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A moreninha: jovem, traquina e sonhadora

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Por Renildo Rene Ismael Nery. Baía de Guanabara , s.d.   Quando Joaquim Manuel de Macedo se mudou de Itaboraí para o Rio de Janeiro com o desejo de se tornar um escritor brasileiro, ele hesitava em pensamento se poderia conquistar algum público com suas histórias. “Fui eu que (talvez ainda com vaidade de pai) cheguei a crer que o público a não enjeitava”, disse ele sobre a publicação de A moreninha no prólogo de O moço loiro (1845), “e, sobretudo, que minha querida filha tinha achado corações angélicos, que, dela se apiedando, com o talismã sagrado de sua simpatia a levantaram mesmo muito acima do que ela merecer podia”.   Em 1844, o lançamento do romance alçou o prestígio social de Macedo na capital do Império e estabeleceu o espaço da obra como um marco inaugural no país. Dois anos antes, Teixeira e Souza havia publicado O filho do pescador , porém foi com o alcance popular, sobretudo mulheres, que A moreninha reinou na representação de “primeiro romance romântico brasile...

Jamais serei seu filho e você sempre será meu pai, de Thiago Souza de Souza

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Por Renildo Rene Thiago Souza de Souza. Foto: Arquivo pessoal. Sentir e escrever são dois elementos expressivos possíveis ao luto neste romance. Com a descontinuidade de uma relação física paterna, causada pela morte, várias são as tentativas individuais empreitadas por um filho para organizar as emoções na história trazida por Thiago Souza de Souza, em sua estreia pela editora Taverna, ali no ano de 2021.   O protagonista ao qual temos o campo de vista adentrado em Jamais serei seu filho e você sempre será meu pai perde seu pai ainda novo, aos três anos, após um acidente médico causado pela inserção de dipirona por uma enfermeira. Já adulto (a morte foi em 1993; o genitor estava em seus trinta e seis anos), ele recorre ao processo de escrita para explorar a angustiante sensação da ausência e o impacto familiar post mortem . Quando narra certos episódios de sua vida, esse narrador nos diz também sobre a repercussão daquele episódio original em diversas fases de compreensão de seu ...

Por dentro (e por fora) de Úrsula

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Por Renildo Rene Dalton Paula. Maria Firmina dos Reis . MASP (Reprodução)   “O nosso romance, gerou-o a imaginação, e não o soube colorir, nem aformosentar. Pobre avezinha silvestre, anda terra a terra, e nem olha para as planuras onde gira a águia.”   As primeiras palavras lidas em Úrsula , no Prólogo, afirmam o poder da criação. Criar é contornar o estilo do século e deslocá-lo em sentidos diversos, afirmando a identidade nacional ao mesmo tempo que se pretende miná-la. Maria Firmina dos Reis especializa a vanguarda ficcional da literatura abolicionista ao conceber no exercício da escrita uma tarefa de dar existência ao território obliterado do Brasil. Sem quaisquer dúvidas disso, o romance sai ineditamente em 1859 sob o título autoral que facilmente acompanha seu nome: “Uma maranhense”, simples e adjetivo, e ainda mais acertado porque ela conturba “a conversação dos homens ilustrados”.   A conturbação vem logo no primeiro capítulo, “Duas almas generosas”. A fisionomia ...

Oito do sete, de Cris Judar

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Por Renildo Rene Cris Judar. Foto: Tania Judar   Quando imagina que nós viveríamos o fim de toda a água do mundo como as personagens de José Saramago enfrentam a cegueira, penso que Magda, uma das personagens deste romance, acredita em uma anulação de forças sexuais: as relações heterossexuais cairiam de seu pedestal — porque a necessidade do líquido se encontraria em qualquer corpo — e as relações homossexuais descobririam outros sentidos para navegar no nosso “mundo de crenças” — porque boa parte de sua existência esteve apoiada na contraposição ao normativo. E no caso de seu relacionamento com Glória, esse colapso significaria também um rompimento do encaixe das duas enquanto um casal, devolvendo a elas a aridez da solidão, que não sabemos se é desejada, destinada e/ ou temida.   Em Oito do sete , parece ser confuso encontrar maneiras de acompanhar esse relacionamento por um sentido mais cronológico: como começou, o que aconteceu e como elas se mantêm juntas (ou se realment...

Walter Salles esqueceu de comprar a televisão

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Por Renildo Rene   Walter Salles revelou seu olhar vertiginoso sobre o nosso cenário político, mas esqueceu de encenar a compra da televisão realizada por Eunice Paiva, no início deste milênio, que confirmaria certas dimensões para pensar o ideal brasileiro pós 88. No novo filme do diretor, visitamos a família de Marcelo Rubens Paiva, em uma estrutura linear bem definida de tempo e espaço, após o seu desaparecimento orquestrado por militares brasileiros na década de 70.   Já na cena inicial, os créditos indicam a data e o contexto dos eventos que o espectador irá vislumbrar. Em seguida, uma restauração imagética da residência sempre bem ocupada por familiares, amigos e objetos que encenam a cultura popular daqueles anos. Veroca, Nalu, Eliana, Babiu e Cacareco, os filhos de Marcelo com Eunice, ganham presença por meio dessa vertigem da câmera de ocupar diferentes posições, movimentos, tamanhos, para ilustrar os dias como a união de muita gente, e com a felicidade que os une pre...

Solitária, de Eliana Alves Cruz

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Por Renildo Rene Eliana Alves Cruz. Foto: Eduardo Anizelli   É um romance de espaços. Sua condição prévia de leitura é examinar o destino das famílias vítimas de violências/ crimes — sumariamente ocorridos no dia a dia — do ambiente doméstico enquanto percorre o dispositivo mais significativo do racismo brasileiro: a arquitetura das residências urbanas e a condição contemporânea do “quartinho da empregada”. Em seu quarto romance, Eliana Alves Cruz se volta para o período histórico ainda não retratado nos anteriores, o século XXI, e coloca em tela cheia uma narração intrigante para a literatura contemporânea, cheia de personagens simbólicas, metáforas recorrentes e uma narrativa envolta no enredo policial.   Mabel e Eunice, filha e mãe, guardam histórias particulares no Edifício Golden Plate, lugar do trabalho materno que constitui o centro de relações, desgostos e decisões de suas vidas ao longo de um bom tempo. Na organização dos eventos, a primeira narra a apresentação mais ...

Sr. Baldwin e seus pequenos blues

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Por Renildo Rene James Baldwin. Foto: Ulf Andersen   I get a feeling that I never, never had before. Começo a escutar aquela voz solitária de Etta James como se estivesse ouvindo a faísca de uma agitação. As batidas de todos aqueles instrumentos entram depois em cena e inicia um frenesi impossível de não conquistar. Certamente é uma canção muito energética, porém tem algo escondido ali, profundamente: a sensação estranha, na letra, e a grande rainha do Blues sabe, é precedida por um coração pesado de viver, mesmo quando os pés só dançam . Afinal, é 1962 e não é inocente como imaginamos a canção: é a liberdade bradando algo pesado e preso, enquanto se prepara para ser ferido novamente.   Enquanto “Something’s Got A Hold Me” se tornava esse clássico incontornável, James Baldwin escrevia na época sobre essa capacidade do Jazz e Blues serem ritmos da outra independência norte-americana, com “acidez, ironia, autoritarismo e dubiedade”. Sem quaisquer rodeios, ele afirma serem as...