Desculpe-me, mas literatura não é o que eu quero que seja literatura

Por Pedro Fernandes 

Jonathan Wolstenholme, A Literary Joust.



1. No auge da vida social na internet fui um opinador contumaz: dos costumes, da política, da literatura e das artes que mais frequento. Um mal crônico iniciado quando comecei a frequentar as colunas de opinião nos jornais — muita coisa desse período, aliás, passou para este blog; talvez eu deva admitir que a existência deste espaço é uma prova viva desse meu público e desnecessário mea culpa

Quando me centrei nos estudos literários, quando a vida prática passou a exigir mais tempo que a nossa disponibilidade diária para a reflexão, quando se instalou a terrível crise da leitura vivida neste século de escravidão silenciosamente imposto pelas redes sociais, quando as opiniões políticas ganharam o estatuto de diálogo surdo de animais, optei por me aquietar. Uma decisão sensata, admito toda vez que leio e passo ileso a um assunto útil à minha inútil opinião. Vez ou outra, na dificuldade dessa minha incontinência verbal, solto qualquer tuíte e me dou por satisfeito; e, muito raramente, quando a coisa estica um pouco mais, reabro a caixa de asneiras no desabitado Facebook. 

Foi assim por esses dias. Um acontecimento atiçou outra vez com esse eu que, tenho sempre mais certeza disso, ainda não foi plenamente domesticado, como em algum momento cheguei a me iludir e acreditar. E dessa vez ele se impôs e voltou a debulhar essas notas. É um assunto, como os muitos que têm estourado no meio cultural brasileiro cada vez mais falido, que nem merecia o cabimento de gente sensata. Bom, mas talvez, além de inútil, eu também não seja essa gente. A questão me tocou por dois motivos: primeiro porque durante alguns anos ocupei uma cadeira em Teoria da Literatura; e depois pela posição assumida por uma parte diversa dos interessados na questão, sobretudo pelo tipo dos argumentos empregados, ou melhor, a falta deles. 

Parte dessas notas saíram na minha conta no Facebook e outra parte foi expandida para este espaço. Assim, o texto se encontra dividido em quatro momentos: essa passagem meramente justificativa e introdutória; algumas considerações gerais acerca do que alcancei ler entre as opiniões mais desenvolvidas no lado oposto da questão suscitada; e alguma contribuição para o debate, mesmo sabendo que não é de debate que falamos, mas de um desvario gratuito de opiniões com fundamentos os mais escusos ou mesmo sem nenhum, afinal, essa claque tem preguiça de ler, está indisposta a sair de suas castas para ouvir o outro e agem como fascistas ainda que se digam o contrário, e, pior, sofrem de grave falta de interpretação. 

 2. Sem o saudosismo do eu velho, outro que começou a me habitar por esses dias, existiu um tempo que respeitávamos a opinião dos nossos mestres, guardando para nós a nossa, que, se fosse contrária, talvez mais tarde servisse, com embasamento coerente, para desenvolver um ponto de vista próprio capaz de confrontar o que ouvíramos. Na era em que essas figuras foram transformadas em “facilitadores do conhecimento” (que baboseira), passou-se a exercer o direito de derrubá-las com a força do não-argumento, expondo apenas os nossos gostos, as nossas guturais convicções, transformando o outro em ridículo, sem reparar que, nesse caso, ridículo é quem ridiculariza. Enfrento isso com alguma frequência em sala de aula, com estudantes escudados por seus computadores e smartphones a me levantar opiniões ou interrogações vazias, por vezes, totalmente fora do prumo das discussões tratadas, puras provocações que eventualmente possam ser utilizadas para me enquadrar em alguns dos seus motivos de cancelamento pinçadas de conteúdos duvidosos na internet como a infinita rede de baboseiras produzidas pelos chamados booktubers. Quer dizer, os que acreditam no que querem acreditar, os munidos de convicções, sem o senso do ridículo não frequentam mais apenas as caixas de opiniões em páginas online, nem as tribunas das redes sociais; perderam qualquer vergonha da ignorância e passeiam de colo com ela. Essa é a era dos idiotas, atravessada (para pegar um pouco do gasto vocabulário deles) pela rebeldia dos patetas. 

O pouco que tenho lido do lado dos que contestam o recorte de uma observação de Aurora Fornoni Bernardini pinçado numa matéria jornalística de execrável título declarativo feito para o algoritmo caça-cliques — é este o tal assunto — é vergonhoso. Porque não é opinião do estudante imberbe e dono da sua verdade, alguma vez também fui assim; é a leitura de gente educada no que dizem ser os melhores bancos universitários deste país. E eu não quero acreditar que esse é o nosso fracasso definitivo. Ataca-se a professora, trata-se seu argumento — de que Itamar Vieira Junior, Annie Ernaux e Elena Ferrante são interessantes, mas não literatura — como o equívoco de uma desmiolada ou de uma aposentada, de credibilidade vencida, encerrada em modelos eurocêntricos, porque branca, porque elitista, pipipopó, que o seu ponto de vista não serve mais aos nossos dias e se arroga na opinião de que a literatura é aquilo que qualquer leitor diz ser literatura e acrescentam os seus queridinhos, alguns muito inferiores aos da lista da entrevistada, como exemplos.

Contraditoriamente, essa é a mesma gente que sempre pede respeito ao saber científico quando este é continuamente atacado por certos elementos sem credibilidade que celebram o senso comum como valor de juízo para qualquer coisa. Então tudo é, como se quer impor ao conhecimento do literário, o mero jogo do-me-convém? Qual o papel dos saberes no nosso tempo, é apenas descrever fenômenos, encontrar a possibilidade de acrescentá-los de qualquer maneira naqueles campos que julgam sectaristas, discriminatórios, enquanto empurram para o silenciamento tudo que aqui estava antes de nascermos sob a acusação de algum ismo que passava léguas de desconhecimento nos seus contextos?

Se continuarmos a apostar que a literatura é mesmo o que qualquer leitor quer como literatura, para quê literatura? Para quê escritores, para quê professores, para quê crítica, e, para quê ciência? É preciso sempre cuidado com certas posições porque até nos servem, seja para nos tornamos mais moderninhos e boçais, seja para tripudiarmos com as opiniões dos nossos mestres, mas um pouco à frente podemos ter contribuído com o lado obscuro das forças dominantes, aquele que objeta o valor e o papel do conhecimento (já nem digo das humanidades). E qual é mesmo o interesse da matéria publicada pela Folha de S. Paulo? Esses leitores terão se dado ao trabalho de ler o seu conteúdo na íntegra? É um texto bem cafona, diga-se, cheio de clichês de elitismo em franca decadência, mas assunto não é o que é literatura. Mas, já que…

3. As discussões sobre o que é literatura não é nova e nem é no nosso contexto coisa que sirva à polêmicas. Por isso, em nosso contexto voltar a essa interrogação pressupõe mobilizar todo um conjunto teórico que remonta os fundamentos do pensamento ocidental. Assim, sua definição não se encontra fixada exclusivamente por questão de gosto ou do livro de determinado autor que venceu as cerradas limitações do mercado editorial e obteve variado reconhecimento em premiações de relevância. Só aqui, encontramos quatro coisas bem diferentes — literatura, gosto, mercado editorial e reconhecimento — e três delas, situadas no plano comum de todos os leitores, até tocam o literário, mas não servem à definição de literatura. É nesse ponto em que se fixa toda a balbúrdia em torno do apontamento de Aurora Fornoni Bernardini.

Ezra Pound no seu esquecido ABC da literatura, um dos livros que passaram pela minha primeira formação em Teoria da Literatura, conceitua a literatura como linguagem carregada de significado; e em miúdos, a novidade que permanece novidade. Uma direção que encontramos até mesmo em um autor menos dogmático como Terry Eagleton, para quem a literatura se constitui como um conjunto de textos que prescinde certo uso da linguagem, estrutural e formalmente. 

Ora, tudo isso se ignora quando dizemos que a literatura é o que eu quero (ou a maioria quer) que seja literatura ou o texto de significação esgotada na sua primeira superfície, isto é, aquele que sacia meus primeiros e próprios interesses porque me acolhe num mundo infenso com quer o leitor sensível (famigerada invenção do mercado que deveria passar longe da literatura). Ao afirmar que existe, no que se circula como literatura nos nossos dias, um privilégio do conteúdo sobre a forma, Aurora Fornoni Bernardini toca o ponto exato da agora tratada como polêmica definição que, bem vemos, nada tem de polêmica. Ela recupera apenas um princípio essencial e mais básico do que é a literatura, aquele que privilegia o faber literário, este que em nosso tempo se quer ignorar em favor de uma autoridade pouco ou nada confiante chamada leitor ou, pior, do estabelecimento do escritor sobre a obra.

Não é o caso de ser esta uma questão que implique nas decisões de leitor, que é livre para exercê-las como convém; tampouco ao escritor, que pode até ser um entendido da teoria, mas não se serve dela para compor os seus livros; o estudioso do texto literário pode agir da mesma maneira, porque seu suporte principal é sempre a obra, mas ele possui à sua disposição os dispositivos de leitura fundados pela teoria para constituir suas designações da mesma maneira que um sommelier dispõe dos seus critérios para estabelecer qual o melhor e o pior vinho. Tais fundamentos são essenciais porque nem não se faz leitura crítica de uma obra literária apenas com achismos, por mais livre que seja uma interpretação. Nesses limites interessa-nos a literariedade de um texto: forma e conteúdo são partes indissociáveis nessa definição porque nos possibilitam explicar qualidades como as de estrutura, composição, expressão, sentido, inteligibilidade… 

O ponto de sustentação essencial da literatura é a linguagem e esse consenso talvez seja o mais durável até agora nesse amplo debate e talvez o definitivo visto que é este e não outro os domínios do escritor e do poeta que deles se utilizam não para dizer o mundo ou o que nele convém, mas instituir pela forma um mundo outro, capaz de, no seu curso, entrar em contato, nem sempre aprazível, com o nosso e com diferentes mundos. Sem essa condição, o literário se perde ou mesmo confunde com as expressões comuns, de uso recorrente: o panfleto ideológico, a confissão, a mera transferência organizada do pensamento. Por isso, o ponto essencial na definição é o faber e a própria obra, não a recepção, que sim, importa, mas a outra esfera da vasta teoria da literatura.

4. Se toda essa querela servisse ao menos para ingressarmos nos fundamentos da questão — que nos acompanha, como eu disse, desde o estabelecimento do pensamento ocidental — deixaríamos mais de lado nossa ignorância e a valentia dela derivada. Aprenderíamos pelo menos a ler melhor e entendermos os diversos pontos nela envolvidos; contribuiríamos de alguma maneira com o desenvolvimento crítico tão escassos em nosso tempo. Nesse sentido, esta celeuma e qualquer outra valeria a pena, despertaríamos da vida de falsos sorrisos para retratos nas redes sociais e textos frios, vazios, com se tapinhas nas costas de camaradagem aos amigos do círculo íntimo que os elegemos em listas como o que de mais importante se produziu em um século quando sequer alcançamos a sua primeira metade, mas tempus fugit; já alguém prepara a próxima armadilha de pega-pega pelo senso comum. 

À espera do porvir, inflamos opiniões em torno do assunto para manter a polêmica, mas logo os sentidos se voltarão para o próximo condenado e outra vez se tomará partido na torcida, se imporá um ponto de vista pessoal e uma vez mais se armará o auto-de-fé virtual. Essa é a triste era em que o escritor deixou de ter leitores para ter fãs, ou seguimores, um comportamento de manada; une-se para mobilizar-se sempre em direção para o lado em que exibirão a próxima vítima. Como já nos disse Herbert Marcuse, o pensamento unidimensional, marcante desse nosso tempo, encontra validação nele mesmo e repetido incessantemente e em regime de monopólio se torna definição ou instrução hipnóticas. É mesmo um simulacro de barbárie, de quando, aliás, sem os saberes instituídos que bem ou mal nos trouxeram até aqui, designávamos qualquer escrito como literatura mesmo se intragável como o pior dos nossos vinhos, esses que nem bebemos mais continuamos a chamá-los de excelentes porque é um produto nacional. 

Medimos o que é e o que não é literatura não para exercer gratuitamente nosso autoritarismo, mas simplesmente porque nenhuma obra está livre do nosso crivo crítico formado  pelas relações que estabelecemos com as criações dentro e fora do nosso tempo. Nas circunstâncias em que o imperativo do mercado se coloca como o autor das nossas decisões fixando-as com base em critérios de identificação ou desidentificação formados por nossos gostos ou ideologias, quando nos bombardeia com uma quantidade enorme de novos livros escritos por gênios já na primeira largada, o pensamento crítico capaz de ponderar e distinguir é ainda mais urgente e necessário porque contraria esses consensos fabricados na e pela alienação do capital (e já agora da política). Distinguir não é segregar, censurar, silenciar, mas apontar rumos, servir de bússola e oferecer uma via pela qual possamos observar melhor, atentarmos não apenas para o que facilmente reluz mas para o ofuscado pelo brilho do medíocre que nos é servido. Sem isso, é a dispersão anárquica e o seu sinal, infelizmente, já encontramos em toda parte. Desculpe-me, mas literatura não é o que eu quero que seja literatura.
  

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