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Boletim Letras 360º #535

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Ilustração: Daniel Haskett LANÇAMENTOS   A Shakespeare and Company em evidência. Dois livros que chegam aos leitores brasileiros estão centrados em torno da mítica livraria francesa .   1. Um romance sobre a fundadora com ares de Meia-Noite em Paris . Quando a jovem norte-americana Sylvia Beach abre a Shakespeare and Company em uma rua tranquila de Paris em 1919, não tem ideia de que ela e sua nova livraria mudarão o curso da história da literatura. A Shakespeare and Company é mais do que uma livraria e uma biblioteca: ali se reúnem muitos escritores proeminentes dos anos 1920 e 1930, como Ernest Hemingway e F. Scott Fitzgerald. É também onde nascem algumas das amizades literárias mais importantes da época — em especial, aquela entre o escritor irlandês James Joyce e a própria Sylvia. E quando o controverso novo romance de Joyce, Ulysses , é censurado nos Estados Unidos, Beach decide assumir um risco enorme e publicá-lo na França. Mas o sucesso e a notoriedade da publicação de um dos l

Amor e palavra em Eugénio de Andrade

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Por Géssica Moreira Ramos   Ilustração:  Sophie Lécuyer   ADEUS   Já gastámos as palavras pela rua, meu amor, e o que nos ficou não chega para afastar o frio de quatro paredes. Gastámos tudo menos o silêncio. Gastámos os olhos com o sal das lágrimas, gastámos as mãos à força de as apertarmos, gastámos o relógio e as pedras das esquinas em esperas inúteis. Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada. Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro, era como se todas as coisas fossem minhas: quanto mais te dava mais tinha para te dar. Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes. E eu acreditava. Acreditava, porque ao teu lado todas as coisas eram possíveis.   Mas isso era no tempo dos segredos, era no tempo em que o teu corpo era um aquário, era no tempo em que os meus olhos eram realmente peixes verdes. Hoje são apenas os meus olhos. É pouco, mas é verdade, uns olhos como todos os outros.   Já gastámos as palavras. Quando agora digo: meu amor , já se

A alegria de agradecer

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Por Luis Fernando Moreno Claros Stefan Zweig. Foto: Trude Fleischmann Em 22 de fevereiro de 1942, poucos meses após terminar seu famoso O livro do xadrez , o escritor austríaco Stefan Zweig tirou a própria vida com sua segunda esposa, Lotte Altmann, na cidade brasileira de Petrópolis. Ele tinha 61 anos e havia deixado sua terra natal e o continente europeu por quase uma década, ameaçado pelo incipiente terror nazista.   O Brasil foi seu último destino após uma longa viagem que o levou da Inglaterra aos Estados Unidos e até ao Uruguai. Em 1942, tudo o que Zweig havia rejeitado e combatido ao longo de sua vida, o nacionalismo obtuso, as análises irreais da realidade e, em suma, a estupidez elevada ao status de Estado que viu encarnado nos novos bárbaros totalitários alemães, cuja brutalidade esmagou qualquer surto de livre pensamento e autonomia individual no continente europeu. Cansado de suas andanças, Zweig finalmente se estabeleceu em Petrópolis. As notícias que lhe chegavam dos avan

Paris, Texas: homem livre, cavalheiro da noite

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Por Beatriz Eduarte “Enquanto fazia Paris, Texas foi quando senti uma espécie de revelação. Percebi que a história é como um rio e que se alguém ousasse navegar por ele e confiasse no rio, o barco seria arrastado para algo mágico. Até então, sempre havia lutado contra a corrente. Eu tinha ficado num pequeno charco à beira do rio, porque me faltava confiança. Nesse filme em particular, percebi que as histórias estão aí, que existem sem nós. Na verdade, não há necessidade de criá-las, porque o homem as traz à vida. Basta deixar-se levar”, responde Wim Wenders a Laurent Tirard em Grandes diretores de cinema (Nova Fronteira, 2006).¹ No filme de Wenders e roteiro de Sam Shepard, rodado há quarenta anos, esse rio se transforma em uma paisagem desértica, árida e vasta, onde a única coisa que não varia ou muda é o horizonte, sempre presente. Embora Walt (Dean Stockwell) garanta a Travis (Harry Dean Stanton) que não há nada ali, o espectador sabe que ele está equivocado. Sim existe. Há um ros

O termo “boom feminino” é inadequado e insuficiente

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Por Adriana Pacheco Roldán Ilustração: Liuna Virardi   No início do ano chegou a feliz notícia de que Pink Slim , a tradução de Heather Cleary para Gosma rosa , livro da escritora uruguaia Fernanda Trías, foi uma das vencedoras do PEN Translates Award. Esse reconhecimento repercutiu junto com outra grande novidade que fechou o ano de 2022: o National Book Award por Fever dream , tradução de Megan MacDowell do livro da escritora argentina Samanta Schweblin Sete casas vazias .¹   Essas escritoras e suas tradutores são exemplos do importante momento que vive a literatura graças à presença cada vez mais notória de escritoras de diferentes países de língua espanhola, que conquistam importantes prêmios e impactam um grande público leitor com a originalidade de seus temas e seu talento . Nomes como Guadalupe Nettel, Cristina Rivera Garza, Mariana Enríquez, Ariana Harwicz, Mónica Ojeda, Fernanda Melchor, Lina Meruane ou María Fernanda Ampuero fazem parte de um universo que se expande a cada di

A segunda morte, de Roberto Taddei

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Por Gabriella Kelmer    Roberto Taddei. Foto: Arquivo do autor. Uma menção ao conto “Wakefield”, de Hawthorne, introduz as páginas do romance mais recente de Roberto Taddei,  A segunda morte . Na narrativa curta do norte-americano, Wakefield, homem de meia idade e poucas características que o recomendem acima dos demais, planeja uma viagem de uma semana, sem propósito nem destino. Ao invés de sair de Londres, ele aluga um apartamento na rua paralela à sua e decide, por vaidade e curiosidade, além de uma certa inclinação ao humor sardônico, observar como a casa e a esposa se reorganizam sem a sua presença. Durante os vinte anos seguintes, seguindo um capricho que o faz adiar de forma consistente o retorno, vive sozinho, como sombra de si mesmo, e acompanha de longe a vida familiar. Um certo dia, no vigésimo ano, num supetão tão despropositado quanto a motivação para o abandono primeiro, ele retorna à sua casa e reassume a identidade ora posta de lado.   A aproximação do enredo do conto