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Surrealismo: um ataque poético

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Por Ivonne Villalón Au rendez-vous des amis . Max Ernst, 1922. Museu Ludwig.   No que consistia o ataque surrealista à modernidade? É sabido que o inimigo ferrenho desta vanguarda era a razão. A sua batalha não era a partir do berço da racionalidade esclarecida — a crítica racional — mas a partir da poesia, precisamente a partir da expressão irracional. Em vez de obedecer a uma responsabilidade intelectual, expressava as exigências de uma paixão furiosa. A ordem racional é destruída pelo automatismo, uma espécie de pensamento onírico e espontâneo, livre de qualquer controle da consciência: a escrita automática, a que se recorreu na poesia, tinha seu equivalente na collage , no frottage e no método pânico-crítico, que se refletiu nas artes plásticas.   Desde o seu próprio ponto de partida, a obra surrealista é um absurdo para o ponto de vista comum. Além disso, como salienta Georges Bataille, é “incômoda, mas no fundo carece basicamente de importância que irrite os débeis: não é nada m

Boletim Letras 360º #606

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Beatriz Bracher. Foto: Piudip. LANÇAMENTOS   O primeiro livro de uma trilogia que se passa durante a Guerra do Paraguai (1864-1870) marca o regresso de Beatriz Bracher ao romance .   Acompanhamos em Guerra – I o avanço do exército de Solano López sobre fortes e vilas em Mato Grosso e no Rio Grande do Sul, provocando a reação de Brasil, Argentina e Uruguai, unidos na Tríplice Aliança. Tudo é narrado pela voz de combatentes que deixaram seu testemunho em documentos, cartas, relatórios, memórias, diários ― selecionados e rearranjados pela autora. Neste romance, o leitor poderá ver a guerra de dentro, tanto por notáveis como o general Osório, o almirante Tamandaré, o engenheiro militar André Rebouças e o segundo-tenente Alfredo Taunay, quanto por desconhecidos da maior parte de nós, como o cirurgião-mor Xavier Azevedo, o tenente-coronel Albuquerque Bello, o cadete Dionísio Cerqueira e o voluntário da pátria Jakob Dick. O calor, as noites gélidas, as moscas, o charco, a ventania, a fome, a

Matando Aurélio com golpes de Machado

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Por João Victor Uzer Hans Holbein. Portrait of Erasmus of Rotterdam (detalhe). Em outubro de 2024 o portal de notícias G1 divulgou uma reportagem sobre o uso de palavras e expressões antigas (do século XIX) nas redações do ENEM. “Outrossim”, “Com efeito”, “Não obstante”, “Dessarte”, “Azas”, “Mormente”. A lista é longa. Eu acho meio chumbrega essa mania da petizada de usar palavras do século XIX, prefiro as dos anos 1960 em diante. Mas quem sou eu para arrumar quiproquó?   A reportagem faz algumas suposições sobre o crescente uso de termos do século XIX nas redações do ENEM. A primeira é com relação ao estudo. Para escrever é preciso ler, então o aluno busca referências nos clássicos da literatura brasileira. O resultando é um cover anacrônico de Machado de Assis, José de Alencar, Castro Alves e assim ad infinitum . Outra causa possível remonta aos cursinhos. Um dos requisitos de avaliação da redação é o uso de conectivos, então alunos conseguem listas de conectivos para decorar e ev

A vergonha, de Annie Ernaux

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Por José Woldenberg “Meu pai tentou matar minha mãe num domingo de junho.” 1 Assim começa o testemunho/   romance/   reflex ã o de Annie Ernaux. Foi no dia 15 de junho de 1952, quando ela ainda n ã o tinha doze anos. A m ã e, de mau humor, reclamava com o pai at é que ele explodiu e a amea ç ou com um machado. Annie correu, pediu ajuda, chorou. “ Depois, saímos os tr ê s para andar de bicicleta numa área rural que ficava nos arredores. […] Nunca mais se falou no assunto. ”   O episódio, porém, jamais foi esquecido por aquela garota. “Depois, aquele domingo passou a ser uma espécie de filtro que ficava entre mim e todas as coisas que eu vivia.” Os pais de Annie a “adoravam”; a ameaça nunca se repetiu, mas gerou nela um alerta permanente e, sobretudo, uma vergonha indecifrável.   Ernaux reconstrói essa época: o seu presente de Natal, os postais recebidos, o missal utilizado, folheia os jornais antigos que falam das guerras da Indochina e da Coreia, dos filmes da época e da publicidade

O urso e o poder terapêutico da arte

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Por Rafael Kafka Tenho repetido há algumas semanas em posts em meu Instagram que O urso tem perturbado minha mente. Acho que como todo leitor mais apaixonado, gosto da ideia de me encontrar no texto lido, seja ele escrito ou audiovisual. Mas a série de Ayo Edebiri me pegou de um jeito que não sei descrever. Eu me enxergo demais em Carmy Berzatto, o protagonista, que possui um talento sem igual na cozinha e fortes crises de ansiedade que muitas vezes beiram o pânico. Há outro detalhe que compartilhamos: o fato de termos perdido alguém próximo a nós e não termos processado plenamente esse luto.   Uma vez aprendi ouvindo um podcast sobre psicanálise que há muitas formas de alguém cometer suicídio. Quando digo isso não falo dos métodos em si de dar conta do ato, mas das diferentes maneiras em que a morte é atingida. Ainda não ficou claro como e o porquê, mas Michael se mata pouco antes do começo da sequência cronológica de O urso . Mesmo morto ele é um personagem constantemente mencionad

Línguas ou Vita mortale e immortale dela bambina di Milano, de Domenico Starnone

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Por Sérgio Linard Domenico Starnone. Foto: Isabella De Maddalena   A escolha pela tradução do título original da recente novela de Domenico Starnone a chegar no Brasil, no primeiro momento, antes da leitura da obra, soa estranha ou arriscada. Como Vita mortale e immortale dela bambina di Milano foi vertido para Línguas ? Haveria, na obra, justificativa suficiente para tão radical mudança? Seria esta uma escolha de motivação mercadológica, para estabelecer relação de continuidade com o livro anterior do autor, Dentes ?¹ Após a leitura, vê-se que o tradutor Maurício Santana Dias fez uma escolha melhor do que a do próprio Starnone ao intitular sua obra. Para essa confirmação, porém, a leitura integral do texto é indispensável. E, por isso, aqui, meu único comentário acerca dessa tradução é o elogio. Sigamos ao texto.   É bem provável que Línguas seja o primeiro livro do autor, em terras brasileiras, a comportar-se como um divisor mais firme de opiniões. Este parece ser um caso em que se