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Rubem Fonseca: a fascinação do abismo

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Por José Miguel Oviedo Rubem Fonseca, anos 1980. Foto: Arquivo do escritor.   Não deixa de ser um tanto paradoxal que tenha sido um escritor estadunidense tão famoso quanto Thomas Pynchon que tenha reconhecido no escritor brasileiro Rubem Fonseca o que poucos de nós conseguimos enxergar: um verdadeiro mestre.   “O melhor da obra de Rubem Fonseca é não saber aonde ela vai nos levar. Sempre que começo um livro dele, é como se o telefone tocasse no meio da noite: ‘Olá, sou eu. Não vai acreditar no que está acontecendo.’ A sua escrita faz milagres, é misteriosa. Cada livro seu não é só uma viagem que vale a pena, é uma viagem de algum modo necessária.”   Bom, há uma grande verdade nisso, porque a virtude fundamental de Fonseca é a de todo bom contador de histórias: fazer-nos acreditar no incrível, inventar um mundo que se assemelha ao nosso, mas que é, por alguma razão, inteiramente novo e fascinante.   Rubem Fonseca sabe, como poucos, contar algo tão envolvente que n...

Boletim Letras 360º #638

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Cristina Peri Rossi. Foto: Cristina Gallego LANÇAMENTOS   Dois livros apresentam a escritora uruguaia Cristina Peri Rossi, um dos principais nomes da literatura de língua espanhola do nosso tempo, Prêmio Cervantes em 2021 .   1. De um lirismo contundente, seu primeiro livro de poemas, Evoé , lançado em 1971, Peri Rossi causou escândalo ao explorar o erotismo lésbico. No ano seguinte seus livros foram censurados e seu nome foi proibido nos meios de comunicação em seu país. Em outubro de 1972, às vésperas do golpe que implantaria a ditadura militar no Uruguai, fugiu para a Europa e exilou-se em Barcelona, onde vive até hoje. Consciente de que “O poeta não escreve sobre as coisas/ senão sobre o nome das coisas”, criou uma obra multifacetada, não dogmática, atravessada pelos temas do exílio, do desejo — em suas múltiplas dimensões — e por um anseio constante de transgredir toda ordem estabelecida pelo sistema patriarcal. A antologia Nossa vingança é o amor reúne — em edição bilín...

José e os seus irmãos: a descida ao submundo e suas reminiscências

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Por Juliano Pedro Siqueira     “Fundo é o poço do passado. Porque não chamar-lhe insondável?”   — José e os seus irmãos: as histórias de Jaacob .     Thomas Mann na Suíça. Arquivo Photopress / Keystone / Bridgeman Images A história bíblica de José e sua saga pelo deserto é por si só uma narrativa fascinante. Muito utilizada em sermões para ilustrar as virtudes humanas diante das injustiças da vida e das representações simbólicas, ligadas aos sonhos — diga-se de passagem, inquietantes — , faz de José um ícone iluminado do cânone sagrado, marca da providência divina, que o acompanhou desde sua descida ao inferno até sua nababesca governança egípcia.     Esta impressionante história ganharia ainda maior robustez, quando Thomas Mann, dera início à sua maior empreitada literária, ao escrever, já no exílio em solo suíço — o romance José e os seus irmãos . O romancista alemão levaria 16 anos para compor sua tetralogia, iniciada com As histórias de Jaa...

Nas sombras do presente: resenha de “Deus não dirige o destino dos povos”, de Marcelo Labes

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Por Wesley Sousa Marcelo Labes. Foto: Arquivo do escritor.   O escritor alemão Alfred Döblin, no ensaio de 1938, “O romance histórico e nós”, afirma que uma das novas figurações do romance histórico tem característica central uma posição na ficcionalidade de caráter histórico, em que o escritor eleva ao material literário o domínio dos “fatos a semblância de uma realidade. E finalmente, ele [o escritor] trabalha com tensão, procura atrair nosso interesse, satisfazer-nos, abalar-nos, prender nossa atenção, desafiar-nos” (Döblin, 2006, p. 22).   No entanto, a relação complicada que o caráter do romance histórico se encontra hoje, com a prevalência dos romances autobiográficos, narrativas simplórias no ambiente da prosa, torna ainda mais difícil a proeminência de um romance que logre alcance e êxito na empreitada. Em nossa história literária, a tematização histórica particular de nossa terra não é um capítulo lisonjeiro. José de Alencar, com Guerra dos mascates (1873), Euclides...

Homem com H

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Por Pedro Fernandes   Ao que parece o cinema brasileiro acompanhou de alguma maneira certa tendência das nossas letras, que a foi a de recontar a vida de determinadas figuras caras à história e à cultura nacionais. A explosão das biografias entre as últimas décadas do século XX chegou a mexer com os interesses dos possíveis biografados ao ponto de levantar um acirrado debate jurídico acerca da legitimidade ou não do contar a vida alheia sem o registro de permissão da personagem. Mas entre a proibição ou não, este continuou a ser um gênero que, desde seu auge, mobiliza de maneira perene públicos diversos; talvez, a explicação para tanto esteja em uma qualidade quase formadora de certo modo de ser brasileiro, que é o nosso provinciano interesse de bisbilhotar a vida alheia, saber do outro e da sua intimidade. Somos também um povo afeito ao culto e à fabricação de ícones populares e assim o que não nos falta é material.   Ney Matogrosso é uma dessas figuras e os materiais di...

Parágrafo de Pedro Nava, crônica de Drummond

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Por Leonardo Thomaz     Assim a poesia circula como um facho levado por mãos que a prezam, e alguma coisa, no abismo, se salvará. — Carlos Drummond de Andrade.     Vitrine da Livraria José Olympio, Rua do Ouvidor, anos 1940. Uma página de um livro das memórias de Pedro Nava pode equivaler a crônicas inteiras de Carlos Drummond de Andrade. Ambos leitores de Proust — Drummond, inclusive, chegou a traduzi-lo —, estabelecem relações distintas com sua obra. Enquanto Pedro Nava extrai parágrafos caudalosos de pequenos episódios perdidos no passado, Drummond se praza na síntese poderosa desses momentos, confinando-os a uma dolorosa fotografia na parede. São maneiras de elaborar o passado, matéria de alta envergadura e longa tradição nas letras mineiras.   A mineirice desses escritores — inclusive, muito amigos — se cruza e se potencializa na recordação de diferentes casas de livros. No segundo volume de suas memórias, Balão cativo , publicado em 1973, Pedro Nava co...