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Gostamos de causar danos (com o grande romance estadunidense)

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Por Paula Corroto William Faulkner, o pai de uma tradição literária estadunidense: a da degeneração Poderiam abrir nosso coração com um canivete e quase desfrutaríamos vendo correr o sangue aos borbotões. Poderiam dizer que nosso pai é um assassino ou um estuprador e talvez encontraríamos um sentido para a vida. Poderiam comentar que nossa mãe nunca nos quis, que nos abandonou na sala de parto, e nos esqueceu e tudo estaria resolvido. Por fim, encaixariam nossos pensamentos de perda e abandono, o fim do emprego, aquele namorado ou namorada que nos traiu à nossa vista vinte metros de onde moramos. E ainda assim tudo bem. Esta espessa obscuridade mental, esta descida aos infernos que às vezes propõem as neuroses se fala em muitos romances que nos últimos anos têm gozado do gosto dos leitores e da crítica. Seus escritores são os novos reis do grande romance [estadunidense]: o que dita o pensamento mundial. São os David Vann e Cormac McCarthy que bebem de outros...

Boletim Letras 360º #233

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Amigos que acompanham com muita ou pouca frequência a passagem de páginas deste blog, chegamos a um novo sábado com outra edição do Boletim Letras 360º. Jane Austen inventora de maridos. Mais detalhes neste Boletim. Segunda-feira, 31/07 >>> Inglaterra: Quando Jane Austen inventava maridos A inglesa Jane Austen, cujos romances retrataram com lucidez a sociedade de princípios do século XIX, falsificou duas certidões de casamento com seu nome. Os documentos foram encontrados nos arquivos da escritora no condado de Hampshire, sul da Inglaterra. Austen, cujas heroínas viviam presas às convenções patriarcais da época e buscam no casamento estabilidade financeira e status social, morreu solteira, aos 41 anos, em 1817. Os documentos compõem parte de uma exposição que marca o bicentenário sem a escritora; foram encontrados no registro civil de Steventon, onde passou sua juventude. Neles, um casamento com um tal de Henry Fitzwilliam, de Londres e com Edmund Mort...

Inconformismo quixotesco

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Por Rafael Kafka Dom Quixote. Julio Pomar. O que há de cômico em Dom Quixote há de absurdo na existência: ela não se basta e não nos basta. Por isso, precisamos dar arte, da literatura mais especificamente, que por fazer da linguagem arte, da nossa fiel companheira até em momentos mais banais de nosso viver um objeto de prazer, torna-se um panorama favorável de sensações transcendentais. Dom Quixote é o típico sujeito que literalmente fica doido de tanto de ler. Mas Cervantes em seu romance – vamos chamá-lo assim – não defende a não leitura, como dia mais se faz hoje em dia. Pelo contrário: em um mundo onde cada vez mais a arbitrariedade do discurso se evidenciava, como bem mostrou Foucault em seu breve comentário sobre a personagem quixotesca – o autor desenvolveu uma personagem que procura romper a ordem das coisas, sublimando a existência em algo grandioso e perfeito. Podemos dizer que em Dom Quixote vemos uma atitude similar à um de cinzento Antoine Roquentin: a ná...

Água viva, de Clarice Lispector

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  Por Pedro Fernandes A maior das obsessões da literatura, sobretudo as dotadas do princípio da representação, é a de perfazer o mundo que é, a um só tempo, dentro e fora da palavra. Essa constatação não é vã nem para os artistas que negam veementemente a força das influências externas na realização do objeto artístico. Obviamente que este responde por sua autonomia no mundo, mas não está dissociado dele. Há entre um e outro um conjunto de forças dialéticas que atuam mutuamente e neles operam transformações.   Dentre os interesses em dizer o mundo em sua inteireza reside o desejo de agarrar o presente em sua totalidade expressiva. Mas este é só continuidade e nos escapa. Possivelmente, a maior possibilidade de aproximação dessa representação resida na pintura: aquela que se realiza no instante-mesmo em que o pintor transfere para a tela o ímpeto que lhe nasce de alguma força do inconsciente. Possivelmente, porque entre a força inconsciente e o objeto artístico...

O filho uruguaio, de Olivier Peyon

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Por Pedro Fernandes Este é um drama sobre uma mãe que, muitos anos depois, decide buscar o filho que lhe foi tirado quando de um doloroso divórcio. Mas é ainda uma viagem existencial de todos os envolvidos nesse drama: a mãe Sylvie, o assistente social Mehdi, María, tia e quem faz as vezes de mãe para o pequeno Felipe e a avó, Norma. É também uma exposição sobre o quanto uma mentira é capaz de ruir com as esperanças e os sonhos das pessoas. E Olivier alinhava tão bem as revelações que pouco a pouco dão forma e tessitura à narrativa que finda capaz de mexer com uma dose diversa de sentimentos do expectador. É impossível ver este filme sem um nó na garganta e ficar preso ao impasse que ora advoga em favor das dores da mãe, ora em favor da avó e da tia, ora mesmo no turbilhão de sentimentos diversos que deve cruzar pela cabeça da criança quando tem revelado o duplo interesse dos que estão ao seu redor: avó e tia a esconder a verdade sobre a mãe e o pai do garoto e a atit...

Salinger, um grupo de psicopatas e os do MKUltra

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Por Rafael Ruiz Pleguezuelos Norman Mailer, sempre disposto a ofender, disse numa ocasião que Salinger era a maior inteligência que não havia passado de secundária. No fundo, o autor de A canção do carrasco declarou é verdade, embora tenha feito impulsionado por essa espécie de pensamento violento que conforma sua personalidade de raro escritor. Dou razão a Mailer de que na obra de Salinger tem algo de desenvolvimento preso, de árvore obrigada a permanecer no tamanho de um bonsai. O que acredito que o bom de Mailer não entendia, ou queria entender, é que para muitos leitores de Salinger (incluindo quem assina este artigo) o que seduz em sua literatura é justamente isso, que viva num tempo congelado e propicie que entendamos melhor a dor da pessoa que fica presa entre fases, como se o elevador de sua vida se detivesse entre o andar da adolescência e o da vida adulta. O apanhador no campo de centeio é um livro demasiado especial , singular na acepção mais obscura do termo....