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Mostrando postagens com o rótulo Flaviana Silva

Marcas de uma terra queimada: notas sobre o Caderno de memórias coloniais de Isabela Figueiredo

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Por Flaviana Silva   Pertencer a algo é mais do que estar, é a ousada decisão de ser. A sensação que fica após concluir a leitura do Caderno de memórias coloniais de Isabela Figueiredo é de que as palavras da leitora serão apenas um leve ruído, nada traduz a experiência de sentir essa narrativa “em carne e osso”. A obra captura a atenção e traz consigo temas fortes e caros para a Literatura portuguesa contemporânea, a narradora é filha de colonos e enuncia a sua experiência como observadora da relação entre os portugueses e os pretos de Moçambique, o que narra é muito mais do que a mera descrição dos fatos, ela expõe as feridas escondidas do colonialismo e não se recusa a se colocar como questionadora do seu contexto. O que não pode ser ignorado é que a narrativa é um espelho que elucida experiências da vida de Isabela Figueiredo, o que não define a totalidade da experiência já que a própria criadora afirma que entre o pai da narradora e o seu, prefere ficar com a imagem do...

O amor enlouqueceu

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Por Flaviana Silva   O que esperar de um narrador louco que decide expor uma história? Você teria interesse em ouvi-la? É possível reconhecer que essa obra arrebata a atenção logo nas primeiras páginas; uma narrativa curta, mas incisiva e fugaz, cheia de enigmas e monólogos estranhos. O que temos em O amor não tem bons sentimentos , de Raimundo Carrero é a complexidade da mente humana traduzida e detalhada.   A proporção de tristeza que encontramos nesse enredo não pode ser medida já que temos um narrador que com certeza é louco, não consegue manter uma linha de equilíbrio em seus pensamentos que possa ser considerada como verdade e nós somos envolvidos nesse labirinto da sua mente; em alguns momentos ele mesmo questiona se está certo sobre aquilo que conta, tem medo de ter esquecido e estar errado sobre a própria vida. Estamos diante de um narrador complexo.  No início, já percebemos que ele é o observador de um corpo que flutua no rio, a sua irmã amada e bela que é enc...

O tempo de ontem e o tempo de André: lendo Lavoura Arcaica de Raduan Nassar

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Por Flaviana Silva Lavoura arcaica do escritor Raduan Nassar é um livro reservado para o visitante que tem fome de linguagem poética; não tem rodeios na prosa e nem doses de descrições sem sentido. A obra é o alimento perfeito para quando a vida cobrar uma porção exagerada de arte; é subjetiva, mas direta em sua forma singular. Esse romance é simplesmente uma ponte bem articulada entre a arte e o ser. O leitor é guiado para um tecido de memórias que envolvem uma família   residente no interior brasileiro através da narrativa de André, o jovem protagonista que por não conseguir lidar com o espaço de sua casa e com seus conflitos afasta-se dos seus pais e de seus irmãos para morar sozinho na cidade; o irmão mais velho não aceita a situação de tristeza da mãe após a partida do irmão e resolve buscá-lo. O encontro entre as personagens abre o romance destacando aspectos importantes como o tempo, o espaço e a vulnerabilidade humana diante dos próprios sentimentos. Não...

O lume das recordações: Uma leitura do romance “Coivara da memória”, de Francisco J. C. Dantas

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Por Flaviana Silva Reconhecer a grande marca estabelecida pelo romance de 1930 nas produções dos autores do Nordeste é essencial para viajar pelas obras que nomeamos como sendo contemporâneas. Após a leitura de Coivara da memória é prudente ter em mente que essa influência ainda “arde” positivamente em nossa arte literária. Diante desse livro de estreia do autor Francisco J. C. Dantas, cabe ao leitor sentir o aroma da terra e viajar em um enredo intrigante, guiado por uma originalidade singular.   O romance foi publicado em 1991 e logo a escrita do seu autor comparada a de Guimarães Rosa; não é exagero. O que encontramos nesta obra é uma construção interessante; e, apesar de elementos em destaque, como a descrição do espaço, por exemplo, ela não permite generalizações. A tessitura da narrativa é cheia de desconstruções em relação ao tempo e às personagens e se fundamenta entre contrastes que cercam questões ideológicas e culturais. O narrador é um a...

Opinião de uma leitora que não gostou da Valderez

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Por Flaviana Silva Ler uma obra da Elvira Vigna é sempre um prazer, primeiramente porque sua escrita é construída nas bases de um riso irônico, o que agrada bastante, e porque é importante considerar que as questões sociais envolvendo suas personagens saltam aos olhos do leitor. Em Por escrito , a narradora Valderez fala sobre os acontecimentos banais do seu dia para o amante; todo o romance é um relato direcionado para esse homem que nunca foi capaz de satisfazer suas vontades e sempre mantém com ela uma relação de distância. A personagem, apesar de ser a protagonista da história, não tem muita ação diante da sua própria vida: ela trabalha em uma empresa que não gosta, participa de encontros sociais que não a deixam confortável; vive, enfim, uma rotina cheia de obrigações que não a agradam e a todo tempo busca uma razão para ser e não encontra. Apesar de tudo, ela apenas segue, narrando detalhes dos seus dias vazios sem nenhuma intensidade. Se tem algo que não se encon...

Trazidos pelas águas da dor: o mar de sentimentos em “Todos os santos”, de Adriana Lisboa

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Por Flaviana Silva “A tragédia que vivemos naquele domingo de Todos os Santos, André: como sacudir dos nossos passos as sombras daquilo?”     (Adriana Lisboa, Todos os santos ) Alguém estava atento ao perigo naquele dia da festa de Todos os Santos e avisara para as crianças que elas não deveriam entrar na piscina depois do almoço. Entre os variados barulhos da festividade, Mauro deve ter ouvido o recado, mas nem só de alertas são regidos os dias, não é mesmo? As vezes a morte não deixa tempo para pensamentos complexos.   O menino foi direcionado para o fim de sua história em um tempo curto, sua morte foi seguida de pânico. O que fazer diante da partida de um garoto tão único? Sua irmã Vanessa assiste à cena sem conseguir se movimentar; ela não consegue entender por que a sua família está sendo atingida em pleno dia de comemorações, o fatídico dia que ficará registrado em suas memórias para sempre. Vanessa e André são amigos de infânc...

As sementes da infância e a colheita amarga da velhice: a “Sinfonia em branco”, de Adriana Lisboa

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Por Flaviana Silva O vazio é o irmão do silêncio. Ambos escondem as palavras não pronunciadas e abrigam em si, por mais estranho que pareça ser, um universo de lacunas. A ausência da cor registra a sua marca na existência, é semelhante aos traumas que não receberam a atenção da sociedade hipócrita ao longo dos anos. É preciso considerar que Sinfonia em branco da autora brasileira Adriana Lisboa é um romance de sentidos cortantes e poéticos.  A obra foi publicada em 2001 e foi reconhecida com o Prêmio José Saramago no mesmo ano; para os amantes da prosa poética, o romance é uma viagem singular e satisfatória. O enredo é construído por um narrador onisciente que em sua autoridade, expressa uma descrição minimalista, destacando alguns detalhes e ocultando outros.   A história das irmãs (Clarice e Maria Inês) é guiada por uma sequência de transgressões que marcam a vida das personagens, em um tempo narrativo psicológico que é composto por uma dança constant...

“Como se estivéssemos em palimpsesto de putas”, de Elvira Vigna. Transgressão do imaginário

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Por Flaviana Silva Elvira Vigna. Foto: Jéssica Mangaba   O apagamento de algumas marcas é um mistério. A dúvida entre as lacunas não permite que os acontecimentos sejam explicados totalmente; é nesse vazio que reside a beleza. Ousamos em assumir que não sabemos de tudo quando lidamos com o texto literário, afinal, o que sempre temos são mais perguntas e sinceramente, não é necessário ter todas as respostas. O mergulho é mais do que sentir as águas no próprio corpo. A obra de Elvira Vigna intitulada da melhor maneira possível de Como se estivéssemos em palimpsesto de putas  foi publicada em 2016 e foi o último romance escrito pela autora um ano antes de sua morte; ganhou o prêmio APCA de literatura no mesmo ano da publicação sendo reconhecido por toda a riqueza de questionamentos sociais intrínsecos ao enredo, priorizando como foco as relações humanas. Sem dúvidas, é uma escrita digna de destaque na literatura brasileira contemporânea. A visita do leitor a...

Entre a cruz e a máscara. “O crime do padre Amaro” de Eça de Queirós

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Por Flaviana Silva O crime do padre Amaro  foi publicado em 1876 e é situado em um contexto histórico no qual Portugal passa por grandes transformações; as informações chegam à capital de forma mais rápida através das relações com Paris e os jovens lusitanos se interessam cada vez mais pela comunicação, adotando novos pensamentos. Neste cenário, percebe-se que Eça de Queirós adotou em seu trabalho o objetivo de constituir pela escrita uma função social. Transmitindo a exposição de um cenário de problemas, seu realismo vem como uma apresentação do que ainda significava o grande atraso português, sobretudo aqueles lugares que se distanciam do grande centro; é este algum dos motivos que levam a obra a receber várias críticas no seu tempo, o que só mostra o seu valor em uma sociedade que até hoje se utiliza de múltiplos disfarces para as suas relações. O espaço é apresentado de forma muito detalhada: o narrador utiliza de descrições para evidenciar onde se consti...