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Dois irmãos, de Milton Hatoum

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Por Pedro Fernandes Este não é o primeiro romance do escritor Milton Hatoum. O primeiro é  Relato de um certo Oriente , publicado em 1989 e logo vencedor do Prêmio Jabuti de Melhor Romance daquele ano. Dois irmãos é o segundo e é tão premiado quanto o primeiro: mereceu outro Jabuti e já figura até o presente em mais de oito diferentes idiomas. É este romance minha porta de entrada pela literatura do autor. Já havia lido – numa das tantas idas às livrarias – alguns contos esparsos da antologia  A cidade ilhada  (Companhia das Letras, 2009) e, claro, como já notifiquei noutras ocasiões, alguns ensaios escritos pelo Hatoum para a extinta revista  EntreLivros .  Não precisa dizer – mas vou mesmo assim fazer isso – que este romance me fisgou ponta a ponta. E há algumas razões que devo citar nestas notas. Primeiro, e isso deve ser uma observação corriqueira entre os críticos, é que Hatoum não é, à princípio, influenciado por dois modismos ...

Miacontear - O menino que escrevia versos

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Por Pedro Fernandes O protagonista no conto  “O menino que escrevia versos”  bem poderia ser o último exemplar daquelas criaturas que viviam de fazer arte e que em seguida foram sendo transmutadas para outro universo que não o dos humanos no conto “A infinita fiadeira”, outra passagem de O fio das missangas .  Acontece que o menino parece ter sido salvo antes do tempo de receber tal condenação. Retomando o tema da “função” ou “utilidade” da arte na sociedade contemporânea, no caso aqui específico da poesia, Mia Couto engendra a história de um menino dado a fazer versos e que tem, por isso, a reprovação do pai e o cuidado exacerbado da mãe.  Uma vez preocupados com o “mal” do menino, os pais levam-no ao médico e requerem urgência no tratamento do caso. Os pais sinalizam, evidentemente, o modelo dessa sociedade para a qual a inclinação (muitas vezes nata) para a expressão artística é um problema a ser contornado, desviado, uma vez que agora...

Epitáfios

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“Gosto dos epitáfios; eles são, entre a gente civilizada, uma expressão daquele pio e secreto egoísmo que induz o homem a arrancar à morte um farrapo ao menos da sombra que passou.” A sentença descarnada é de um narrador bem conhecido da literatura brasileira, Brás Cubas, o homem que, do interior da sua lápide fabula suas memórias; e, porque escritas do além-vida, póstumas. É possível que o fio irônico que a sustenta não deixe de oferecer uma razão muito própria e séria; há no epitáfio qualquer coisa desse interesse universal e humano pela eternidade. E se só dado a alguns, uma perduração do nosso egoísmo.   A celebração do dia dos mortos parece ser um ato útil por duas razões: reencontrarmo-nos como a ideia de que nossa vida não é eterna e fazer manter viva a memória do morto, que será esta a única eternidade que dispomos. Se fosse dar vazão a estes dois motivos eles se ampliariam e teríamos aqui um texto semiacadêmico pensando sobre a questão. O que não é nossa intenç...

Um dia depois do Dia D, um pouco mais sobre Carlos Drummond de Andrade

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Por Pedro Fernandes Carlos Drummond de Andrade em Ouro Preto. Em 2008, quando eu concluí o curso “A constituição do moderno texto poético”, feito com o Prof. Dr. Derivaldo Santos, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, escrevi um pequeno texto cujo o título era “A marca regionalista como constituinte do moderno texto poético: um estudo do poema ‘Episódio’, de Carlos Drummond de Andrade”.  Neste texto que agora compartilho por aqui, discuto como alguns elementos do interior de Minas Gerais, terra do poeta, aparecem refigurados no interior de muitos de seus poemas; no caso em análise, a ênfase, claro está, recai sobre “Episódio”, poema incluído em  A rosa do povo , um dos livros de Carlos Drummond de Andrade que aparece na minha lista dos mais queridos. Este texto, com sua simplicidade e suas faltas, chegou a ser apresentado durante o 1.º Colóquio Nacional de Linguagem e Discurso (CONLID), realizado em 2008, em Mossoró. E foi publicado neste mesmo ano nas atas do ref...

Drummond, o lutador

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Carlos Drummond de Andrade. Foto: Marcel Gatheurot, de 1959. Fonte: Blog A biblioteca de Raquel Para quem sempre disse que o trabalho com a poesia é tarefa árdua. Trabalho sério. E aquele que reenvintou a poesia brasileira, no Dia D, dia do poeta de Itabira não há versos mais justos e adequados do que O lutador , publicado originalmente no livro José (1942). Lutar com palavras é a luta mais vã. Entanto lutamos mal rompe a manhã. São muitas, eu pouco. Algumas, tão fortes como o javali. Não me julgo louco. Se o fosse, teria poder de encantá-las. Mas lúcido e frio, apareço e tento apanhar algumas para meu sustento num dia de vida. Deixam-se enlaçar, tontas à carícia e súbito fogem e não há ameaça e nem há sevícia que as traga de novo ao centro da praça. Insisto, solerte. Busco persuadi-las. Ser-lhes-ei escravo de rara humildade. Guardarei sigilo de nosso comércio. Na voz, nenhum travo de zanga ou desgosto. Sem me ouvir deslizam, perpass...

Heinrich Böll: o escritor, o homem

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Por Fernando Aramburu Um escritor, sim. Um contador de histórias, também. Heinrich Böll concordou com essas definições; mas acontece que seus contemporâneos insistiram em lhe atribuir características que ele rejeitava repetidamente. Ele não gostava de ser qualificado como escritor cristão, por mais que durante toda sua vida professasse constantemente sua fé com convicção. Maior irritação lhe causava ser chamado de moralista. Foi, sim, um homem de seu tempo, atento às questões sociais. Um homem que muitas vezes levantou a voz, participou de movimentos de protesto e apresentou suas opiniões políticas em inúmeras entrevistas, artigos, conferências. Um entrevistador certa vez perguntou a ele como se explicava que, para um grande número de cidadãos alemães, ele representava algo como a consciência moral da Alemanha. Ao que respondeu sem hesitar: “Porque pouquíssima consciência”. Böll percebia que tais atribuições à política e à moral simplificavam seu trabalho, se não o a...