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Mostrando postagens com o rótulo Flannery O'Connor

Sangue sábio e os distúrbios do sagrado

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Por Juliano Pedro Siqueira Flannery O'Connor. Foto: Andalusia Collection. No ano em que se comemora seu centenário de nascimento, não haveria momento mais oportuno para mergulhar nas histórias tragicômicas de Flannery O’Connor (1925-1964). A proposta deste texto é analisar seu intrigante romance de estreita, Sangue sábio (1952). A obra em questão carrega a problemática religiosa, contudo, possibilita o leitor — dentro desse complexo universo espiritual — adentrar em camadas mais profundas, ocultas no submundo de cada personagem; dado o nível de sofrimento e angústia que as afligem — não se restringe apenas a visão míope que detém sobre o sagrado, mas da própria visão de mundo que as cercam. O sentimento religioso exacerbado e o fanatismo presente na trama, são sintomas e fugas oriundas de conflitos internamente subjacentes, marcas de traumas e vivências passadas. A rejeição, a repressão e a indiferença são elementos visivelmente latentes e inquietantes em indivíduos que tentam,...

Flannery O’Connor e a consciência do mal

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Por José Homero Flannery  O’Connor. Foto: Arquivo  Emory University.   Embora a literatura possa se assumir como uma forma de salvação, na maioria das vezes é um agente do engano. Em parte reflexo da condição humana, suas respostas são ambíguas e as soluções não são definitivas. O dilema favorito da religião e de uma certa filosofia herdada do Romantismo (“a doutrina da perfectibilidade da natureza humana”, como a chamou Flannery O’Connor) tem sido elucidar se o homem é inerentemente bom ou mau. Enquanto o Iluminismo apresentava o progresso como intrínseco à razão, que gradualmente levaria à felicidade terrena, as vicissitudes da Revolução Francesa, a suposta encarnação — lida com reverberações cristãs — da trindade intelectual da liberdade, igualdade e fraternidade, terminaram em um reinado de terror que confrontou os filósofos com a constatação do mal. Esse desencanto precoce com os valores seculares recém-entronizados na antiga sede da divindade confirmou que a ideolog...

“Por favor, ajuda-me, meu bom Deus, a ser uma boa escritora”

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Por Cristina Sánchez-Andrade Em 1958, depois de Flannery O’Connor mergulhar no manancial com propriedades curativas do Santuário de Lurdes, disse – parafraseando uma amiga e com o sarcasmo que a caracterizava – que “o verdadeiro milagre era não contagiar-se por uma epidemia através dessa água suja”. Mesmo relutantemente, havia ido ali como parte de um grupo – “mulheres católicas levadas em manada de um lugar a outro”, como ela própria explicou – de peregrinação à Lurdes, viagem promovida pela diocese de Savannah. A escritora, afetada pelo lúpus, era consciente de que não lhe restavam muitos anos de vida e nessa viagem pela Europa quis tentar de um tudo; entre outras coisas, uma audiência com o papa Pio XII na Basílica de São Pedro. Morreria seis anos depois, mas em todo caso o acontecimento ilustra perfeitamente duas importantes chaves de sua escrita: a ironia e sua dimensão religiosa. O primeiro aspecto é algo que salta à vista numa primeira leitura de sua obra. O...

Flannery O’Connor se molha

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Por Patricio Pron “Sou dessas pessoas que antes morreriam por sua religião que tomar um banho por ela”, escreveu Flannery O’Connor a uma amiga: não falava de um banho qualquer, mas da imersão nas águas da Cave Spring Lourdes, a que os enfermos de todo mundo atribuem propriedades curativas desde quando, segundo a lenda, a Virgem apareceu ali a uma jovem em 1858. O’Connor tinha trinta e três anos no momento de realizar sua viagem; apesar de jovem, já era considerada uma das escritoras estadunidenses mais importantes de sua época graças principalmente a dois livros: o romance Sangue sábio , publicado em 1952, e os contos de Um homem bom é difícil de encontrar (1955). O primeiro é a história de Hazel Motes, um sobrevivente da Segunda Guerra Mundial que, depois de perder a fé em detrimento da experiência, a recupera fundando uma seita, a Igreja Sem Cristo. Os outros textos estão povoados por assassinos piedosos, falsos pastores, aleijados, idiotas, vendedores de bíblias, ceg...

Flannery O’Connor, a cartunista

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  Ela é reconhecida entre os nomes mais importantes da rica literatura do Sul dos Estados Unidos e a publicação entre nós há quatro anos da parte central da sua obra — os contos — é uma prova disso. 1 Ainda esperamos que cheguem ao nosso idioma os dois romances: Wise blood (1952) e The Violent Bear It Away (1960). Isso talvez não custe tanto, mas custará uma edição brasileira de The Cartoons , publicada recentemente no país natal da escritora.   Como terá observado a crítica estadunidense, a revelação desse material inédito em livro de Flannery O’Connor entra já para uma seleta lista de curiosidades: a que revela a secreta inclinação de criadores reconhecidos numa arte e que se aventuraram, positivamente ou não, por outras searas. Exemplo disso, Marilyan Monroe, a atriz que escreveu poesia; James Joyce, a inclinação para a música.   O caso de Flannery O’Connor possui uma qualidade a mais: ela possuía talento para o desenho. Esse convívio com as artes plásticas se inici...

Flannery O’Connor

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Flannery O’Connor foi “apenas uma contadora de histórias”, segundo suas próprias palavras. Mas, nem sempre devemos nos fiar nas declarações dos escritores; e é esse um caso. Ela não era apenas uma contadora de histórias. Em sua prosa, buscou resgatar aos olhos de seus leitores, o estranhamento com que a Graça, o Mal e o Pecado Original, atuam neste vale de lágrimas.  Esse estranhamento ocorre em nossas vidas quando o grotesco, a violência ou nossa incapacidade de reconhecermos que há uma inexpugnável diferença entre o que crermos ser o certo, e o que é certo perante os olhos de Deus. E a literatura de O’Connor explorou isso com certa maestria, o suficiente, para situá-la entre o melhor do século XX. O chamamento à lucidez por meio da expressão idiossincrática das hipocrisias, muitas vezes manifesto com a fúria a violência, é dado por meio de uma literatura capaz de nos revelar o grotesco que nos cerca, e assim, aceitarmos melhor nossa parcela nessa realidade criada par...