Os cenotáfios de Danilo Kiš
Por Henrique Ruy S. Santos
“Também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer”
— Walter Benjamin, em “Teses sobre o conceito de história”
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Danilo Kiš. Foto: Basso Cannarsa |
A experiência de Danilo Kiš como um escritor iugoslavo judeu nas últimas décadas do século XX não poderia ter sido outra senão a da saturação histórica, o sentimento (hoje ainda mais generalizado em todo o mundo) do peso das agitações sociais e políticas por que passou a Europa no século passado ou por que passaram os judeus desde muitos séculos antes. Não deveria surpreender, assim, encontrar na região dos Balcãs um escritor que é uma espécie de avatar de Borges no Leste Europeu. Não deveria ser surpresa porque o escritor argentino foi o primeiro a escrever no século XX a partir do ponto de vista dessa saturação histórica, que traduzia paradoxalmente em termos de enraizamento local (na Argentina e na América do Sul) e principalmente de um cosmopolitismo muito peculiar, sintoma de uma literatura aberta às mais diferentes influências. Não deveria surpreender, como disse, mas surpreende. Afinal não é todo dia que esbarramos com uma escrita à altura do mestre portenho (em maior ou menor grau), mas que consegue manter caracteres próprios, que demonstram não só a consciência das influências com as quais dialoga, mas também o desembaraço para polemizar com elas.
Um túmulo para Boris Davidovitch, livro de contos de Danilo Kiš, foi publicado originalmente em 1976 e ganhou tradução para o português em 1987, feita pela saudosa tradutora Heloisa Jahn, que o verteu a nossa língua não diretamente do original em servo-croata, mas de edições em inglês e francês. Foi lançado à época pela Companhia das Letras, e encontrar um exemplar hoje que seja financeiramente acessível é tarefa digna das aventuras livrescas do próprio Borges. Quem der a sorte de topar com o livro encontrará nele um feito aparentemente modesto: são ao todo 7 contos não muito extensos e que dão ao livro a envergadura de 150 páginas. Quase todos os contos se alinham, temporal e espacialmente, em torno dos países que compunham a União Soviética nos anos 1930 a 1960. Tematicamente, o escritor iugoslavo tem, nesse livro, uma grande fixação pela oscilação entre fato e ficção e pelos limites dúbios que os separam. Seus personagens prediletos são revolucionários traídos e/ou falsamente acusados por forças do regime estalinista, envolvidos em situações nas quais se veem instados a abrir mão da integridade pessoal (entendida como uma questão de verdade própria, de não mentir para si mesmo) em favor de causas tidas como maiores. Seu estilo é carregado das tintas de Borges, a ponto de por vezes soar como uma paródia ou mesmo um pastiche. Mas, por mais que não seja infenso ao humor, o livro de Kiš carrega consigo um fardo de melancolia e tristeza injetado pelo alto teor político do seu texto, o que obriga o leitor a uma certa seriedade ou mesmo solenidade ante o que lê.
“Esta história, nascida na dúvida e na incerteza, só tem o mal (que alguns chamam de sorte) de ser verdadeira: foi registrada por mãos honestas, segundo testemunhos confiáveis. Mas, para que se chegasse à verdade com que sonha o autor, teria que ser contada em romeno, húngaro, ucraniano ou iídiche; ou antes numa mistura de todas as línguas. Então, surgidas do acaso e das profundezas turvas do inconsciente, brotariam da alma do narrador algumas palavras russas, ora brandas como teliatina, ora duras como kindjal. Se o narrador, portanto, pudesse atingir esse momento de desconcerto babilônico, inacessível e apavorante, ouvir-se-iam até as humildes preces de Hana Krzyzewska e suas súplicas horríveis, pronunciadas em romeno, em polonês, depois em ucraniano (como se a questão de sua morte não fosse mais que resultado de um engano trágico), e depois, no momento do espasmo derradeiro e do sossego, seria possível ouvir seu delírio transformar-se em oração pelos mortos, em hebreu, língua dos inícios e da morte.” (Kiš, 1987, p. 7)
Estão em questão no livro de Kiš aqueles jogos linguísticos a que se acostumou dar o nome de tendências do pós-modernismo: o apagamento das fronteiras entre fato e ficção, o pastiche e o cruzamento incessante de referências reais e inventadas, que se traduzem, em termos de escolhas linguísticas, pela referência a documentos obscuros e pelo uso de notas de rodapé, por exemplo. Seus contos tematizam, em grande parte, o poder das “verdades” fabricadas com propósitos escusos, a capacidade de interferência na realidade que os simulacros possuem, especialmente em regimes autoritários. O primeiro conto do livro, “A faca com cabo de pau-rosa”, narra a história de Mikcha, homem recrutado pelo misterioso E. V. Aimicke para uma organização partidária da União Soviética. Mikcha é encarregado por Aimicke da missão de assassinar Hana Krzyzewska, acusada de trair a organização. Anos depois, o próprio Aimicke é preso por suposto envolvimento em um incêndio a um depósito. Nervoso, confessa ter sido ele o verdadeiro traidor da organização, ao passo que Hana Krzyzewska não passara de um bode expiatório, um nome apontado para satisfazer as desconfianças dos outros membros da célula. Apontado por Aimicke como assassino da moça, Mikcha é chamado para interrogatório. Após sessões prolongadas de tortura e longos períodos de fome, o herói do conto redige uma confissão fraudulenta em que afirma ter atuado como agente da Gestapo para sabotar a União Soviética, não sem antes direcionar um olhar significativo à parede da sala de interrogatório, onde se encontrava “o retrato daquele em quem era preciso acreditar” (Kiš, 1987, p. 19).
O conto é todo construído com base em documentos que o narrador afirma ter coligido, acrescentados, por vezes, de depoimentos dos envolvidos, procedimento esse que se mantém em todas as narrativas do livro. O estilo mimetiza algo entre o conto e o inquérito policial, evocado a partir da adoção do chamado presente histórico como tempo verbal de predileção. Os personagens são o tempo todo levados a agir a partir de falsas “verdades”, de discursos manufaturados sob medida para atender a determinadas demandas de coesão política e social. Não obstante a pouca solidez factual das bases em que se assentam as ações tomadas, essas mesmas mentiras ajudam a sustentar mecanismos de opressão demasiado reais, e é nesse cruzamento que se instala a ficção do autor iugoslavo com um olhar tanto observador quanto crítico.
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É igualmente interessante, nesse aspecto, um conto como “Os leões mecânicos”. Um funcionário de um órgão regional de Kiev, mais uma vez durante o regime estalinista, precisa passar por padre (com direito a barba postiça e a uma “pança” falsa) para enganar um ilustre visitante francês, personalidade vital para o reconhecimento do país bolchevique pela França. A razão do teatro armado para a visita do estrangeiro é que o conterrâneo de Voltaire, não obstante suas tendências políticas radicais em favor da causa operária e apesar de seu ateísmo militante, era crítico à perseguição religiosa perpetrada pelo bolchevismo contra os sacerdotes cristãos. Assim, a fim de agradar-lhe e de lhe mostrar a conservação da liberdade religiosa nas terras russas, assim como a manutenção da rica herança cultural do catolicismo no país, os membros do Comitê Regional promovem a farsa, com direito a uma restauração-relâmpago da Catedral de Santa Sofia, que já havia sido comicamente transformada em uma cervejaria. Mais uma vez a teatralidade e a farsa a demonstrar o poder da superfície em detrimento da profundidade, a performance muito mais que qualquer ontologia.
A prosa de Danilo Kiš, na sua ânsia arquivista e babélica, na sua busca pelo registro minucioso das vozes esquecidas da história, opera, nesse sentido, como um contradiscurso, uma ficção que escancara o caráter igualmente ficcional das grandes e das pequenas narrativas políticas. Dois caminhos de leitura se abrem a partir disso: 1) o livro de Danilo Kiš radicaliza a posição pós-moderna e não arroga a si mais do que o direito de ser um mero jogo de linguagem, um exercício pastichento de referências, desde Borges a Edgar Allan Poe, de forma que sua crítica desemboca numa espécie de nivelamento discursivo, em que a literatura, como os leões mecânicos citados no conto homônimo, é apenas mais uma das nossas diversas formas de ficcionalizar a realidade, diferindo ou não de outras formas apenas em seus propósitos; ou 2) o livro é animado por uma crença humanista no poder de intervenção da arte, capaz de, se não salvar diretamente indivíduos, reabilitar-lhes a memória:
“Os gregos antigos tinham um hábito digno de respeito: para os que haviam perecido pelo fogo, que as crateras dos vulcões haviam engolido, que a lava sepultara, para os que as feras haviam lacerado ou os tubarões devorado, para os que os abutres haviam despedaçado no deserto, edificaram em suas pátrias o que se costuma chamar de cenotáfios, túmulos vazios, pois o corpo é fogo, água ou terra, mas ‘alma é o alfa e o ômega, é para ela que se deve elevar um santuário’” (Kiš, 1987, p. 84).
As veredas que se bifurcam no labirinto de leituras de Danilo Kiš são, no fim das contas, a reatualização do velho dilema superfície/profundidade, corpo/alma, forma/conteúdo. Ao não perder de vista essa tensão, o autor iugoslavo é capaz da verdadeira obra-prima do gênero que é o conto homônimo do livro, “Um túmulo para Boris Davidovitch”. Nele, o narrador tenta “ressuscitar a lembrança da personalidade contraditória e prodigiosa” de Boris Davidovitch Novski, um revolucionário acusado e preso injustamente, forçado, após terríveis torturas físicas e psicológicas, a assinar uma confissão forjada (enredo similar ao conto comentado anteriormente, “A faca com cabo de pau-rosa”). O narrador atua como um perseguidor, alguém que se atenta aos rastros documentais deixados pelo personagem para permanecer em seu encalço, montando uma vaga cronologia de seu percurso de vida.
O retrato de B. D. Novski que emerge dessa busca é incompleto, algo como (lembrando Marx) um espectro que ronda a Europa e a Ásia, surgindo aqui e ali sob os mais diferentes disfarces e pseudônimos, atuando nos mais diferentes postos políticos e militares, até que é preso em 23 de dezembro de 1930, no Cazaquistão. Submetido às mais diversas formas de flagelo pelo sádico torturador Fedukin, Nosvki por muito tempo mantém-se firme no único desejo de “escrever a última página de sua biografia conforme queria” (Kiš, 1987, p. 103), ou seja, de morrer em seus próprios termos, sem macular a própria história. As torturas, porém, são mais fortes, e Novski sucumbe à humilhação de uma falsa confissão, na qual, após ser citado por outros prisioneiros igualmente torturados e, como ele, também forçados a confessar crimes que não cometeram, admite ser o líder de um grande esquema de desvio de recursos públicos. Nos depoimentos de seus supostos comparsas, Novski é retratado como um indivíduo movido unicamente pela ganância, despido de qualquer ideal revolucionário que o pudesse redimir. Nem mesmo a morte lhe é concedida, e Novski é exilado antes de ser preso uma última vez, por motivos desconhecidos. Seu último avistamento é feito por um guarda da prisão que o vê se atirar a um caldeirão em chamas:
“Esse homem corajoso morreu no dia 21 de novembro de 1937, às quatro horas da tarde. Deixou alguns cigarros e uma escova de dentes.
No final de junho de 1956, o Times de Londres, que, visivelmente, de acordo com a boa velha tradição inglesa, continua acreditando em fantasmas, anunciou que Novski fora visto em Moscou, perto das muralhas do Kremlin. As testemunhas reconheceram-no pelos dentes de aço. Essa notícia foi divulgada por toda a imprensa burguesa ocidental, ávida por intrigas e sensacionalismo” (Kiš, 1987, p. 121).
Vista por um prisma, digamos, mais otimista, a narrativa literária de Danilo Kiš se responsabiliza por uma espécie de redenção do personagem, representativo de tantos outros injustamente caluniados e difamados não só pelo regime de Stálin, mas também pelo sensacionalismo ocidental, que não lhes permite nem mesmo a dignidade da morte escolhida. Por outro lado, adotando um ponto de vista mais pessimista — e vale ressaltar que o pessimismo e certo niilismo não são, absolutamente, marcas ausentes do texto do autor —, a literatura surge, pelo contrário, em toda sua impotência diante da violência e do aniquilamento do indivíduo perante o todo, e sua função de registro não passa de um sucedâneo desesperado para qualquer ideia de justiça, a essa altura impraticável.
Como toda boa obra, Um túmulo para Boris Davidovitch é um livro marcado por contradições, enraizadas num sentimento ambíguo que, por um lado, acredita na profunda capacidade da arte como expressão humana da injustiça e dos processos de conspurcação da memória, mas que, por outro lado, não se livra de uma angústia que encara de frente sua insuficiência. No final das contas, o livro não quer ser mais do que literatura. Resta saber se isso basta.
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