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O dia em que Flávia me mostrou que trinta linhas é pouco demais

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Por Rafael Kafka Em algum dia da semana passada, lembrei-me de Flávia dando aula. Eu a conheci em um contexto de sala, mais especificamente no estágio de minha primeira graduação e desde então nutro profundo sentimento de amizade por ela, mesmo tendo visto-a tão poucas vezes em minha vida. Sempre me questionei acerca de tamanho carinho e penso que a lembrança ocorrida em uma aula que eu dava explicou-me, como uma rara epifania, as causas de tão profunda afeição. Percebo nos anos todos em que dou aulas em escolas uma profunda dificuldade de meus alunos de escreverem mais do que o limite mínimo de linhas em provas de redação. Se tal limite é quinze é bem provável que todas as redações sigam o padrão desse número de linhas, com raras exceções que o ultrapassam. Atingir quinze linhas para muitos de meus estudantes é como vencer uma árdua maratona a cujo final eles chegam com os últimos suspiros de sua alma cansada. Se procurar entender o que se passa com eles e explica e...

Cobra Norato, uma passagem para o imaginário popular brasileiro

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Desde sua primeira edição, em 1931, que o poema Cobra Norato , de Raul Bopp é lido como uma das melhores expressões da literatura brasileira modernista. Entretanto, é preciso que o leitor saiba que essa compreensão está para o nível do tema e não da forma poética. Embora o poeta tenha se aproveitado antropofagicamente de várias versões de uma lenda oral indígena e feito uso do verso livre, sua ideia, diferentemente de outros textos desse período, não se constrói por expressões c omo a metapoesia, a paródia, o poema-piada ou o uso da linguagem oral.  Mesmo assim, não pela épo c a em que foi publi c ado – pós-semana de 1922 e quando o seu autor já havia se tornado um dos importantes divulgadores do Modernismo, à frente da Revista de Antropofagia – mas por in c orporar-se nesse período de altos c ontrastes, naquela linha definida por tantos críticos, a de lamento pela perda da tradição ou apagamento da tradição, c ausada em parte, diga-se, pelo próprio vento do espírito mod...

O caso Meursault, de Kamel Daoud

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Por Pedro Fernandes “Um francês mata um árabe deitado em uma praia deserta. São duas horas da tarde no verão de 1942. Cinco tiros, seguidos de um processo. O assassino é condenado à morte por ter enterrado mal sua mãe e ter falado sobre com demasiada indiferença. Tecnicamente, a morte se deve ao sol ou ao puro ócio. A pedido de um cafetão chamado Raymond que está contrariado com uma puta, o seu herói escreve uma carta ameaçadora, o caso se degenera e depois parece se resolver com um assassinato. O árabe é morto porque o assassino acha que ele quer vingar a prostituta, ou talvez porque ele se atreve, indolentemente, a fazer a sesta” – assim o narrador de O caso Meursault resume a obra mais conhecida de Albert Camus, O estrangeiro . É este romance, o ponto de partida para a narrativa de um livro cujo tratamento é o de preencher os silêncios ou reanimar os rumores em torno do acontecimento-chave para a obra que o antecede. A narrativa proposta por Kamel Daoud, n...

A graça imortal de David Foster Wallace

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Por Rodrigo Fresán Um fantasma percorre a América do Norte (e o resto dos continentes) e esse fantasma é o de David Foster Wallace. E seu cada vez mais vital espectro (seu corpo nascido em 1962, sua alma aparecida em 2008, previu rapidamente o suicídio) reaparece trazendo nas mãos as sagradas escrituras do romance pelo qual é melhor lembrado e, talvez, pior compreendido e apressadamente imortalizado. Graça infinita , publicado em 1996, aqui e agora, figurando em toda em toda e qualquer lista sobre as jovens marcas do fim e começo do milênio literário (ao lado de American Psycho , de Bret Easton Ellis, quem considera Wallace um farsante hipervalorizado). Graça infinita não cai de moda porque é uma moda em si mesma. Um desses livros – como A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy , Moby Dick , O homem sem qualidades , Ulysses ou Em busca do tempo perdido – que permanecem, mesmo sem sequer ser aberto, nas mesas de cabeceira ou nas listas de promessas a não se ...

Revisitando Mário de Sá-Carneiro: uma homenagem no ano do centenário da sua morte

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Por Maria Vaz Escrever sobre um grande vulto é sempre assim: difícil. Uma alma que escreve vagueia sempre por mundos envoltos em sentidos, em que as palavras se perdem ou não ecoam a devida intensidade da sua mundividência. Sobra-nos a tarefa de adivinhar, nas entrelinhas daquilo que se disse e se escreveu, um pedaço de céu ou um qualquer brilho que alguém esqueceu. Dito isto, falar de Mário de Sá-Carneiro implica subir e descer as escadas dos deuses e, inevitavelmente, confrontar a iluminação do cume do Olimpo com o submundo de Hades. Teorias há no sentido de que um homem se resumiria a uma previsibilidade de acontecimentos entre duas datas: o nascimento e a morte. Mas quando falamos de poetas e de poesia, tocamos um mundo do absoluto em que a morte nada significa além da transformação da matéria: o corpo vai, mas ficam as palavras e os sentimentos petrificados em estrofes, combatendo a energia destrutiva de um tempo em que tudo perece. Eles permanecem. Estão condenados à ...

Boletim Letras 360º #187

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Machado de Assis preside sessão na Academia Brasileira de Letras Enquanto fechávamos a edição deste boletim, encontramos a notícia publicada no Estado  sobre a descoberta de um livro de Machado de Assis que nunca foi veio a lume (leia mais no fim do boletim). A descoberta alinha-se a outras três feitas recentemente em torno do escritor brasileiro: a da crônica desconhecida em que o autor chora a morte da mãe, a do poema “O grito do Ipiranga” e a desta fotografia, publicada no último final de semana na Folha de São Paulo : trata-se da primeira imagem que se tem notícia de Machado de Assis a presidir uma sessão da Academia Brasileira de Letras. Foi publicada na revista Leitura para todos , de 1905. E só é possível dizer que o escritor está na imagem por causa da descrição apresentada no rodapé que diz ser o escritor o espectro que está entre dois homens, na mesa, à esquerda da foto (cf. marcado). A foto foi encontrada pelo pesquisador Felipe Rissato, o mesmo, que em junho r...