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Osman, um anchietano

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Por Eduardo Galeno   Uma citação do LP de 1968 de Caetano Veloso, a que abre o álbum:   “Quando Pero Vaz de Caminha descobriu que as terras brasileiras eram férteis e verdejantes, escreveu uma carta ao rei: tudo que nela se planta, tudo cresce e floresce.”   E é justo o Anchieta desse texto que era um ajuste entre formações de línguas distintas, onde tudo cresce e floresce (segundo Osman Lins, em 1978, num de seus ensaios mais contundentes). Espanhol de nascimento, indo defender o antigo Estado português no desespero da Contrarreforma, mas iniciando a nossa epopeia nas letras, José de Anchieta marca indubitavelmente, como figura, uma chancela que somente depois, na prova do século XX, iria subir às nossas cabeças.   A interpretação de Lins em relação ao padre é tão óbvia que fica difícil dizer. Mas, resumidamente, era essa: existe algo de messiânico em cada pessoa que escreve, em cada escritor, em cada tropel dos significados. Porque a circunstância seja diferente para nós — condici

Jean Genet, pântanos de horror e fascínio

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Por Mercedes Alvarez Jean Genet. Foto: Hulton Deutsch Quase desde o momento em que viu a primeira luz, a existência de Jean Genet foi marcada pela marginalidade. Filho de mãe que o entregou para adoção logo após o nascimento e posteriormente adotado; fugiu do internato de formação profissional — para onde foi encaminhado — antes de completar catorze anos, feito que o leva à reclusão na detenção de menores; acusado de roubo e imoralidade; viandante pela Europa, Genet construiu em Diário de um ladrão (sua autobiografia publicada em 1949) um personagem digno de entrar de vez na história da literatura, e um universo no qual deixaria uma marca indelével, composto por lindos meninos, criminosos, sexo e morte.   Mas se em Diário de um ladrão , como Juan Carlos Onetti disse uma vez sobre Céline, o autor “aceitava fissuras e confessava”, deixando cair ao passar algumas gotas de ternura balsâmica no coração dos leitores, Pompas fúnebres , o livro que nos interessa, Genet nos deixa uma amostra d

Caminhos que se cruzam em Istambul

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Por Ernesto Diezmartínez Vencedor do prestigiado prêmio Teddy 2024 em Berlim (voltado para o melhor do cinema com temática LGBTQ+) e depois vencedor do prêmio similar Maguey no último Festival Internacional de Cinema de Guadalajara, Caminhos cruzados (Suécia, Dinamarca, França, Turquia, Geórgia, 2024), quarto longa-metragem do cineasta sueco de origem georgiana Levan Akin está programado para aparecer na plataforma de streaming Mubi dentro de alguns meses.   Tal como no seu filme anterior, E então nós dançamos (2019) — que esteve na competição de Cannes no mesmo ano de lançamento e ganhou vinte prêmios ao redor do mundo — em Caminhos cruzados Levan Akin continua no mesmo percurso desafiante e provocador, pelo menos no contexto cultural da Geórgia, país para onde seus pais partiram quando ainda fazia parte da extinta União Soviética.   Embora Akin tenha nascido, sido criado e educado na Suécia, ele nunca quis se distanciar de suas origens culturais, por mais que E então nós dançamos

Os contos escondidos de Julio Ramón Ribeyro em seu arquivo de Paris

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Por Renzo Gómez Vega Julio Ramón Ribeyro em seu escritório de Paris, 1980. Foto: Jorge Deustua. Vasculhar a gaveta de um escritor já falecido é perscrutar a intimidade de um criador. Entrar num universo de dúvidas, ousadias e frustrações de quem travou inúmeras batalhas com uma página em branco para escapar do esquecimento. É, acima de tudo, explorar um olhar sobre a vida e testemunhar em primeira mão o milagre do nascimento da literatura.   Depois de se enraizar na Europa, Julio Ramón Ribeyro, o contista mais importante da literatura do Peru, morreu em Lima, aos 65 anos, no leito de um hospital oncológico, em dezembro de 1994, justamente quando começava a ser reconhecido. Partiu antes da chegada dos primeiros raios do sol de verão e algumas semanas depois de receber o Prêmio Juan Rulfo, reconhecimento que fez com que o seu nome transcendesse os círculos literários menores e ressoasse internacionalmente.   Desde então, sua comunidade de leitores — que eventualmente se tornaram devotos

Francesco Petrarca e o cobertor de Boccaccio

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Por Mario Colleoni Francesco Petrarca. Pintor anônimo. Acervo Castelo de Ambras, Áustria.     Cinquenta anos depois do nascimento do florim de ouro, moeda com a qual a Europa primeiro sonhou imaginar o seu nome, viveu em Florença um famoso notário chamado Pietro di Parenzo, mais tarde conhecido pela contração do seu nome, Ser Petracco. A sua profissão, determinada no seu caso por razões hereditárias (o pai e o avô também eram advogados), estava ligada à usura e carregava o peso da suspeita. Embora trouxesse grandes benefícios, era considerado um exercício pouco piedoso. Logo, um ou dois anos depois, imersos num clima próspero e agitado como aquela Florença do Trecento, meio política, meio comercial, meio artesanal, os frequentes confrontos entre guelfos (apoiadores da primazia do poder espiritual do papa) e os gibelinos (defensores do poder temporal do imperador) forçaram Ser Petracco a procurar abrigo em Aretino sob o signo de um indigno exílio político. Foi no calor daquelas faias,

Boletim Letras 360º #593

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Paul Auster. Foto: Todd Heisler LANÇAMENTOS   Uma história sobre amor, luto e memória; o último romance do premiado autor de A trilogia de Nova York e Desvarios no Brooklyn.   Sy Baumgartner é um professor de filosofia às vésperas da aposentadoria. Sua vida é definida pelo profundo amor pela esposa, morta há quase uma década num acidente no mar. Aos 71 anos, Baumgartner segue lutando para superar a ausência de Anna, enquanto os dias se sucedem em espirais de lembranças e conflitos mentais. Aos poucos, somos arremessados “rumo ao passado, o passado remoto, tremeluzindo nas fronteiras da memória”. Dos anos 1960, quando os dois personagens se conhecem como estudantes sem dinheiro trabalhando e escrevendo em Nova York, ao relacionamento apaixonado que constroem ao longo de quarenta anos; da juventude de Baumgartner ao passado revolucionário de seu pai, um polonês dono de uma alfaiataria em Newark, Paul Auster explora os mistérios e complexidades da alma humana com a destreza que o tornou