Por Juliano Pedro Siqueira
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Flannery O'Connor. Foto: Andalusia Collection. |
No ano em que se comemora seu centenário de nascimento, não
haveria momento mais oportuno para mergulhar nas histórias tragicômicas de
Flannery O’Connor (1925-1964). A proposta deste texto é analisar seu intrigante
romance de estreita, Sangue sábio (1952). A obra em questão carrega a
problemática religiosa, contudo, possibilita o leitor — dentro desse complexo universo espiritual — adentrar em camadas mais
profundas, ocultas no submundo de cada personagem; dado o nível de sofrimento
e angústia que as afligem —
não se restringe apenas a visão míope que detém sobre o sagrado, mas da própria
visão de mundo que as cercam. O sentimento religioso exacerbado e o fanatismo
presente na trama, são sintomas e fugas oriundas de conflitos internamente
subjacentes, marcas de traumas e vivências passadas. A rejeição, a repressão e
a indiferença são elementos visivelmente latentes e inquietantes em indivíduos
que tentam, a qualquer custo, se afirmarem em um mundo que parece
ignorá-los.
A convivência e a relação crítica que a autora estabelece
com a sociedade civil de sua época, altamente religiosa e segregada
racialmente, serviram-na de inspiração —
com seu peculiar humor negro, cômico e trágico — na elaboração de contos e romances que nos colocam
defronte a temas espinhosos e de difícil manejo, já que no delinear da trama,
os mesmos dilemas continuam a espinhar a carne, tanto de virtuosos quanto de
pecadores. Personagens deslocadas em seus mundos — muito semelhante a quem vive submerso em delírios
e devaneios —, envoltas
de uma atmosfera lúgubre, revestidas de linguagem rebuscada e comportamentos
obsessivos e compulsivos, atuam em cenário que nos remete ao absurdo de uma
vida caótica. Hazel ou Haze, o protagonismo que dá início ao romance, sofre de
distúrbios com sua paradoxal espiritualidade —
a própria ambiguidade do nome, alude a algo nebuloso, o que talvez justifique
os óculos que guarda da sua finada e fervorosa mãe, metáfora de um objeto que
possa servir para corrigir sua deturpada visão —, que o leva a ignorar pessoas e circunstâncias,
como se não existissem; restando-lhe como forma palpável de existência, seu
obstinado envolvimento com a única verdade que consegue suportar: a densa
narrativa psicológica ao anunciar a Igreja sem o Cristo Crucificado.
Não apenas Hazel sofre desses distúrbios em relação ao
sagrado e à vida, mas outras personagens —
semelhante modo —, são
arrastadas ao mesmo torvelinho de sentimentos exasperantes, transformando-as em
criaturas paranoicas, cuja obsessão pela verdade culmina em convulsões
violentas e atos criminosos, desencadeando entre elas, episódios grotescos.
Enoche — outra personagem crucial na
trama —, também se apresenta como
figura ambígua, batizando o título da obra em homenagem aos seus presságios e
vaticínios herdados do pai. Sobre Enoche, Flannery O’Connor concedeu-lhe toda
uma carga simbólica, ao fazer alusão à personagem bíblica — que detém tanto o sangue cruel herdado pela
descendência de Caim, quanto da inocência e pureza de um servo amado —, semelhante ao Enoque que
fora recolhido aos céus sem passar pela morte. Esse duplo que habita à natureza
de Enoche o faz acreditar apaixonadamente em seus instintos sábios, guiado por
um sangue abençoado, capaz de despertar-lhe expectativas de acontecimentos
especiais; mas que, no fundo, impera em si o desespero, terminando por
aprisioná-lo em ações controversas, criminosas e egoístas.
Flannery O’Connor desenvolve uma trama que embaraça propositadamente a visão das suas personagens, como se elas sofressem de cegueira coletiva, onde cegos guiam e se inspiram em outros cegos, até que todos pereçam. Essa epidemia da cegueira — parodiando o grandioso romance de Saramago —, é notoriamente revelada em Sangue sábio, como verdade incontestável e deletério. O icônico cego que defende um falso credo para obter vantagem econômica, desperta em Hazel uma insana obstinação, levando-o a segui-lo — não como discípulo —, mas daquele que sente um ar de charlatanismo por trás de óculos que ocultam nas cicatrizes faciais, algo de blasfemo. O cego Hawks e sua cúmplice filha de nome Sabbath, deparam com a descrença de Hazel, não imaginando que o mesmo buscava desmascará-los, para assumir definitivamente as pregações que conduziria aquela cidade à redenção sem Cristo. Todos na trama buscam preencher suas almas inquietantes com a porção misteriosa do sagrado, sob a ótica nebulosa e disfuncional, com que se apropriam da concepção de fé. A salvação — por intermédio de Cristo ou não — visava substituir um rito por outro, de um Deus transcendente por um deus de carne e osso, o pecado e a culpa, pela liberdade sem angústia.
A mensagem do sagrado persegue implacavelmente a vida de Hazel, como se fosse fruto de um oráculo ou profeta, como Jonas, que ao deixar de cumprir a missão de pregador, foi regurgitado no ventre de um grande peixe. Durante a narrativa, o jovem egresso da guerra é confundido como pregador — pois possuía características comuns aos pregadores convencionais —, mesmo rejeitando tais comparações. Seja no quarto de uma prostituta, na fala de um misterioso taxista ou nos inúmeros letreiros e anúncios espalhados pelas ruas desertas de Taulkinham; tudo remetia ao evangelho que ele tanto desprezava. De forma onipresente, a mensagem cristã cruzava os caminhos labirínticos de Hazel, como personagens kafkianas, perseguidas por forças ocultas que as oprimiam. O evangelho do Cristo Crucificado soprava, impiedosamente, fortes ventanias em suas entranhas, a fim de reacender a fagulha que estava na iminência de se extinguir. Ele buscava a todo custo negar essa força que lhe parecia intrínseca e visceral.
É possível pensar que a visão de espiritualidade presente na
obra de O’Connor, aponta para mais de uma direção. Ao mesmo tempo que alude
para uma fé simples e acessível aos corações malditos, a apresenta em outros
momentos como fenômeno complexo, diante de criaturas que relutam com o sagrado,
como Jacó lutou com um anjo. Apesar das críticas pontuais, a autora sugere
manter a questão em aberto, de modo que cada mortal vislumbre e encontre, à sua
própria maneira, a redenção. A experiência do sagrado dentro da perspectiva em
voga no romance, permite afirmar que em alguma medida a crença se manifesta em
solos humanos áridos e dicotômicos; talvez pela própria condição controversa da
natureza humana, que vive em conflito permanente entre os anseios de bondade e
graça divina com suas paixões, desejos e angústias existenciais.
A busca pelo sagrado em toda trajetória do romance é
rechaçada por abnegações e decisões radicais. O autoflagelo ganha proporções
sádicas, o dogmatismo anula o diálogo e a violência suplanta a tolerância.
Expressada em monólogos, é visível a hostilidade de uma personagem em relação a
outra, imposta por frases imperativas, anulando a possibilidade de estabelecer
vínculos duradouros, ainda que fosse preciso exprimi-los através da violência.
É justo lembrarmos que nesse panorama de intolerância, os sentimentos darão
vazão a comportamentos vis, dominado por sangue sábio, que apelam aos
instintos, contrapondo-se à razão. O romance convida-nos a lançar mão de
convicções preconcebidas, no que tange à espiritualidade. As ações das
personagens não são pautadas pela racionalidade e temperança
— até porque, o próprio ambiente onde transcorrem as
ações, é inóspito
—, mas pelo
jugo o qual a concepção do sagrado é moldada, desencadeada por distúrbios
violentos e fraudulentos. Os conflitos permanentes pela disputa dos corações
sedentos por misericórdia divina, torna-se terreno fértil para estabelecer uma
rede de armadilhas e enganos, buscando a eliminação de concorrentes que se
digladiam pelo poder retórico.
A ideia de redenção ganha contornos irônicos, senão
trágicos, pois tudo seria válido em prol da sua obtenção; mesmo quando as ações
apelam ao tosco e à vilania. Por essa ótica, Hazel insiste em defender o
sagrado ao inverso, denunciando e expondo a fragilidade de dogmas e ritos
tradicionais, que não mais se sustentam. Como se a crença nutrida pela
comunidade local não representasse legitimidade e pureza. Deste modo, ao romper
com os conceitos fundamentais dessa falsa fé, a redenção deixaria de ter como critério
a renúncia ao pecado e a culpa.
Hazel encarna o profeta da desesperança em uma terra onde o
fanatismo predomina. Seu apelo ao culto sem Cristo, sem milagres e sem
ressurreição, ofendia a fé cristalizada e opaca, daquele povoado. Em uma terra
coletivamente cega
— onde cada
um interpreta o mundo por intermédios de suas lentes turvas
— qual caminho e qual verdade se deve perseguir? A
sensação desde as primeiras páginas é que estamos diante de um mundo
pós-apocalíptico, onde o sagrado é buscado como arma para estabelecer um reino
tirânico, em nome da fé. Em meio a disputa pelo poder religioso, a mentira
consegue trajar trapos da verdade para sair triunfante. O protagonista é
arrebatado pela vontade irracional de levar as boas novas da incredulidade. Uma
igreja onde não existiria Cristo pendurado no madeiro.
O Cristo crucificado estava desonrado por falsos pregadores.
Tanto o Cristo quanto a Cruz estavam sendo profanadas por aqueles que se diziam
fiéis. Hazel tem um discurso combativo, febril, ácido e apelativo. Suas
pregações não são suavizadas, gentis ou dóceis. Sobre o carro, buscando
visibilidade, pregava eloquentemente. A escassa plateia que saia do cinema o
tomava por mais um lunático atrás de fama e lucro. Contudo, seus apelos estavam
perdendo força, como se sua voz estivesse embargada por moscas. Não havia
séquitos, ouvintes ou procissões. O máximo que consegue atrair é um malandro e
oportunista. Onnie Jay é uma personagem secundária, mas que também representa a
safra de charlatões, ao propor uma parceria a Hazel, na escusa intenção de
lucrar por intermédio das pregações oriundas da nova Igreja sem Cristo
Crucificado. Contudo, o que movia o protagonista Hazel não era o lucro ou a fama,
mas em despertar a consciência de uma liberdade sem culpa e pecado.
Hazel continua solitário em meio a sua mensagem redentora.
Ninguém se deixa levar ou seduzir por seu novo credo. Flannery O’Connor
continua a provocar o leitor, ao tornar a situação das personagens
— que já são precárias
— mais infernais, à medida que
a história tende a ter um desfecho trágico. O que se vislumbra é uma derrocada
generalizada, em decorrência dos distúrbios que as envolvem. Por fim, a ideia
de redenção fica inconclusiva; mesmo na desgraça ou no fracasso, na perspectiva
de cada uma das personagens, pode ser um meio
— mesmo inadequada
— de se salvar. Salvação que implica em penitências,
solidão e expiação do corpo. Elas se perdem em seus enganos e distúrbios em
relação ao sagrado, para se salvarem enquanto humanos aprisionados em universos
particulares. Salvação humanizada, que não se apoia no transcendente.
Distúrbios coletivos se apossam de todas as personagens, deflagrando atos
extremos em cadeias ordenadas. A liberdade, desprovida de responsabilidade,
abre precedentes para crimes deliberados, sinal de um desespero fulminante,
provocado pela interpretação dogmática dos valores morais. Paixões profanas
nascem no seio desses distúrbios sagrados, assassinatos, roubo, autoflagelação
e loucura. Toda uma cidade maculada pela desmedida dos sentimentos religiosos,
ora evocados como manifesto da verdade.
Sabbath, a cúmplice do cego Hawks, deseja ter o amor carnal
de Hazel, que por sua vez, está sendo consumido pela ideia obstinada da Igreja
sem Cristo Crucificado. O obsessivo e lunático Enoche, furta um anão
embalsamado para incriminar Hazel, acreditando ser esta criatura um pequeno
amuleto de fé ou o próprio Jesus. Hawks se cansa da filha Sabbath e da
dissimulada cegueira malsucedida, para abraçar o alcoolismo como novo caminho à
redenção. Onnie Jay, o picareta que queria montar uma sociedade golpista com Hazel,
em nome do sagrado, é brutalmente atropelado.
E Hazel? Ah, Hazel! O que se sucedeu ao pobre Hazel? Ele
encarna o próprio enigma indecifrável, um visionário de olhos fechados, o
cálido pregador obcecado pela cegueira. Uma cegueira pueril, cândida, que o
conduz rumo ao sagrado. O incansável mensageiro, que saltava sobre o carro aos
berros que emanavam de sua boca venenosa, até suas veias protuberantes e
nervosas vibrarem pelo pescoço. O andarilho que abriu mão da clareza da vida
para mergulhar em trevas. Aquele que se deixou guiar por sangue sábio, uma sabedoria
que não se alimentava de dogmas ou da cruz do Nosso Senhor. Hazel era um sábio
a seu modo ambíguo. Sagrado este, que para dizer a verdade, se revela apenas
aos cegos e desatinados de espírito.
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Sangue sábio
Flannery O’Connor
Juliana Amato (Trad.)
Sétimo Selo, 2022
188p.
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