os à ficção, e reimagina a vida e o assassinato do imperador romano Heliogábalo (203 d. C. – 222 d. C.).  *** O primeiro ato se inaugura com um áugure que lê a sorte para a avó e a tia de Heliogábalo nas tripas de um frango. Prenuncia “pelo preto do fígado e pelo verde da moela” (Genet, 2025, p. 39) que ele morrerá de forma abjeta. O presságio recolhido no despojo do frango cujo estatuto é sagrado dá início a uma conspiração entre a avó e o general, ambos decididos a tramar contra a vida de Heliogábalo, já que ele arrasta o nome do Impéri...

O deserto e sua mente, de Jorge Baron Biza

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Por Pedro Fernandes Jorge Baron Biza. Foto: Arquivo Clarín Com quantos bons livros se faz um escritor? Jorge Barron Biza reafirma que um é suficiente. O deserto e sua mente , seu único romance, foi publicado pouco antes do suicídio que fechou um ciclo de horrores iniciado desde quando o pai e a mãe desenvolveram o mesmo destino. A morte do pai se desenrola depois de atacar a mulher com ácido, episódio que se encontra na gênese do livro em destaque. Aos sedentos do nosso tempo transbordante de autoconfissões, um aviso: as tintas autobiográficas não limitam o desenvolvimento ficcional. Barron Biza reafirma com este romance o que há muito sabemos e é dessas certezas firmadas como a terra é redonda: vida e obra são extensões distintas, embora não exista obra literária em que uma porção da vida nela se infiltre; seus materiais derivam das múltiplas possibilidades do vivido. Depois de uma longa estadia entre os cuidados médicos em Montevidéu, Eligia procura o que a medicina poderia oferecer ...

“As mortas”: horror e humor made in México

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Por Ernesto Diezmartínez  “À memória e ao gênio de Jorge Ibargüengoitia”, diz a dedicatória que aparece no final do sexto e último episódio de As mortas (México, 2025), a primeira série televisiva dirigida por Luis Estrada, fiel, conscienciosa e até laboriosamente baseada no romance homônimo escrito pelo escritor de Guanajuato e publicado em 1977. É uma homenagem simples que soa sincera e, suspeito, até pessoal.  É provavelmente uma coincidência, mas a obra-prima inicial e insuperável de Estrada, a sátira anti-PRI A lei de Herodes (1999), compartilha o mesmo título — embora a premissa seja completamente diferente — do hilário conto escatológico de Ibargüengoitia que deu nome ao seu livro de contos de 1967. Há também o detalhe biográfico de que, ao dirigir As mortas , o diretor de Um mundo maravilhoso (2006) seguiu os passos de seu pai, o vigoroso cineasta populista José Estrada, que na época dirigiu a louvável, embora irregular, adaptação de outro romance homônimo de Ibargüe...

Palmeiras selvagens, de William Faulkner: notas de leitura

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Por Vinícius de Silva e Souza Helen Frankenthaler, The Bay , 1963 (detalhe) Li O som e a fúria  em julho de 2022 e, por mera coincidência,  Absalão, Absalão!  no mesmo mês, dois anos depois. Agora, no mês sete deste ano, pego Palmeiras selvagens  na minha estante como se para manter a tradição de todo inverno: ler um grande romance de William Faulkner.  Creio ser difícil dizer qual desses livros me provocou maior fascínio: se as múltiplas vozes fantasmagóricas de  Absalão, Absalão! , se a desordem brutal de O som e a fúria ou a  forte calmaria do mais recente. Sei que força é aqui a palavra da vez. Mesmo que em momento algum as narrativas que constituem esse livro — “Palmeiras selvagens” e “O velho” — se cruzem, esse é o cerne dessa obra mais madura do autor: a força. E não deixa de ser surpreendente como em tão pouco tempo Faulkner foi capaz de produzir uma sequência de romances tão grandiosos. Nenhum desses que eu li escapa da pequena redoma que ch...

Zanguézi, de Velimir Khlébnikov, o futurista dos futuristas

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Por Rafael Bonavina Quando falamos das vanguardas literárias russas (ou soviéticas), talvez o primeiro nome que nos venha seja o de Vladimir Maiakóvski. Essa relação quase imediata entre os dois pode ser explicada, em grande medida, pela importância fundamental que esse autor tem para o desenvolvimento da literatura brasileira desde a segunda metade do século XX.¹ De um ponto de vista mais ligado à crítica literária, temos as declarações de Antonio Candido, em “Notas de crítica literária: um poeta e a poesia” (1943); o manifesto do Concretismo paulista, intitulado “Plano-piloto para a poesia concreta” (1958/1961), assinado pelos irmãos Campos e Décio Pignatari. E muitos anos antes, ainda na década de 1930, Mário de Andrade escreveu seu ensaio “Poesia proletária”, em que toca, de passagem, no nome de Maiakóvski.  A essa altura, o leitor já deve estar se perguntando por que o título fala de um russo com nome impronunciável, se aqui estamos falando de outro russo com nome esquisito. A...