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Um conto de Objecto quase, de José Saramago

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José Saramago. 1989. Falamos aqui  de  Objecto quase , de José Saramago. E hoje gostaríamos de voltar ao livro para apresentar um dos contos mais interessantes do conjunto das seis peças que compõem esta publicação. Trata-se do conto "Cadeira".  O conto abre o livro e foi escrito a partir de uma notícia solta na época da ditadura de Salazar de uma queda sofrida pelo ditador; a narrativa então reimagina o acontecimento figurando em câmera lenta a queda deste homem execrável depois de se sentar numa cadeira já carcomida pelos carunchos. Dados atestam que Saramago iniciou a escrita do conto em setembro de 1976, depois de reunir suas crônicas publicadas no Diário de Notícias  no livro  Os apontamentos .  O livro de contos foi publicado em fevereiro de 1978 e é uma obra de transição, em que o escritor experimenta-se em formas literárias, de linguagem e de construção narrativa.  Sobre o livro, Saramago comentou certa vez: "Não me parece que o Ob...

Objecto quase, de José Saramago

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Por Pedro Fernandes Trata-se da única antologia de contos de José Saramago publicada em vida, mas o escritor português também escreveu outros textos do gênero, como O conto da ilha desconhecida , A maior flor do mundo (estes dois publicados individualmente no Brasil também pela Companhia das Letras em bela edição luxuosa) e  O ouvido ... (nunca publicado aqui, mas integrante de uma publicação coletiva em que tanto José Saramago como os outros escritores discorrem a partir da tapeçaria La Dame à La Licorne) e alguns dispersos, como o conto Natal , de data indefinida que descobri no ato de escrita de minha monografia de graduação compilado na edição 151-152 da Revista Colóquio / Letras . Haverá, certamente, outros, que a distância e / ou a curta informação permita seu silêncio. Em Objecto quase apresentam-se seis breves narrativas enfeixadas cada uma por apenas um substantivo - "Cadeira", "Embargo", "Refluxo", "Coisas", "Centau...

Mensagem de Natal? Uma crônica de José Saramago

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Por Pedro Fernandes  Às vésperas da data que o cristianismo instituiu para celebrar o nascimento de Jesus, pego de uma crônica de José Saramago que está publicada em Deste mundo e do outro  (1997). Este livro reúne textos que o escritor português publicou entre os anos 1968 e 1969 no jornal A Capital . O texto não está marcado pela data em registro, exceto por uma menção que finda por ser um dos seus ponto motriz; e, claro, sua importância para o momento, embora também o transcenda, repousa na reflexão que nos suscita sobre as disparidades do sentido humanizador, sempre convocado sob a luz do espírito natalino. Fica o texto como mensagem de Natal. * A Neve Preta Bem sei que estamos fora da estação: o Inverno já lá vai, temos agora aí o calor, a praia, as sombras das grandes árvores, o sol duro que nos amolece, as tardes apetecidas, as noites mornas que ondulam como pesados e macios veludos negros. Falar de neve em Junho mostra uma lamentável falta de sentido da oport...

Cora Coralina, de Goiás

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Por Carlos Drummond de Andrade Este nome não inventei, existe mesmo, é de uma mulher que vive em Goiás: Cora Coralina. Cora Coralina, tão gostoso pronunciar esse nome, que começa aberto em rosa e depois desliza pelas entranhas do mar, surdinando música de sereias antigas e de Dona Janaína moderna. Cora Coralina, para mim a pessoa mais importante de Goiás. Mais do que o Governador, as excelências parlamentares, os homens ricos e influentes do Estado. Entretanto, uma velhinha sem posses, rica apenas de sua poesia, de sua invenção, e identificada com a vida como é por exemplo, uma estrada. Na estrada que é Cora Coralina passam o Brasil velho e o atual, passam as crianças e os miseráveis de hoje. O verso é simples, mas abrange a realidade vária. Escutemos: “Vive dentro de mim/ uma cabocla velha/ de mau olhado,/ acocorada ao pé do borralho, olhando pra o fogo”. “Vive dentro de mim/ a lavadeira do rio vermelho. Seu cheiro gostoso dágua e sabão”. “Vive dentro d...

O Evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago

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Por Pedro Fernandes Edição brasileira de O evangelho segundo Jesus Cristo  publicada pela Companhia das Letras Se tem uma coisa que tem intrigado muita gente que ainda se vê enfiada nos cânones religiosos é mexer com o sagrado; lembro-me bem de um congresso que fui neste ano e falei sobre as personagens Deus e o Diabo dessa obra-prima da literatura portuguesa que é  O Evangelho segundo Jesus Cristo , de José Saramago, e um senhor da platéia que assistiu aos meus quinze mirrados minutos de apresentação... Saramago só não recebeu o nome de Deus noutras conversas rápidas que tive com ele, depois, no alojamento... Mas oh, tem uma coisa, cá pra nós,  O Evangelho  deveria mesmo ser partilha nas homilias e cultos religiosos cristãos porque nunca li (e olha que já li os quatro Evangelhos da Sagrada Escritura) obra com real beleza e proximidade à figura do Cristo tão exorcizada do discurso religioso cristão: o Cristo antes de sê-lo. Um Jesus humano e porque humano m...

Joseph Conrad. As raízes do humano

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Por Vargas Llosa Ilustração: Tim Liedtke  1. O Congo De Leopardo II Em uma viagem de avião, o historiador Adam Hochschild  encontrou uma citação de Mark Twain, na qual o autor de As aventuras de Huckleberry Finn assegurava que o regime imposto por Leopoldo II, rei dos belgas que morreu em 1909, ao Estado Livre do Congo (1885 a 1906), forjado por ele, havia exterminado entre cinco e oito milhões de nativos. Mordido pela curiosidade e por um certo espanto, ele iniciou uma investigação que, muitos anos depois, culminaria no livro O fantasma do rei Leopoldo , notável documento sobre a crueldade e a cobiça que impulsionaram a aventura colonial européia na África, e cujos dados e comprovações enriquecem extraordinariamente a leitura da obra-prima de Joseph Conrad, O coração das trevas , que se passa naquelas paragens justamente na época em que a Companhia Belga, de Leopoldo II — que deveria figurar, junto a Hitler e a Stálin, como um dos criminosos político...